ODS 1
‘Racismo não é tema que atraia atenção eleitoral’
Na primeira votação com mais candidatos negros do que brancos, Thales Vieira, do Observatório da Branquitude, critica a "sobrerrepresentação branca e masculina" no comando dos partidos e defende divisão mais equilibrada do dinheiro na campanha
A olho nu, pode parecer um sinalzinho de mudança no historicamente imutável cenário racial do Brasil: a eleição de 2022 será a primeira com maioria de candidatos negros. Contabiliza o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) que 14.015 postulantes (49,57%) se declaram afrodescendentes, enquanto 13.814 (48,86%) se definem brancos. Os negros se dividem em 3.936 pretos (13,92%) e 10.079 pardos (35,65%).
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O último dado disponível, da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad) do IBGE, afere que 56,2% dos brasileiros se declaram negros (46,8% pardos, 9,4% pretos) e 42,7% brancos – o 1,1% restante junta indígenas e amarelos. A conjugação das duas estatísticas insinua um cenário de mudança – mas muita calma nessa hora. O Brasil segue não sendo recomendável a ingênuos nem açodados.
Como na história do copo meio cheio ou meio vazio, cabem os dois olhares, observa o sociólogo Thales Vieira, coordenador-executivo do Observatório da Branquitude e ex-gestor de equidade racial do Instituto Ibirapitanga. Ele enxerga “com certa esperança um movimento político se configurando”, depois do fechamento de espaços aos negros, nos governos Temer e Bolsonaro.
O retrocesso obrigou à correção de rumo – e os negros se voltaram para o Legislativo, dedicando-se à competição eleitoral para participar do jogo político. “Começou com o Quilombo nos Parlamentos, que virou a Coalizão Negra por Direitos, gestando uma série de candidaturas”, narra Vieira, citando o professor Luiz Augusto Campos, do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Uerj. “A estratégia do movimento negro, nos governos Lula e Dilma, olhou muito para ministérios e autarquias, buscando influenciar no poder Executivo para o estabelecimento de projetos sociais. Agora, precisou mudar”.
E a presença dos negros cresceu a ponto de produzir bizarrices – o caso mais famoso, do ex-prefeito de Salvador (e herdeiro de um clã político) ACM Neto, candidato a governador que primeiro se declarou branco, mas depois mudou para pardo, provocando chuva de memes nas redes sociais. (Desde o anúncio, ele enfrenta acentuado viés de queda nas pesquisas.) “Para os políticos de esquerda tudo bem, pode. Quando você não é de esquerda ou não é do PT, não vale? Ora, isso é uma hipocrisia”, reclamou o político, a Malu Gaspar d’O Globo. “As fraudes existem, mas não são maioria, nem chegam a influenciar no movimento. Dá para ter certa esperança em um movimento político se configurando”, anima-se o sociólogo.
Apesar de prever “certo crescimento” no resultado eleitoral, Vieira alerta para o copo meio vazio. “Continua a sobrerrepresentação branca e masculina no comando dos partidos. São os que pensam as estratégias eleitorais e, o mais importante, decidem a distribuição de recursos“, atesta. “O dinheiro é definidor; não ter cria grande dificuldade para ser viável eleitoralmente. Existe relação direta entre gasto e sucesso”.
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Veja o que já enviamosA partir de 2020, o TSE determinou que a distribuição dos recursos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC) e do tempo de propaganda eleitoral gratuita seja proporcional ao total de candidatos negros de cada partido, as desigualdades permanecem. Carmela Zigoni, no Le Monde Diplomatique Brasil, traça retrato desalentador. “As desigualdades na distribuição dos recursos de campanha ainda são gritantes, num persistente racismo institucional partidário. Para as mulheres brancas foi destinado 35,6% do valor recebido por homens da mesma cor. As mulheres pardas receberam 52% a menos do que as mulheres brancas e os homens pardos 61,5% a menos que os homens brancos”.
Jamais por acaso, o racismo não está entre as agendas eleitorais relevantes. “Não é tema que atraia a atenção do público”, lamenta o coordenador do Observatório da Branquitude, citando o famoso dilema do biscoito (bolacha, em São Paulo): os partidos não apostam porque não é eleitoralmente relevante, ou não é eleitoralmente relevante porque os partidos não apostam. “A grande verdade é que raça nunca foi um ativo eleitoral fundamental. O Rio até se comporta como exceção, por ter votado em Benedita da Silva, Caó, Edson Santos, Jurema Batista, Marielle Franco, mas segue politicamente conservador”.
A forma de o racismo deixar de ser invisível na eleição está em candidaturas comprometidas com a gente. “A representatividade pura e simples não resolve, tem que estar acompanhada de um compromisso”, sustenta Vieira. “Numericamente, é mais importante ter pessoas negras, sobretudo nos espaços de poder, mas não dá para afirmar peremptoriamente que o racismo será um tema a partir da maior presença de afrodescendentes. Vai demandar muito trabalho do movimento negro, para gerar compromisso. Agora, não está sendo. As questões de gênero, ao contrário estão no centro dos debates, sobretudo pela dificuldade do Bolsonaro com as mulheres”.
E as demandas raciais ainda enfrentam a presença de candidatos como o negacionista Sergio Camargo, trágico ex-presidente da Fundação Palmares, candidato a deputado por São Paulo. O Partido Novo quase não tem candidaturas negras, integra aquela turma que minimiza a importância das questões de raça. “É porque não quer tratar disso”, constata o sociólogo, lembrando que análise do governo Maluf em São Paulo, após o Censo de 1980 mostrar aumento da população negra. “Eles avaliaram que seria um perigo eleitoralmente, porque os negros dominaríamos a política. Vem de longe o medo das elites brancas de os negros serem fundamentais para definir as eleições. O que falta agora é a virada, votar em bloco e em candidaturas viáveis”, prega ele.
Os candidatos negros mais progressistas até tratam do tema, mas são poucos os que conseguem se eleger. Com as mulheres, é ainda pior. “O poder para isso se transformar em agenda se reduz, sem chegar a ser relevante no cotidiano das casas. Mas a proposição de pautas na sociedade está posta”, observa Vieira, lembrando que, diferentemente de outros grupos, o movimento negro aponta urgências que não são apenas para os seus, como as cotas, que beneficiam também brancos, indígenas etc. “O sonho está na rua e o movimento para aumentar a quantidade de candidaturas negras comprometidas é super importante. Agora, precisamos chamar os eleitos e fazê-los se comprometer com as pautas”. Exatamente como agem o agronegócio, os evangélicos e a bancada da segurança, entre outros grupos sobrerrepresentados.
Até chegar o dia em que o Brasil terá o Partido Negro, ideia que motiva um sorriso em Thales Vieira. Mas ainda é sonho distante. “As pautas não chegam na direção dos partidos, mesmo os mais progressistas”, lastima. Se tudo der certo no próximo domingo, vem aí um governo progressista – mas, aposta o sociólogo, sem o número de ministros negros que reflita a proporção na população brasileira. “Serão dois ou três no máximo”, prevê, “e jamais em grandes pastas, como política, economia, educação”. Também por isso, a fundação do partido seria importante, mas não adiantará se não for eleitoralmente viável.
O avanço atual tem a influência, avalia o sociólogo, das políticas de acesso ao ensino superior, como as cotas e o Prouni. Uma correlação direta seria exagero, mas Vieira lembra que democratizar a entrada na universidade significa também impulsionar trajetórias. Daí, mandatos como os de Talíria Petrone (deputada federal pelo PSOL-RJ) e Renata Souza (estadual pelo mesmo partido) além, claro, de Marielle. Nesse tema, o racismo acabou reduzido à extrema-direita, que tenta tirar a cor da pele dos critérios para o benefício. Mas inexiste projeto que defenda o fim da lei 12.711.
De qualquer jeito, o fato de o eleito ser negro não garante que a questão racial seja pauta para ele. “O trabalho é chamar essas pessoas para perto, trazer essas almas”, defende Vieira, acrescentando que nos Estados Unidos é mais fácil, porque os negros são menos de 15% da população e pela forma como o racismo se estruturou por lá. “É possível enxergar um comportamento eleitoral, que, aliás, foi fundamental para a derrota do Trump. No Brasil, com o projeto vencedor do mito da democracia racial, as identidades ficaram mais fluidas e torna mais difícil o senso de comunidade”.
Também para mudar o panorama, foi criado em maio de 2022 o Observatório da Branquitude. Ex-gestor de equidade racial do Instituto Ibirapitanga, Thales Vieira percebeu que nenhuma instituição trabalhava com o olhar invertido, a partir da perspectiva de que o racismo é um problema dos brancos. Se há vítimas, há quem se beneficie do sistema desigual e intolerante. Daí, o foco na produção de conhecimento sobre branquitude, comunicação e articulação política.
Para que, um dia, o diagnóstico de Abdias Nascimento (1914-2011), ator, escritor, dramaturgo, artista plástico, professor universitário, político e ativista dos direitos humanos, de que o negro brasileiro vota no próprio inimigo, perca a validade. Ainda falta muito.
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Niteroiense, Aydano é jornalista desde 1986. Especializou-se na cobertura de Cidade, em veículos como “Jornal do Brasil”, “O Dia”, “O Globo”, “Veja” e “Istoé”. Comentarista do canal SporTV. Conquistou o Prêmio Esso de Melhor Contribuição à Imprensa em 2012. Pesquisador de carnaval, é autor de “Maravilhosa e soberana – Histórias da Beija-Flor” e “Onze mulheres incríveis do carnaval carioca”, da coleção Cadernos de Samba (Verso Brasil). Escreveu o roteiro do documentário “Mulatas! Um tufão nos quadris”. E-mail: aydanoandre@gmail.com. Escrevam!