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Tragédia familiar: três irmãos assassinados juntos em Pedrinhas
Especial 'Complexo de Pedrinhas: marcas de uma barbárie' | Presos sem mandado, moradores da periferia de São Luís foram executados em uma das chacinas no complexo penitenciário; pais ainda esperam indenização
“Levaram meus filhos para matar”. O desabafo é de Rosa Arruda*, mãe que um dia já teve quatro filhos, hoje só tem um. Ela é uma entre os familiares das 64 pessoas assassinadas dentro do Complexo Penitenciário de Pedrinhas em São Luís do Maranhão entre os anos de 2013 e 2014 durante uma rebelião continuada. Se uma esposa perde o marido é chamada de viúva, se uma filha perde os pais é chamada de órfã… como se chama uma mãe que perde os filhos?
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No começo da manhã do dia 10 de abril de 2013, o céu é azul e quase sem nuvens em São Luís, em contraste com o grande muro amarelo do Complexo Penitenciário de Pedrinhas, onde uma família está em frente à entrada de uma das unidades aos prantos. Três mulheres e um homem estão próximos a um carro cinza. Uma das mulheres é bem jovem, de cabelos presos em um rabo de cavalo baixo e pele negra escura. Naquele momento de dor, é ela quem está amparando sua mãe e sua tia, que gritam e choram com as mãos para o céu. Afinal, nenhuma família está preparada para a notícia que receberam no início daquela manhã.
A Central de Custódia de Presos de Justiça (CCPJ) era uma das sete unidades do Complexo Penitenciário de Pedrinhas, localizado em bairro de mesmo nome, na zona rural da capital do estado, São Luís. Todas as unidades estavam em estado de rebelião continuada, com massacres cada vez maiores e mais sangrentos. Foi nesse contexto, praticamente no início da onda de motins que aconteceria naquele ano e entraria pelo ano seguinte, que cinco pessoas foram assassinadas dentro de uma cela da CCPJ naquela madrugada.
As famílias das vítimas não receberam a notificação das mortes por uma fonte oficial. Na época, os massacres que ocorriam dentro de Pedrinhas eram quase um reality show, transmitido pelos veículos de comunicação para toda a população maranhense – os mais sangrentos divulgados nacionalmente. Naquele dia, os nomes dos mortos foram anunciados em um noticiário de jornalismo policial, pouco depois das 5h da manhã; o crime tinha acabado de ocorrer. As mulheres e o homem em prantos na frente do complexo eram os Arruda – Rosa, o marido, Arnaldo*, uma cunhada e uma sobrinha: entre os cinco mortos, eles não haviam perdido apenas um parente, mas três.
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Veja o que já enviamosA cena fica completa com os corpos sendo trazidos dentro de caixas de metal, quatro ao todo, já que uma das vítimas desta chacina em Pedrinhas chegou a ser socorrida e morreu no hospital. O corpo descalço e sem camisa, tatuado, com apenas uma bermuda branca, rosa e preta com desenhos gráficos, comprova para o pai que realmente se trata de um dos seus filhos, embora ainda ele ainda vá fazer o reconhecimento oficial no Instituto Médico Legal.
A Prisão
As cinco vítimas daquele massacre em 10 de abril haviam sido presos juntos e vinham do mesmo bairro: Vila Isabel Cafeteira, uma periferia da cidade de São Luís que teve início como a maioria das periferias das metrópoles brasileiras – por meio de ocupações. Antes de ser reconhecida como bairro, a região era chamada de Invasão. Até hoje o bairro carece de políticas públicas como saúde, educação, saneamento básico e infraestrutura.
A prisão ocorreu por meio de denúncia de que dois dos irmãos Arruda estariam vendendo drogas. Dentro do bairro, a localização da rua em que eles moravam era conhecida historicamente por conta do tráfico de entorpecentes. A investigação deveria ser feita pela Polícia Civil e os acusados deveriam ser indiciados, caso houvesse provas. Mas o que aconteceu foi uma batida realizada pela Polícia Militar no endereço dos pais dos dois jovens.
“Sabe aquelas cenas que a gente vê em filme com a polícia entrando na casa das pessoas com o pé na porta, quebrando tudo? Foi assim lá em casa” relembra a mãe, Rosa Arruda, mais de 10 anos depois. Os carros de polícia (chamados de camburão no Maranhão) pararam na rua e os policiais entraram nas casas sem nenhum mandado ou atividade que pudesse ser enquadrada como flagrante. Já era começo de noite. Rosa estava em casa com seus quatro filhos: três moravam com ela e o marido; o mais velho, Ricardo*, vivia com sua esposa e filho, mas havia passado para dar um beijo nos pais após o trabalho.
Ricardo*, por ser o filho que sempre resolvia os problemas da família, estava ciente que o que estava acontecendo na casa da sua mãe era ilegal. Os policiais deram voz de prisão aos dois irmãos do meio, Vinícius*, de 30 anos, e Marcelo*, de 26, ao mesmo tempo que espancavam os acusados. O irmão mais velho ficou indignado e começou a pedir que os agentes parassem com a violência. “Colocaram o apelido nele de ‘brabo’ (bravo) porque ele se meteu. Algemaram meu filho e levaram ele (sic) primeiro pra dentro do carro, seguido dos irmãos. Porque ele sabia que aquilo não estava certo não e ele sempre defendeu os irmãos” relata a mãe, hoje com 74 anos.
Como foi preso por discutir com os policiais, Ricardo deveria responder pelo crime de desacato à autoridade, mas ele foi denunciado pelos PMs na delegacia por tráfico, junto aos irmãos e dois vizinhos. Um dos vizinhos, inclusive, também era parente dos irmãos Arruda, um primo de 2º grau.
A família sabia que Vinícius e Marcelo eram envolvidos com “coisas erradas”. Por conta de conhecer os amigos com quem os dois filhos andavam, infelizmente, Rosa sempre temeu o dia em que um deles fosse preso. No entanto, nem em seus piores pesadelos imaginou que os dois seriam presos e, ainda, Ricardo fosse junto. O filho mais velho, na família, era como se fosse o modelo de filho ideal. Sempre ajudou os pais: um homem descrito como íntegro, trabalhador, carismático. Essa era a reputação do cidadão de 33 anos, que acabara de ter o primeiro filho e trabalhava em um dos maiores hospitais públicos do estado como maqueiro. Quando foi preso, Ricardo estava com o uniforme do trabalho e os policiais alegaram que ele também fazia parte do crime organizado, aumentando a agonia da família com a injustiça.
A chacina
O número de execuções dentro dos presídios do Complexo de Pedrinhas estava aumentando desde 2010. Em 2013, começou uma rebelião continuada: seguidos motins com mortes de detentos. Quem era encaminhado para o complexo penitenciário, naquela época, vivia com a apreensão de ser a próxima vítima. Os cinco homens presos na Vila Isabel Cafeteira foram alocados juntos na triagem, unidade que é a porta de entrada para o complexo. Em menos de uma semana, eles foram transferidos para a CCPJ.
A unidade tinha pessoas em privação de liberdade que se identificavam como integrantes das duas maiores facções do estado na época: Primeiro Comando do Maranhão (PCM) e Bonde dos 40 (B40). As duas haviam sido fundadas recentemente com a união de gangues como efeito da expansão das grandes facções nacionais, vindas do Sudeste do país. (aqui vai ter um link para a outra matéria).
Segundo informações dos colegas de cela, naquela madrugada do dia 10, os cinco moradores da Vila Isabel Cafeteira foram chamados para conversar em outra cela. Como as portas das celas da CCPJ ficavam todas destrancadas e os detentos livres para circular dentro do pavilhão, eles atenderam ao chamado. O convite havia sido feito por amigos de infância, que cresceram juntos no mesmo bairro, para que pudessem superar uma desavença que havia entre eles e fazer as pazes.
De guarda baixa, os cinco foram atacados com chuços, instrumento pontiagudo feito de forma artesanal pelas pessoas privadas de liberdade, podendo ser de ferro ou outro material resistente. Com diversas perfurações no torso e na cabeça, quatro deles morreram ali mesmo na cela, enquanto Simão*, primo dos irmãos Arruda, chegou a ser socorrido, mas não resistiu aos ferimentos.
“Mataram os três filhos meus! Uma penitenciária dessas… tem diretor… tem a polícia… e eles não veem a pessoa gritando? Pedindo socorro?”, disse, aos prantos, Arnaldo, o pai dos irmãos Arruda, indignado e inconformado, aos jornalistas que foram ao Complexo de Pedrinhas, naquela manhã de abril de 2013.
Como a Isabel Cafeteira é dominada pelo Bonde dos 40, automaticamente foi dada a autoria do crime a esta facção. Nenhum dos cinco teve direito de se manifestar sobre o crime de tráfico do qual estavam sendo acusados, menos ainda o direito a um julgamento. Os nomes de todas as vítimas foram divulgados pela imprensa como “criminosos”, “traficantes” e “faccionados” – inclusive Ricardo. Os responsáveis pela chacina dos cinco no Complexo de Pedrinhas chegaram a ser identificados, processados e condenados: alguns ainda estão cumprindo pena.
O luto
Assim que os filhos foram assassinados, o casal Arruda não teve como viver seu luto de forma apropriada; situação comum dentro das periferias quando alguém é morto por conta da criminalidade. As famílias são coagidas socialmente a não poder chorar a morte porque a vítima “mereceu”. E, ainda, vivem o medo de sofrer uma retaliação do crime organizado.
Com a morte dos três entalada na garganta, junto ao choro acumulado, Rosa e Arnaldo imediatamente procuraram por justiça. O pai lutou incansavelmente pela memória dos filhos – não apenas do trabalhador e pai de família Ricardo, mas também de Vinicius e Marcelo, que, apesar das denúncias e suspeitas, morreram sem qualquer condenação ou passagem anterior pela polícia. Foi até a imprensa denunciar, procurou uma advogada para processar o Governo do Estado… Fez o que pode, mas, com a sequência de massacres em Pedrinhas, a voz de um pai dilacerado pela dor foi se perdendo no meio de tantas outras.
Enquanto da Justiça não vinha nenhuma resposta, o homem forte que criou quatro filhos e sempre sustentou a casa com seu trabalho foi murchando física e mentalmente. “Cada pessoa que chegava nessa casa, ele mandava sentar aqui na sala e começava a falar dos meninos (…). Ele não está bem, não, sabe? Tá começando a ‘variar’” comenta Rosa, que hoje vive praticamente em função dos cuidados da saúde do marido. Nem ela e nem o filho mais novo aguentavam falar sobre essa dor. Enquanto o pai encontrou na fala o conforto para a necessidade de contar a história dos seus filhos.
Arnaldo foi diagnosticado com depressão e recebeu a prescrição de remédios para tomar, mas logo abandonou a medicação por entender que não surtia o efeito esperado. A família nunca recebeu nenhum tipo de apoio social ou psicológico do Governo do Estado. Com o trauma, sua saúde foi piorando até que ele sofreu um AVC. Atualmente, com 67 anos, é apenas uma sombra do homem que costumava ser: ainda fala sobre os filhos em qualquer oportunidade e agora chora sempre que lembra do que aconteceu.
Em 2017, o juiz Clodomir Reis, da 3ª Vara Cível da Seção Judiciária do Maranhão, que faz parte do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, considerou que a morte dos 64 presos, entre janeiro de 2013 e janeiro de 2014, gerou um dano coletivo para as famílias e que o Estado deveria indenizá-las pela violência dentro do sistema penitenciário. A Justiça entendeu que o Governo do Maranhão descumpriu com a Lei de Diretrizes Penais em diversos aspectos, porém, principalmente em zelar pela integridade das pessoas em cumprimento de pena privativa de liberdade.
O valor da indenização foi definido em R$ 100 mil para as famílias de cada pessoa assassinada dentro do Complexo de Pedrinhas. Também foi determinado que seria paga uma pensão vitalícia aos familiares, no valor de um salário mínimo, como forma de compensação. O estado ainda foi condenado a indenizar outras vítimas da violência como os alvos dos ataques à ônibus na cidade de São Luís. (link para outra matéria). O Governo do Maranhão recorreu da decisão e, dez anos depois da tragédia, nenhuma família dos assassinados recebeu nenhuma indenização.
*Os nomes foram trocadas a pedido de Rosa
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Jornalista e mestra em Comunicação pela UFMA (Universidade Federal do Maranhão. É cofundadora da agência Sebá Comunica e assessora de comunicação na pauta dos Direitos Humanos. Metade maranhense e metade carioca, é apaixonada por leitura e escrita criativa.