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O Comando Vermelho e os marqueteiros da morte

Organização criminosa, nascida atrás das grades, foi impulsionada pela publicidade e divulgação feitas pelas polícias e pelos governos

ODS 16 • Publicada em 2 de julho de 2024 - 07:53 • Atualizada em 3 de julho de 2024 - 09:50

Parece um roteiro de filme de ação para superprodução de Hollywood: entrincheirado em apartamento com um verdadeiro arsenal, criminoso resiste durante quase 12 horas ao cerco de 400 policiais e a intensa troca de tiros deixa em pânico centenas de moradores da vizinhança – no final, o bandido acaba morto, não sem antes executar três agentes da lei. Mas essas cenas ocorreram numa madrugada de abril de 1981, no Conjunto dos Bancários, na Ilha do Governador, na Zona Norte. E as testemunhas contam que o criminoso, entre as rajadas de metralhadora, fazia questão de anunciar. “Podem vir, aqui é o Comando Vermelho”. Esse roteiro é tão bom que já serviu à produção de livros, teses acadêmicas, filmes e programas de TV, como a recém-lançada série ‘O jogo que mudou a história’, da Globoplay.

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O assaltante de bancos José Jorge Saldanha, o Zé Bigode, fez a primeira grande ação de marketing da facção criminosa ao trocar tiros durante horas com a polícia. Antes restrita a pequenas citações nas páginas policiais, na edição de domingo, 5 de abril, o Comando Vermelho estreou na primeira página do Jornal do Brasil, o mais importante jornal do Rio de Janeiro naquela época, e também foi notícia nos principais veículos impressos e em jornais e telejornais. Não sairia mais das páginas, pelo menos no Rio, pelas semanas e meses seguintes, com divulgação em massa pelas autoridades policiais, à frente, o general Waldir Muniz, secretário de segurança do Rio, ligado à comunidade de informações da ditadura militar ainda no poder, e o coronel (do Exército) Nilton Cerqueira, comandante da PM e conhecido por liderar a caçada que resultou na morte do guerrilheiro Carlos Lamarca.

Comando Vermelho, um marca impulsionada pelos marqueteiros da morte (Imagem: Wikimedia Commons)
Comando Vermelho, um marca impulsionada pelos marqueteiros da morte (Imagem: Wikimedia Commons)

Foram notícias e mais notícias, com mortes e crimes atribuídos ao Comando Vermelho, e mortes e prisões pela polícia de homens apontados como chefes ou integrantes do Comando Vermelho. Os marqueteiros da morte estavam em ação e não sairiam mais de cena. Pelas versões das autoridades, o Comando Vermelho tinha, em 1981, um poder e ramificações que nem mesmo seus fundadores imaginavam. E esse marketing inicial certamente ajudou a facção criminosa a se estabelecer e ir ganhando, efetivamente, mais poder e ramificações nas décadas seguintes.

Não havia sido assim, dois anos antes, quando o Comando Vermelho apresentou seu cartão de visitas “oficialmente”. Está até na Wikipédia como data de fundação da precursora Falange Vermelha, 17 de setembro de 1979. Naquela data, os presos da galeria B do presídio da Ilha Grande atacaram seus rivais da D. Seis chefes da chamada Falange Jacaré (ou Falange Zona Norte) foram assassinados pelos integrantes da Falange Vermelha, mas a violência na penitenciária teve apenas pequenos registros nos jornais, nenhum com o nome dos grupos envolvidos.

A Ilha Grande, um paraíso de Mata Atlântica no litoral sul do Rio de Janeiro, recebeu um lugar de quarentena para pessoas com doenças contagiosas no século 19 e, depois, uma colônia penal para onde, no Estado Novo, foram enviados inimigos do regime como escritor Graciliano Ramos, que escreveu ali suas memórias do cárcere. A dificuldade de fuga da ilha fez com que os governos – primeiro do antigo Distrito Federal e depois dos estados da Guanabara e do Rio – mantivessem na Penitenciária Cândido Mendes (depois Instituto Penal Cândido Mendes) criminosos considerados de alta periculosidade. E a ditadura militar mandou para lá seus presos políticos.

A Galeria B do presídio foi reservada aos enquadrados na Lei de Segurança Nacional (LSN). Ao chegarem na Ilha Grande, suas fichas tinha uma tarja vermelha. Essa mesma tarja vermelha aparecia nas fichas de criminosos sem qualquer envolvimento político: eram assaltantes de bancos e sequestradores, crimes enquadrados na LSN durante a ditadura. Na primeira metade da década de 1970, os dois grupos conviveram na Galeria B da penitenciária – às vezes, em clima de tensão; às vezes, amistosamente.

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Os criminosos “comuns” impressionaram-se com a organização e a disciplina dos militares dos grupos de esquerda e com os benefícios conquistados nas negociações com a administração da cadeia. Quando os presos políticos foram transferidos para o Rio de Janeiro em 1975 e 1976, os internos da Galeria B já haviam adaptado suas regras de organização e intitulavam-se agora Falange da LSN em contraponto a Falange da Zona Sul, da Falange da Coreia, que eram maioria na Galeria C e da  Falange Zona Norte (ou Jacaré), a mais violenta do presídio e com o controle da massa carcerária. Principalmente depois nova Falange Vermelha matar chefes rivais na Ilha Grande, essa divisão entre as facções reproduziu-se em outras penitenciárias.

Mas, em 1981, quando Zé Bigode enfrentou 400 policiais na Ilha do Governador, estes grupos criminosos estavam organizados quase exclusivamente atrás das grades. Com a visibilidade e publicidade concedidas pelo general Muniz e o coronel Cerqueira, contudo, o Comando Vermelho ganhou força. Chefes de quadrilhas espalhadas pelo Grande Rio passaram a alardear que pertenciam a facção criminosa: era um forma de mostrar poder, de atemorizar à população, de intimidar os policiais. Atrás das grades, os mentores dos comandos passaram a contar com mais gente empenhada em seus objetivos: fugir, promover novas ações criminosas e financiar seus gastos dentro e fora da cadeia.

Nas últimas décadas do século passado, o grande negócio do crime passou a ser o tráfico de drogas: explodiram a produção e o consumo e os chefes das facções, condenados por assaltos a banco e crimes de morte, abraçaram esse comércio, demarcando territórios, muitas vezes a bala, estabelecendo novas conexões e divulgando seus produtos e seu poder. O marketing da morte, pelo lado dos traficantes, incluía execuções e exibições de seu arsenal. A marca Comando Vermelho ganhou notoriedade nacional e até internacional; sua principal concorrente local, o Terceiro Comando (formado, inicialmente, pelas falanges rivais na Ilha Grande e outras penitenciárias), também se institucionalizou com as mesmas estratégias.

Quase ao mesmo tempo, surgiu uma nova indústria, a da guerra às drogas, também com seus marqueteiros da morte. É uma indústria que movimenta milhões em armas, munições, veículos blindados (de motos a helicópteros), aparatos tecnológicos diversos, sempre divulgando que é possível derrotar o tráfico de drogas a bala. São 40 anos de fracasso, mas, nas polícias e nos governos, sempre surgem novas campanhas que reforçam a marca do Comando Vermelho – e do PCC, Primeiro Comando da Capital, organização criminosa de São Paulo também nascida no sistema penitenciário – para vender novas armas, munições e estratégias para vencer a “guerra às drogas”.  Nestas quatro décadas, a economia globalizou-se – e também os negócios do crime: o CV e o PCC espalharam-se pelo país, são marcas nacionais.

Esse marketing da morte, da espetacularização da violência e do poder do crime, atrai naturalmente novos interessados – como em qualquer outro negócio. Mas a história mostra – desde a Ilha Grande – que é atrás das grades que os criminosos se organizam e também onde fazem a seleção e capacitação de novos colaboradores. Para essa renovação de mão de obra, além dos marqueteiros das facções, dos policiais e dos governos, contam com a inestimável ajuda do Legislativo brasileiro com seus acessos de populismo penal, que consiste em resolver os problemas de segurança pública mandando mais gente para a cadeia.

É exemplo recente de populismo penal a aprovação da nova legislação que restringe as saídas de presos, com texto de Guilherme Derrite, oficial da reserva da PM, ex-integrante da Rota, tropa da polícia paulista conhecida pela truculência, deputado do PL, licenciado para assumir a Secretaria de Segurança de São Paulo: foi aprovado por larga margem na Câmara e no Senado, que, depois, derrubaram veto do presidente Lula. Ainda pior é a Proposta de Emenda à Constituição que considera crime a posse e o porte de entorpecentes e drogas ilícitas, independentemente da quantidade, de autoria do senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG), já aprovada no Senado e em debate na Câmara.

Não é possível contar a história do Comando Vermelho sem um banho de sangue – e não faltam cenas ensanguentadas na série da Globoplay. Mas essa trajetória só ganha novos capítulos pelas estratégias publicitárias dos marqueteiros da morte (no crime, na polícia, nos governos) e dos adeptos do populismo penal.

Esta coluna foi publicada originalmente na nossa newsletter de segunda-feira, 1º de julho. Clique aqui e receba também nossos conteúdos. 

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