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Rubens Paiva e mais 209 desaparecidos: a ferida exposta por ‘Ainda Estou Aqui’
Famílias como a de Eunice Paiva, retratada no filme, receberão novas certidões de óbito para constar que morte violenta foi causada pelo Estado durante a ditadura
Em um dos momentos marcantes de ‘Ainda Estou Aqui’, Eunice Paiva recebe a certidão de óbito do marido, o ex-deputado Rubens Paiva, 25 anos depois de seu desaparecimento, e afirma aos jornalistas: “É uma sensação esquisita sentir-se aliviada com uma certidão de óbito”. No filme, Fernanda Torres – em sua atuação premiada com o Globo de Ouro de melhor atriz de drama – repete exatamente a frase da viúva naquela tarde de fevereiro de 1996, no 1º Cartório de Registro Civil de São Paulo.
Aquela certidão simples apenas formalizava o óbito de Rubens Paiva – “de acordo com a lei 9.140”, a Lei dos Desaparecidos Políticos, sancionada em 1995, reconhecendo como mortos os desaparecidos durante a ditadura: o documento informava que ele havia desaparecido em 1971, tinha deixado bens mas não testamento e deixara também cinco filhos. Certidões semelhantes foram conseguidas por parentes de outras dezenas de vítimas da ditadura cujos corpos, como o do ex-deputado, nunca foram encontrados – o relatório final da Comissão da Verdade, concluído em 2014, identificou 210 desaparecidos durante a ditadura (Paiva incluído). Agora, essas certidões estão sendo retificadas, com a causa mortis estabelecida: “morte não natural, violenta, causada pelo Estado brasileiro no contexto da perseguição sistemática e dissidentes políticos no regime ditatorial de 1964”.
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Essa alteração atende a uma das recomendações do relatório final da Comissão Nacional da Verdade, mas só agora, mais de 10 anos depois, está sendo colocada em prática após determinação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). “Essa medida é um grande avanço. Vai ser agora uma medida definitiva para conseguir essas certidões de óbitos. Acho que muitas das pessoas estão assistindo o filme ‘Ainda Estou Aqui’, onde a gente vê o drama das famílias pela obtenção de um documento que reconhece a morte”, afirmou a procuradora Eugênia Augusta Gonzaga, presidente da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), em entrevista à TvPT, nesta segunda-feira (06/01).
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Veja o que já enviamosEugênia Gonzaga lembrou as dificuldades enfrentadas pelas famílias como a do ex-deputado Rubens Paiva. “Tinha muitos casos em que a ditadura fez um atestado de óbito, mas fez com causa-morte falsa, por exemplo, asfixia mecânica, suicídio e outras coisas. Então era uma demanda muito antiga das famílias ter esse documento”, destacou a procuradora. “No filme, a gente vê ali aquele primeiro documento obtido pela Dona Eunice Paiva, que foi entregue para várias famílias. Porém aquele documento era apenas um reconhecimento formal de que a pessoa havia morrido”, acrescentou.
Ao receber o atestado de óbito em 1996, Eunice Paiva fez questão de posar sorrindo para os fotógrafos com o documento na mão. “Durante muito tempo, como não nos entregavam esse papel, eu e meus filhos (cinco) ficamos na dúvida se Rubens estava morto ou não”, disse aos jornalistas. “Essa foi a forma de tortura mais violenta que impuseram às famílias dos desaparecidos políticos”, adicionou. No livro ‘Ainda Estou Aqui’, que inspirou o filme, o filho Marcelo Rubens Paiva descreveu a cena. “Ela ergueu o atestado de óbito para a imprensa, como um troféu. Foi naquele momento que descobri: ali estava a verdadeira heroína da família; sobre ela que nós, escritores, deveríamos escrever. Minha mãe esteve na capa de todos os jornais no dia seguinte. Com o atestado de óbito erguido, alegre. Uma batalha foi vencida. V de vitória. Ela nunca faria uma cara triste”.
Muitos parentes de desaparecidos, entretanto, não ficaram satisfeitas com a certidão estabelecida pela Lei 9.140/1015. “Muitas famílias até recusaram esse documento porque não falava a data da morte, não falava a causa, não falava onde a pessoa tinha morrido”, contou a presidente da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. A procuradora Eugênia Gonzaga contou que, em 2018, a CEMDP – que ela presidia desde a criação em 2015 – começou esse trabalho de retificação junto aos cartórios mas houve muita resistência. “Nós conseguimos a retificação de apenas 13 certidões de óbito nesse período de 2018 a 2019”, lembrou.
Em 2019, Jair Bolsonaro exonerou a procuradora da presidência da Comissão, trocou quatro membros e todo o trabalho parou. No último de governo, o ex-presidente extinguiu a CEMDP, que só foi retomada em julho de 2024, novamente com Eugênia na presidência. Foram retomadas conversas entre a comissão, o Ministério da Justiça e Segurança Pública e o Conselho Nacional de Justiça para a retificação das certidões dos desaparecidos e também de mortos pela ditadura. “Nós, na Comissão, preparamos uma planilha com 414 nomes de pessoas com seus assentos de óbito, número dos cartórios, endereço dos cartórios onde estão esses assentos que têm que ser retificados e encaminhamos ao CNJ que assinou essa resolução que, na prática, vai ser uma determinação a cada um desses cartórios para que se promova essas retificações”, explicou a procuradora na entrevista à TvPT.
A presidente da CEMDP acredita que a resolução do CNJ vai acelerar esse trabalho. “Para as famílias, é uma forma de reparação imaterial que eu nem sequer imaginava a importância. Mas, à medida que eu fui entregando esses documentos, eu vi o quanto para elas é importante ter esse reconhecimento formal e verdadeiro da morte e da causa da morte”, afirmou Eugênia. “É uma reparação moral que atende ao princípio da dignidade da pessoa humana”.
Na entrevista, a procuradora Eugênia Gonzaga falou também sobre a recriação da Equipe de Identificação de Mortos e Desaparecidos Políticos (EIMDP), instituída pelo Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC) em 10 de dezembro de 2024, data de aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, e no mesmo dia em que também foi assinado o documento sobre as retificações nas certidões de óbitos dos mortos e desaparecidos durante a ditadura militar. “Existem pessoas que estão habituadas nesse trabalho de busca de desaparecidos, são antropólogos, historiadores, arqueólogos, médicos, odontólogos – vários profissionais espalhados pelo país. Nós fazemos uma parceria com, universidades ou com secretarias de segurança pública ou outros órgãos, onde esses profissionais trabalham, para que eles seja emprestados ocasionalmente, à medida que tem uma diligência da comissão a ser feita”, explicou.
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Oscar Valporto é carioca e jornalista – carioca de mar e bar, de samba e futebol; jornalista, desde 1981, no Jornal do Brasil, O Globo, O Dia, no Governo do Rio, no Viva Rio, no Comitê Olímpico Brasileiro. Voltou ao Rio, em 2016, após oito anos no Correio* (Salvador, Bahia), onde foi editor executivo e editor-chefe. Contribui com o #Colabora desde sua fundação e, desde 2019, é um dos editores do site onde também pública as crônicas #RioéRua, sobre suas andanças pela cidade