Única vereadora eleita no país pelo Democracia Cristã (DC), Gilvan Masferrer é uma mulher trans. O vestido estampado preto e branco já está separado no armário para a diplomação, que será nesta quarta-feira, dia 16. Neste dia, Gilvan receberá o diploma dado pela Justiça Eleitoral atestando que a candidata foi eleita e está apta para tomar posse na Câmara de Vereadores de Uberlândia (MG). Afiliada a um partido conservador e de direita, Gilvan sonha, antes mesmo de tomar posse, em mudar de legenda para ir ao encontro de “colegas” com o qual tenha mais identidade ideológica. “Penso muito no Psol, que, infelizmente, aqui na minha cidade, não tem muita visibilidade”.
Eleita por um partido que prega o resgate dos valores morais e o respeito à família, Gilvan dá de ombros para o preconceito dos seus correligionários: “Não me abalam em nada e sabe por quê? A sociedade mudou e nós saímos da invisibilidade”. Sua vitória é um tapa com luva pelica nos transfóbicos de plantão e também no presidente do partido, José Maria Eymael. Quando disputou à presidência, em 2014, o advogado chegou a afirmar, sem meias palavras, ser absolutamente contra a criminalização da homofobia e defendeu que a instituição casamento é uma relação de homem e mulher.
Gilvan não foi a única mulher trans e ligada ao movimento LGBTQIA+ eleita nas eleições deste ano. Pouco mais de 20 candidatos transgêneros viraram vereadores em todo o país. Ainda assim, suas vidas continua por um triz. Os ataques transfóbicos continuam ocorrendo pelo país afora. Em Niterói (RJ), a vereadora Benny Briolli (Psol) recebeu ameaça de morte. O mesmo ocorreu com Duda Salabert (PDT), em Belo Horizonte (MG).
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Se na diplomação o modelito escolhido será um vestido; na posse, em janeiro, Gilvan pretende usar um “terninho bem cortado” e um “salto bem alto”. Quando entrar na Câmara de Vereadores de Uberlândia para começar seu primeiro mandato como parlamentar, Gilvan sabe que não será fácil defender a comunidade LGBTQIA+. Ela conhece de perto a ira dos seus inimigos. Há sete anos, correu o sério risco de entrar para as estatísticas da ONG Transgender Europe, que posiciona o Brasil entre os países que mais mata transgêneros. Ao sair para comprar um refrigerante no bar perto de casa, onde mora até hoje na periferia da cidade, Gilvan foi brutalmente atacada por dois homens: “Fui massacrada”, lembra.
Arrastada para o meio do mato, perdeu 26 dentes, 3% de massa cefálica e um rim. Algumas cirurgias depois e mesmo colocando platina no rosto para reconstituir as feições, as marcas do crime são visíveis no seu rosto. “Um olho é mais baixo que o outro”, observa Gustavo Spedo, amigo de longa data e fiel aliado durante a campanha eleitoral. Ele presenciou cenas de preconceito explícito durante a campanha. Ela entregava santinhos da sua campanha no sinal da avenida Jerônimo José Alves quando um motorista não identificado, ao abrir a janela do carro, teria jogado uma garrafa de água na candidata. Outros eleitores pegaram o material de campanha e jogaram no bueiro da rua, na frente da candidata.
Antes mesmo de eleita, Gilvan transformou a rua no seu palanque. Virou militante nas horas vagas. O sustento sempre veio dos serviços a domicílio de manicure e maquiagem. É no espaço público, especialmente na periferia de Uberlândia, junto a moradores de rua, usuários de drogas, população carente, que Gilvan cresceu politicamente. Eleita com 1.347 votos e sem nenhum apoio financeiro do DC, Gilvan contou exclusivamente com a ajuda de amigos, que, assim como Gustavo, colocaram a mão no bolso para financiar santinhos. Sem dinheiro e sem carro, Gilvan se elegeu contando com os votos dos eleitores da periferia de Uberlândia, moradores de rua, população LGBTQIA+ e vizinhos.
[g1_quote author_name=”Gilvan Masferrer” author_description=”vereadora trans eleita em Uberlândia” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Você acha que eu, uma trans, pobre, da periferia, com seios de silicone, não sofri no sinaleiro perante aos carros quando eu ia entregar um santinho meu? As pessoas cochicham, riem. Quem é atacado muitas das vezes tem que ser resistente e sobreviver
[/g1_quote]“Você acha que eu, uma trans, pobre, da periferia, com seios de silicone, não sofri no sinaleiro perante aos carros quando eu ia entregar um santinho meu? As pessoas cochicham, riem. Quem é atacado muitas das vezes tem que ser resistente e sobreviver”. Gilvan sobreviveu e, aos 30 anos, garante que vai continuar defendendo os “mais pobres” e “minha comunidade”, apesar dos dogmas conservadores do partido. A seu favor, o fato de não ser a primeira vereadora trans de Uberlândia. Sua antecessora, Pâmela Volp, foi eleita pelo PP, mas acabou sendo cassada em 2014 por tráfico internacional de pessoas.
À frente do projeto social “Me ajude a Ajudar”, Gilvan pretende usar seu mandato e a política como “ferramenta de transformação social”. Foi nas ruas da cidade que começou a distribuir alimentos e arrecadar doações para famílias carentes. Quinze anos depois, seu projeto social já contabilizou a ajuda a cerca de 2,3 mil pessoas carentes em Uberlândia. “Trabalhamos muito com os usuários de drogas que vivem no entorno da rodoviária”. A vereadora defende políticas públicas voltadas para os seguintes grupos sociais: comunidade LGBTQIA+, negros, religiosos de matriz africana e mulheres.