O recente episódio envolvendo a deputada federal Erika Hilton, que, após um novo pedido de visto para os EUA, teve o gênero marcado como “masculino” — o anterior, com data de 2023, já indicava o gênero feminino – trouxe à tona um dilema central no Brasil de hoje: a violência contra a população trans e travesti e seu intrínseco elo com um debate de gênero que, ao invés de avançar, parece retroceder. Em entrevista à coluna, a jornalista e mulher trans Lia Reis oferece um olhar crítico e profundo sobre essa realidade, que vai muito além dos ataques simbólicos e se materializa na violência física.
Lia avalia o caso como um exemplo claro de transfobia institucional. Para ela, não se trata de um caso isolado ou uma mera coincidência. Ela observa uma aparente orquestração de políticas antitrans ao redor do mundo, com decisões que retrocedem direitos à população trans no Brasil, coincidindo com ataques em outros países no mesmo dia. Essas ações, que já não são veladas e parecem ter o aval da sociedade, fazem parte de uma agenda comprometida em aumentar os números de violência e genocídios contra a população trans globalmente.
Além disso, a jornalista levanta uma crítica sobre o papel da mídia tradicional, que muitas vezes só pauta os corpos trans quando eles são assassinados.
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Veja o que já enviamosAbaixo, a entrevista.
Edu Carvalho – Considerando sua experiência como jornalista e mulher trans, como você avalia o papel da mídia tradicional brasileira na cobertura da violência contra pessoas trans e travestis, especialmente no que diz respeito à naturalização dessa violência?
Lia Reis – Ser jornalista e também ser uma mulher trans me convida diretamente a ter um olhar mais crítico sobre como essa imprensa/mídia trabalha sobre os corpos de pessoas trans, em especial, sobre corpos de mulheres trans e travestis. Entendo que a sociedade, no geral, tem naturalizado cada vez mais políticas genocidas sobre essa população, e, apesar de o Brasil ser o país que mais mata pessoas trans no mundo, a sensação que tenho é que se normalizou. É quase que “se já fosse esperado” que esse corpo iria morrer.
Por que não estamos falando sobre esses números? Por que, dentro destes números, há uma porcentagem exorbitante de casos com requintes de crueldade? Não há ninguém falando sobre a urgência de sentarmos e pensarmos em formas de garantir o mínimo de segurança para essas pessoas, a qual me incluo.
Edu Carvalho – É possível analisar a ausência de interesse genuíno pelo debate sobre a segurança dessa população e um “desconforto coletivo” em enfrentar as causas da violência. Como podemos, enquanto sociedade e profissionais da comunicação, superar esse desconforto e promover um debate mais profundo e significativo sobre essa questão?
Lia Reis – Acredito que a maior barreira para gerar desconforto coletivo é o fato de que pessoas trans parecem não serem lidas como dignas e seguem sendo invisibilizadas diariamente. Pense só se esses números fossem sobre mulheres brancas, da elite. Certamente, e olha que tenho cuidado sobre certezas, já teríamos uma série de filmes e documentários como forma de mobilização social para redução desses números. Ninguém se comove, e ao que parece até então, ninguém se importa.
Na maioria das vezes, inclusive, sinto que, se não partir de minha proatividade para conversar e articular na imprensa tradicional esse debate, ele se manterá invisível. O que tenho questionado é: se dizem aliados, mas cadê a mobilização? Por que seguimos sendo pautadas unicamente quando nossos corpos são assassinados?
Edu Carvalho – O mais recente caso envolvendo a deputada Erika Hilton mostra, na sua análise, um exemplo de transfobia institucional. Como você enxerga a relação entre esses ataques simbólicos e a violência física enfrentada pela população trans e travesti no Brasil?
Lia Reis – O que acho importante destacar é que o caso da Erika Hilton não é um caso isolado ou uma mera coincidência. Seria coincidência ver um ataque do governo americano, outro da Suprema Corte Britânica e também, no mesmo dia, uma decisão do Conselho Federal de Medicina do Brasil, que retrocede direitos a população trans no país? Num só dia vimos uma orquestra de políticas antitrans ao redor do mundo e isso faz parte de uma agenda que está comprometida em aumentar cada vez mais esses números de violências e genocídios contra a população trans no mundo.
O episódio com a deputada Erika Hilton, uma parlamentar do Brasil, traz uma lupa para ações que já não são veladas. Elas acontecem de forma livre e com o aval da sociedade.
Edu Carvalho – Como você avalia o papel do jornalismo ativista na denúncia da violência e na luta por direitos da população trans e travesti, e como ele pode dialogar de forma mais efetiva com a mídia tradicional?
Lia Reis – Além de uma mulher trans, eu também venho da periferia e sou negra. Lidar com essas interseccionalidades é custoso. Sinto que o jornalismo ativista, por exemplo, parece esperar um caso como o de George Floyd para começar a pautar nossos corpos. O que eu acho um dos pilares dessa violência desenfreada contra pessoas trans.
Precisamos ser humanizadas, porque não estamos dentro das pautas sobre a nossa produção acadêmica, artística ou seja lá o que for. Assim como Sojourner Truth indagou com maestria o “e eu não sou uma mulher?”, ouso pensar e questionar: e nós não somos pessoas?