Complexidades do Brasil demandam uma filantropia mais ousada

Falta apoio a organizações que combatam as desigualdades socioeconômicas ou atuem para sanar os graves problemas sociais do país

Por Mônica De Roure | ArtigoODS 17 • Publicada em 6 de fevereiro de 2025 - 08:53 • Atualizada em 6 de fevereiro de 2025 - 11:11

Galpão com doações para vítimas das enchentes no Rio Grande do Sul: diante das complexidades e dos desafios do país, falta apoio das entidades filantrópicas brasileiras a organizações que combatam as desigualdades socioeconômicas (Foto: Rafa Nedderneyer / Agência Brasil – 06/05/2024)

Pela primeira vez, o Brasil sediou, na cidade do Rio de Janeiro, o fórum do G20, o grupo que reúne as 20 maiores economias do mundo. Paralelamente, também na capital fluminense, foi realizado o Humanity Summit 2024, centrado em pautas tradicionalmente preteridas nas rodadas de negociação dos chefes de estado: temas como equidade racial e de gênero, justiça socioeconômica, ambiental e de direitos humanos. Esse contraste reflete um fenômeno semelhante ao que ocorre no setor social brasileiro.

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O ano de 2024 foi especialmente desafiador para a filantropia progressista. Os eventos climáticos extremos deram uma clara demonstração das consequências de um desenvolvimento econômico em que o termo sustentabilidade, de significado já gasto, é usado indiscriminadamente para criar efeito.

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A tragédia climática no Sul do país foi acompanhada de uma série de medidas governamentais para a retomada da economia. Porém, as ações suscitaram  questionamentos acerca de quanto desse investimento foi destinado a comunidades tradicionalmente sub-representadas ou para a recuperação da agricultura familiar, por exemplo.

Paralelamente, outros desafios, como os grandes incêndios que atingiram o Pantanal, o Cerrado e a Mata Atlântica, levantaram questões sobre a resistência desses biomas e a melhor estratégia para que os grandes investimentos na Amazônia chegassem com eficácia e eficiência a organizações de base comunitárias e/ou representativas das comunidades originárias.

Já nos centros urbanos, vemos o impacto das mudanças climáticas atingir favelas e comunidades de Norte a Sul do Brasil, impulsionando a migração de jovens em busca de estudo e de trabalho para romper com o rótulo de “nem-nem”, contingente da população que, segundo o IBGE, é composto por cerca de 10 milhões de pessoas, entre 15 e 29 anos. Diante disso, é imprescindível pensar qual papel a filantropia pode desempenhar no futuro desses brasileiros.

Em termos gerais, a filantropia no Brasil é conservadora. Suas ações contemplam, em boa parte, investimentos de curto prazo voltados a projetos e temas considerados “seguros”. Enquanto o setor privado ousa na criação de novos produtos e negócios e o mercado financeiro demonstra um fôlego inesgotável para inovação, falta ousadia para se investir em Organizações da Sociedade Civil (OSCs) que combatam as desigualdades socioeconômicas e falta apoio a quem atua para sanar graves problemas sociais. A filantropia brasileira, ao contrário das novas tendências nos EUA e Europa, carece de um pensamento mais horizontal, criativo e flexível, em linha com os setores que se mostram mais arrojados.

Mesmo que grande parte da filantropia brasileira priorize a educação, essencial no combate ao sistema de exclusão vigente no país, muitos desafios ainda persistem. Basta considerar seriamente que, até hoje, não conseguimos debelar a evasão escolar. Por outro lado, parece haver um desinteresse, cada vez maior, da juventude pela escola. Precisamos refletir, de maneira abrangente, sobre a promoção de um ensino integral efetivo unido a projetos práticos, que respondam aos anseios e pressões da vida e da comunidade em que cada jovem está inserido. O que estamos fazendo, de fato, pela educação indígena ou quilombola?

Diferentemente do modelo tradicional, imediatista e que visa tratar apenas os sintomas dos problemas sociais, a filantropia progressista busca atacar suas causas estruturais, promovendo mudanças sistêmicas. Ela desafia o setor a ampliar seu leque de atuação, investindo em causas historicamente negligenciadas, como justiça criminal, reintegração de jovens em medidas socioeducativas e iniciativas de equidade racial e de gênero.

O setor filantrópico brasileiro tem mostrado criatividade para driblar as adversidades do campo social nas últimas décadas, mas ainda carece de uma visão estratégica de longo prazo que promova mudanças estruturais. Precisamos assumir uma identidade própria e uma postura mais ousada, que enfrente as desigualdades e invista em soluções que dialoguem com a complexidade das necessidades e os desafios de nosso país. Porém, mais do que abrir o leque temático de investimento, precisamos mergulhar em sua forma e conteúdo.

Filantropia progressista significa, em primeiro lugar, atuação horizontal de doadoras e doadores e donatárias e donatários. A Bridgespan, organização internacional especializada em consultoria de gestão estratégica para grandes filantropos, endossa esse modelo em artigo que reflete sobre o papel das organizações especializadas em selecionar, investir e dar capacidade institucional para entidades comunitárias de base e como são efetivas em promover impacto social de longo prazo.

Denominadas pela Bridgespan de collaboratives, têm experiência acumulada no apoio às instituições intermediárias que se colocam entre quem possui recursos e o desejo de mudança social sistêmica e as organizações comunitárias de base. Ou seja, entre quem tem o capital e quem conhece profundamente as causas sociais mais prementes de cada país e as OSCs representativas para o enfrentamento dos inúmeros problemas oriundos das desigualdades. Nesse percurso, a ousadia de fato se transforma em impacto social.

Ainda longe desse cenário ideal, as lideranças sociais brasileiras se dispõem a trabalhar com questões complexas sem os recursos necessários para tratar estas questões. São pessoas que aprendem a ser criativas e estratégicas a partir de um cenário de precariedade. É até difícil de imaginar o que seria possível alcançar em um cenário de plenitude.

O Brasil é continental, nossos problemas sociais e desigualdades, profundos. Se não nos unirmos e não ousarmos, vamos continuar “enxugando gelo”, atormentados pelo futuro que nos aguarda caso o racismo ambiental, as mudanças climáticas e as inúmeras desigualdades continuem a crescer. Estamos caminhando a passos largos para a conhecida expressão popular vai dar ruim.

Mônica De Roure

Mônica De Roure é vice-presidente e diretora de Relações Institucionais da BrazilFoundation desde 2013, atuando no desenvolvimento de parcerias estratégicas e captação de recursos e na gestão da Fundação no Brasil. Foi diretora do Programa Brasil e de Operações Internacionais para América Latina e África da Ashoka Empreendedores Sociais. Tem doutorado em Literatura Comparada da UERJ e mestrado em História Social da Cultura pela PUC-RJ

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