Era uma vez um guerreiro que causava inveja por sua força e beleza. Defendeu seu povo do ataque do inimigo com bravura, mas seu rival Kamo (o Sol) revidou, transformando a casa de Kamukuwaká em pedra. O guerreiro fugiu e se abrigou no céu, graças a ajuda de pássaros que abriram um buraco no teto da rocha. A gruta de Kamukuwaká, a casa atemporal desse personagem mítico do Parque Indígena do Xingu, no Mato Grosso, entrou para a cosmogonia e para os rituais indígenas. Grafismos rupestres na parede da caverna contam, ou melhor, contavam, as histórias do guerreiro e de seu povo – imagens de uma época que o Brasil, provavelmente, nem tinha sido descoberto.
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O tempo passou, mas os inimigos de Kamukuwaká continuam a postos e vivíssimos. Em pleno século XXI, seus adversários são bem reais, de carne e osso, e com interesses econômicos bem definidos. No lugar de transformarem a casa do guerreiro em pedra, como conta a cosmogonia indígena, agrediram seu povo, destruindo sua memória e atacando sua história ancestral. A golpes de picareta, um criminoso desconhecido destruiu as antigas gravuras rupestres que compõem a superfície da gruta.
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Para os Wauja, um dos 16 povos do Parque Indígena do Xingu, a gruta de Kamukuwaká é sagrada. Assim como para outros povos do alto e médio Xingu, incluindo os Bakairi, que, apesar de não estarem no território indígena, vivem na região e compartilham da cultura xinguana.
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Veja o que já enviamosSeis anos depois do crime de vandalismo, os Wauja se vingam dos inimigos contemporâneos de Kamukuwaká – um contra-ataque que não poderia ser mais antenado com o século XXI. Recriaram o lugar sagrado em 3D em tamanho e peso idênticos aos da caverna original: oito metros de largura x quatro metros de altura e pesando uma tonelada. As gravuras rupestres foram restauradas digitalmente na superfície da gruta, que deixou de ser uma caverna de pedra para ser replicada, em um estúdio, em isopor e poliuretano. Para adquirir uma aparência mais realista, a réplica ganhou pinceladas de pigmentos e vernizes.
Ataque cultural
Numa expedição em setembro de 2018, os Wauja se depararam com uma cena de vandalismo — um ataque orquestrado a memória ancestral dos indígenas resultante das crescentes tensões entre as comunidades do Xingu e os interesses econômicos do agronegócio. Fazendas de soja, milho e algodão cercam todo o território e vêm colocando em risco os rios, as manchas florestais remanescentes e os modos de vida dos indígenas no território.
Os fragmentos dos desenhos da rocha foram deixados pelo caminho. Espalhados pelo chão, imagens destruídas de esqueleto de peixes, de mulheres e de outros elementos do cotidiano dos indígenas que representam a fonte de grande parte do repertório gráfico tradicional do Xingu – gravuras que, até hoje, são reproduzidos nas pinturas corporais, nas cerâmicas e nas cestarias, além de inspirar danças e canções.
“Quando chegamos a gruta, vimos as marcas de ferramenta. As gravuras tinham sido arrancadas da pedra”, relembra Piratá Waurá, cineasta, fotógrafo e professor de Português para crianças na aldeia Piyulaga, uma das nove comunidades da Terra Indígena Batovi, o território original dos Wauja no Xingu, onde ele mora com a mulher e o filho.
Piratá levou um susto quando viu, pela primeira vez, naquela expedição em setembro de 2018, a cena de destruição em Kamukuwaká. A ida a gruta era para iniciar um projeto de preservação documental da caverna, porque sabiam que a gruta sagrada corria sérios perigos — infelizmente, não chegaram a tempo de impedir o vandalismo.
“Foi só tristeza. Não tem outra palavra”, resume Piratá, que acompanhou todo o processo de feitura da réplica e enxerga na versão em 3D um ato de “resistência” do seu povo: “Kamukuwaká nos protege, então precisamos proteger Kamukuwaká e a forma como ele nos ensinou a estar no mundo”.
Curiosamente, a palavra usada na língua Wauja, do tronco linguístico Aruak, para referir-se a gravura (opopalapitse) é a mesma usada para a réplica e também para fotografia. “Todas essas coisas são imagens que são muito reais, presentes e exatas”, analisa o antropólogo americano, Chris Ball, que, há 20 anos, trabalha com esse povo: “A própria caverna de Kamukuwaká, uma caverna feita de pedra, é uma réplica da casa que Kamukuwaká construiu para viver nos tempos míticos e onde ele ainda vive”.
Nas inúmeras reuniões que se seguiram ao crime para pensar como reagir ao vandalismo, Piratá expressava repetidamente o mesmo questionamento, lembra, seis anos depois, a arqueóloga Gabriele Viegas: “Vocês destruiriam a escola que seus filhos vão buscar conhecimento? Não! Então, pergunto: por que querem destruir a escola das nossas crianças?” Ela assessora os Wauja desde meados dos anos 2000.
Foi em Aruak que Piratá contou o que viu aos seus parentes — os Wauja só falam português quando estão na presença de não-indígenas, que chamam de kajaopa. As crianças só começam a aprender o idioma com pouco mais de dez anos — na primeira infância falam na língua materna, para garantir a preservação da cultura.
Apagamento de Kamukuwaká
“Kamukuwaká é a origem de todo conhecimento cultural. Foi Kamukuwaká que nos ensinou como devemos nos relacionar com o mundo à nossa volta, como respeitar um ao outro e como cuidar do meio ambiente”, resumiu o cacique da aldeia Topepeweke, Akari Wuará, sobre como seu povo interpreta o ataque que sofreu.
À época da destruição, a pesquisadora americana Emilienne Ireland, interpretou o ato como sendo “conceitualmente equivalente à profanação da Basílica do Santo Sepulcro, em Jerusalém, e à destruição de todos os exemplares da bíblia, ou seja, a eliminação do testemunho, do veículo e da mensagem”. Especialista em Antropologia Cultural, Ireland viveu entre os Wauja nos 1980.
Juntos, os grafismos rupestres gravados na parede da gruta são para os Wauja o que um livro é para uma não indígena: uma fonte de conhecimentos. São também através dos desenhos que o guerreiro Kamukuwaká, considerado pelos indígenas uma entidade extra-humana, ensina o ritual de furação da orelha – uma prática que ocorre na passagem da adolescência para a vida adulta e se perpetua até hoje, sendo transmitida de geração para geração para formar os futuros chefes, teria sido realizada primeira vez justamente na gruta de Kamukuwaká.
Todos esses ensinamentos de Kamukuwaká teriam sido apagados para sempre, não fosse o engajamento dos indígenas, de uma equipe independente de antropólogos e arqueólogos brasileiros e uma aliança internacional de artistas e pesquisadores estrangeiros. Além da parceria com duas instituições: a espanhola Fundação Factum, uma referência global em documentação de alta resolução de artefatos culturais e na produção de fac-símiles, como já fizera com a tumba do faraó Tutancâmon, e a inglesa People´s Palace Project (PPP), um centro de arte e pesquisa baseado em Londres.
Foi artista sonoro, compositor e cantor folk, o britânico Nathaniel Mann quem fez a conexão da Factum e da PPP com os Wauja, após uma residência artística na comunidade, em 2017. Foi nessa época que ele conheceu a história da gruta de Kamukuwaká, nunca mais esqueceu o que ouviu e, até hoje, se mantém conectado com esse povo.
Com a réplica, a preservação digital de Kamukuwaká estará garantida, o que vai permitir que as diferentes gerações dos povos indígenas continuem visitando a gruta e mergulhando na sua própria história. Os ensinamentos do guerreiro serão repassados ainda em dois outros projetos de realidade virtual: um para a comunidade e outro para os não-indígenas, que será apresentado na COP30 em Belém, em 2025.
É no centro da aldeia que as decisões são tomadas — as aldeias xinguanas reproduzem sempre o mesmo modelo, com as casas tradicionais, cobertas de sapé, em disposição circular e é no meio dela que fica a chamada casa dos homens. Todos os dias, faça chuva ou faça sol, caciques e anciãos se reúnem para decidir sobre todos os assuntos. Da realização de um wanaki, como chamam mutirão na sua língua, a construção de casas, de roça, até temas mais complexos, como foi o caso da parceria com a Factum e a PPP.
Patrimônio sem proteção
Embarcada num navio cargueiro, a réplica em 3D da gruta de Kamukuwaká zarpou de navio de Valencia, na Espanha, cruzou o oceano Atlântico em direção ao porto de Santos, em São Paulo. A segunda etapa do trajeto foi feita de caminhão, do litoral paulista para a aldeia Ulupuwene, o novo endereço da gruta de Kamukuwaká. Ao todo, uma viagem de oito mil quilômetros.
A despeito de ser um sítio arqueológico desde 2002 e tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) em 2016 — o tombamento mesmo foi em 2010, mas só foi publicado seis anos depois –, a caverna sagrada sempre viveu sob ameaça. O Iphan sequer chegou a instalar uma placa no local, avisando sobre o tombamento.
“Nossas políticas públicas são espelhadas na arqueologia europeia. O Iphan sabe tombar igreja, centros históricos… mas não sabe o que fazer com paisagens dos povos nativos”, analisa Ivã Bocchini, coordenador-adjunto do Programa Xingu do Instituto Socioambiental (ISA).
Já se passaram seis anos e os culpados pelo crime de vandalismo nunca foram identificados. A investigação criminal da Polícia Federal (PF) segue em segredo de justiça. O Ministério Público do Mato Grosso e a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) também se envolveram na investigação.
Primeira terra indígena
O Xingu foi a primeira terra indígena homologada no país, em 31 de julho de 1961. O então presidente Jânio Quadros cedeu a pressão do antropólogo Darcy Ribeiro e dos irmãos Orlando, Leonardo e Cláudio Villas-Bôas, criou o Parque Indígena do Xingu, mas demarcou uma área bem menor do que a superfície inicialmente proposta — antes da demarcação, o território ancestral dos povos xinguanos incluía toda a extensão dos rios formadores do rio Xingu, um dos principais afluentes do Amazonas.
Com a demarcação do território, a gruta de Kamukuwaká ficou fora do Parque Indígena do Xingu. A caverna está localizada dentro de uma fazenda de soja, o que vinha dificultando o acesso dos indígenas a gruta sagrada — a aldeia mais próxima ao local fica a 30km de distância.
Há cerca de dez anos, os xinguanos decidiram adotar a nomenclatura de Território Indígena do Xingu (TIX) no lugar de Parque Indígena do Xingu, por considerar que a mudança de nome condiz melhor com o cotidiano de luta e resistência do seu povo nas aldeias.
Os Wauja somam 700 pessoas. Sobreviveram a conflitos com fazendeiros e garimpeiros, além de epidemias. Nunca abriram mão dos seus conhecimentos fundamentais e das memórias ancestrais para a sua reprodução étnica e sociocultural. Não seria com essa tentativa de apagamento cultural, feito por um ataque calculado para destruir a memória dos indígenas, que os Wauja sucumbiriam. Kamukuwaká mudou de endereço, mas, para os indígenas, continua vivíssimo.