Jovens e mães de Aço: vidas presas pelo sistema socioeducativo

Mais de 117 mil adolescentes e jovens estão cumprindo medidas socioeducativas, sendo 21,5% com a mesma idade de Vitor e Fernando. Foto Mônica Parreira/Instituto Casa

#Colabora ouviu histórias de duas famílias da Favela do Aço, na Zona Oeste do Rio, que sofrem por falhas no sistema de reabilitação socioeducativa

Por Ramon Vellasco | ODS 16 • Publicada em 3 de abril de 2024 - 09:01 • Atualizada em 9 de abril de 2024 - 15:43

Mais de 117 mil adolescentes e jovens estão cumprindo medidas socioeducativas, sendo 21,5% com a mesma idade de Vitor e Fernando. Foto Mônica Parreira/Instituto Casa

Ninguém conseguia segurar Fernando na escola. O garoto era desatento, estava sempre arranjando uma desculpa para não ir às aulas. As causas? Difícil saber, preconceito, racismo, dificuldade de aprendizado, rivalidades de território, falta de políticas públicas…O fato é que, naquele dia, Luciana, moradora da Favela do Aço, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, recebeu a notícia que a deixou com o coração apertado.  Fernando, seu filho de 16 anos, havia sido preso na Barra da Tijuca. O motivo? Pequenos delitos.

Vitor, também morador da Favela do Aço, teve destino semelhante. A diferença é que, na época de sua detenção, também na Barra da Tijuca e também por pequenos delitos, ele cursava o 1° ano do Ensino Médio. Sua mãe, Jéssica, fez de tudo para que o filho terminasse o curso, e conseguiu. Apesar de ter concluído o ensino médio, Vítor nunca conseguiu um trabalho formal. Durante a entrevista, Jéssica desmonstrava orgulho pelo filho estar trabalhando, mas também indignação pelo preconceito que ele sofria por ter passado pelo Degase. Luciana complementa: “o sistema socioeducativo não serve para educar jovens pobres, pretos e favelados”.

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Os nomes dos personagens dessas duas histórias são fictícios, a pedido dos protagonistas. Mas as cenas relatadas são reais e se repetem centenas, milhares de vezes nas comunidades periféricas dos grandes centros urbanos. O #Colabora foi à Favela do Aço, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, uma dessas localidades, para descobrir histórias reais que dão respaldo à Pesquisa Nacional das Medidas Socioeducativas em Meio Aberto no Sistema Único de Assistência Social (SUAS) realizada em fevereiro/março de 2018 pelo Ministério do Desenvolvimento Social.

Segundo o estudo, o Brasil tinha, à época, 117.207 adolescentes e jovens em cumprimento de tais medidas, sendo 21,5% com a mesma idade de Vitor e Fernando. Desse total, 54,3% responderam que vivem com a mãe e outra pessoa que não o pai. A maioria, pretos e pardos, do sexo masculino (96,7%) e apenas 7,5% completaram o Ensino Médio.

Fonte: SIIAD/DEGASE
Fonte: SIIAD/DEGASE

Primeira parada: GCA

No Rio de Janeiro, o percurso de um adolescente que comete ato infracional começa no Centro de Socioeducação Gelso de Carvalho (Cense GCA), uma unidade de internação temporária, localizada na Ilha do Governador, onde são atendidos adolescentes da capital e de todo o estado. O jovem fica nessa unidade temporariamente, e a decisão judicial pode ser cumprida como internação, internação provisória (45 dias interno), semiliberdade, liberdade assistida ou cumprimento de  serviços comunitários.

Os adolescentes também podem ser direcionados para o Centro de Recursos Integrados de Atendimento ao Adolescente (Criaad) do seu território e cumprir as mesmas penas, exceto internação provisória e internação.

Quem coordena todos esses centros é o Departamento Geral de Ações Educativas (Degase), uma instituição estadual do Rio de Janeiro, localizada na Ilha do Governador, responsável por aplicar medidas socioeducativas em adolescentes de 12 a 17 anos, tendo como base o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinaese). Na teoria, o departamento garante os direitos e a proteção à criança e ao adolescente e a execução e regulamentação de medidas socioeducativas.

O Degase tem oito centros de regime fechado e 16 de regime de semiliberdade. Em Santa Cruz, onde fica a Favela do Aço, a instituição responsável pelas medidas socioeducativas e de orientação e acompanhamento sobre a conduta dos adolescentes é o Centro de Recursos Integrados de Atendimento ao Adolescente (Criaad).

Depois de passar por uma internação socioeducativa, a volta desses jovens à vida na sociedade não acontece de forma tranquila e muitos ficam sem matrícula na escola. Foto Mônica Parreira/Instituto Casa

Preso por pequenos delitos

Luciana e Jéssica concordaram em contar suas histórias, mas os rapazes falaram pouco durante a entrevista.

“Os policiais os acusaram – Fernando estava com um grupo – de portarem faca de churrasco, mas durante a investigação e depois de revistarem as crianças, viram que elas não tinham nada”, conta Luciana, acrescentando que essa informação ajudou muito na hora do julgamento.

Ela conta como foi angustiante a procura pelo filho. Primeiro foi à delegacia da Barra da Tijuca, mas Fernando não estava lá e os policiais a mandaram para a 4ª DP, no Centro da Cidade. Para quem não tem carro, nem recursos para pegar um táxi ou Uber, o trajeto é difícil. Quando se consegue pegar o ônibus,  a viagem demora cerca de duas horas e meia. Mesmo intuindo que seu filho não estaria lá, Luciana foi. Era um périplo que ela, como mãe, sabia que teria que enfrentar.  Sua intuição estava certa, e novas informações a levaram à Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA), também no Centro:

“Quando cheguei lá, os funcionários não me deram atenção e não se preocuparam em me falar onde estava meu filho. Só disseram que ele já poderia estar no Dom Bosco (Centro de Socioeducação que fica na Ilha do Governador). Eu pedi informação para saber como chegar até lá e voltei para casa apreensiva, pensando no encontro com o meu filho.”

No dia da prisão, Luciana relembra que os funcionários da DPCA omitiram a informação de que seu filho estava lá: “Ele foi preso e depois transferido para a DPCA. “Ele dormiu em um porquinho”, uma sala de quase 3 metros, onde eles colocam os jovens em detenção, esperando pela decisão do julgamento. Da delegacia, ele foi transferido para o Degase no sábado de manhã”, explica.

Entraves para a ressocialização

A preocupação de Luciana faz sentido. Uma vez tendo passado por uma internação socioeducativa, a volta desses jovens à vida na sociedade não acontece de forma tranquila, sobretudo porque muitos ficam sem matrícula na escola.  Segundo Sidney Teles, assessor da Comissão de Direitos Humanos na Alerj, está cada vez mais difícil manter os jovens estudando no atual sistema Degase.

“O número de jovens fica cada vez maior em relação ao número de educadores e servidores que estão designados para atenderem as demandas socioeducativas”.

Uma pesquisa realizada pelo Observatório de Educação Ensino Médio e Gestão mostrou os diversos motivos que provocaram a evasão escolar no Ensino Médio até 2020. Entre eles, a gravidez, o desinteresse dos alunos pelas disciplinas estudadas ou a necessidade e o desejo imediato de geração de renda e a aquisição de bens.

Há também a “predominância de currículos e práticas pedagógicas que não incluem a perspectiva de grupos historicamente excluídos, o que acaba por aumentar os índices de evasão e exclusão escolar de estudantes negros, LGBTQIAP+ e com deficiência”, segundo o estudo. Jovens negros representam 59,8% do público fora do ambiente escolar, e o sexo masculino representa 34,7%.

Nossa reportagem buscou informações, com um pedido formal à Lei de Acesso à Informação, solicitando dados ao Degase sobre abandono e evasão escolar, identificando gênero, raça, idade, sexo, trabalho e família sobre os jovens de Santa Cruz e Favela do Aço, no período de 2018 até o período mais atual de 2023. A primeira resposta foi negativa, mas entramos com um recurso.

Depois do pedido de recurso, foram obtidos dados do Sistema de Identificação e Informação de Adolescentes (Siiad) do Departamento Geral de Ações Sócioeducativas (Degase).  Só conseguimos saber que o número de jovens de Santa Cruz (mulheres e homens), que passaram pelo Degase naquele período foi de 198 ao todo, sendo 13 mulheres e 185 homens.

“A inconsistência de informação possibilita que avaliações e execuções de políticas públicas sejam mal administradas, resultando em ações pouco efetivas para atender aos jovens em medidas socioeducativas. Tornando-se mais um impedimento para que jovens voltem à sociedade com novas perspectivas de vida. Estamos retrocedendo e tratando nossos jovens como presos e não com medidas socioeducativas. Pode ser provável que o trabalho de organizar os dados também esteja retrocedendo, já que isso se trata de uma intenção política de como tratar a população favelada e preta do Rio de Janeiro”, afirmou Sidney Teles.

“Estamos retrocedendo sobre o entendimento da aplicação de uma medida socioeducativa. Cada vez mais nos aproximamos da tortura. O tempo todo é opressão da polícia, do tráfico e da milícia na favela. A única coisa que o sistema socioeducativo deveria fazer, e não faz, é fazer o jovem ter tempo de refletir sobre os atos infracionais que cometeu”.

Sidney explicou que “As escolas dentro do sistema socioeducativo não funcionam. A prioridade política é a segurança. Se a gente analisar, a maioria dos jovens dentro do Degase se evadiu da escola. As escolas públicas de fora são mais arriscadas do que as escolas de dentro do sistema prisional. Mas o tempo que o jovem passa lá dentro é muito pouco. E o tempo que ele consegue frequentar a escola é muito pouco. É muito raro o adolescente conseguir ter uma regularidade na escola. A declaração de estudo do jovem é em relação ao período de internação. Mas o tempo de ser inserido na escola, é o tempo dele cumprir a medida provisória.”

A Favela do Aço

Aço, no dicionário, significa, entre outras coisas, força, vigor e energia. Na gíria da rua, aço é arma, tiro. Este foi o nome escolhido para denominar o pedaço de terra, com cerca de nove mil metros quadrados, localizada em Santa Cruz, próximo à divisa de Paciência, que hoje tem cerca de seis mil moradores. Algumas pessoas contam que a origem do nome da favela, nos anos 60, surgiu juntamente com o conjunto habitacional construído para abrigar flagelados das enchentes. O formato das casas, chamadas “casas vagão’, teria dado o nome de “Favela do Aço” ao condomínio sem água e esgoto, que funcionava muito mais como um depósito humano.

Para Luciana, porém, o nome do lugar onde mora remonta à resiliência, ao contexto do clima de tensão em que os moradores vivem diariamente, em meio ao intenso confronto entre policiais e traficantes: “A nossa favela também tem histórias bonitas”, apressa-se a dizer.

No entanto, a Favela do Aço é o retrato das demais favelas do Rio de Janeiro, com racismo, estigmatização, drogas, violência, meninas tornando-se mães, falta de saneamento básico, educação e saúde precários e como quase toda região da Zona Oeste, a presença forte da milícia. A situação pode ficar tensa, por exemplo, se alguém for flagrado fotografando o ambiente, alertou Luciana. Por conta disso, as fotos dessa matéria foram feitas pela fotógrafa Mônica Parreira, do Instituto C.A.S.A (Coletivo Artístico Sustentável e Alternativo), que opera em Santa Cruz.

O bairro apresenta um Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) muito baixo, com expectativa de vida, segundo o IBGE, de aproximadamente 65,5 anos.

Jovens negros representam 59,8% do público fora do ambiente escolar, e o sexo masculino representa 34,7%. Foto Mônica Parreira/Instituto Casa

Fora da escola, dentro do Degase

Vitor e Fernando personificam os resultados da pesquisa feita pelo Observatório. Quando Vitor  foi preso pela primeira vez, estava matriculado no CIEP183 João Vitta. A matrícula do rapaz foi, então, transferida para o colégio interno do Degase. Mas, quando saiu, depois do cumprimento da pena, tentou voltar ao CIEP e não conseguiu: a matrícula tinha sido fechada.

Estimulado pela mãe, que entendia a importância de ter o filho matriculado para não perdê-lo novamente para as ruas, Vitor buscou informações. Ficou sabendo que sua vaga tinha sido extinta quando ele foi transferido para o Degase. Havia outro colégio disponível, mas era muito longe de sua casa, e  Jéssica preferiu não arriscar ver o filho se deslocando tanto. O fantasma do “pequeno delito” direcionou a escolha materna.

Sidney Teles explicou que as escolas de origem, muitas vezes, não aceitam os alunos egressos do sistema socioeducativo: “A escola tem muita resistência em aceitar a certificação de estudos do Degase. É uma discriminação e uma estigmatização permanente. O adolescente fica marcado como alguém que cometeu uma infração.”

Segundo ele, as instituições têm a responsabilidade de organizar e mobilizar as pessoas do território para entenderem o que fez o adolescente praticar determinado ato infracional.

“As instituições deveriam acompanhar e buscar trabalhar em conjunto com as famílias. O que deveria ser parte do trabalho integrado dos Centros, fica como responsabilidade somente da família. O jovem fica desamparado quando sai do sistema prisional. Não é aceito na escola ou no trabalho formal, e apesar do sistema socioeducativo ter o objetivo de ressocializar e reintegrar o jovem, como diz o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), não é assim que funciona na prática”, explica o assessor da Comissão de Direitos Humanos na Alerj.

Sem orientação do colégio ou de qualquer outra instituição, Jéssica conta que ficou “a ver navios”. Como não tinha possibilidade de estudar perto de casa, Vitor decidiu abandonar a escola durante o período de 2021 até novembro de 2022, quando seria preso novamente.

Naquele ano, ele teria que cumprir pena de três meses no regime de semiliberdade. Durante o confinamento, Vitor vivenciou conflitos entre jovens de facção e foi até ameaçado de morte por viver na Favela do Aço. Preocupada com as violências que seu filho poderia sofrer dentro da prisão, Jessica foi à Defensoria Pública, mas não teve sucesso ao pedir uma medida de proteção ou transferência para o filho.

Vitor saiu da prisão, o tempo passou e, em junho de 2023, o jovem foi preso novamente, segundo a mãe, quando estava parado em uma estação de BRT.

“Policiais viram o Vitor parado no BRT e o abordaram. Viram que ele tinha o nome fichado e levaram para o Centro de Recursos Integrados de Atendimento ao Adolescente (Criaad). Ele deveria cumprir seis meses de internação, no entanto, por boa conduta e determinado a não voltar novamente ao sistema socioeducativo, ele decidiu terminar os estudos no colégio interno da instituição”, contou ela.

Dessa forma, Vitor cumpriu todo o Ensino Médio no Degase, através do sistema de Ensino de Jovens e Adultos (EJA). Apesar disso, até hoje não conseguiu um trabalho de carteira assinada, e vive de trabalhos informais na favela.  Até o final da entrevista que ela nos concedeu, por exemplo, seu menino não havia retornado à casa. A última informação que deu à mãe é de que estava indo para a Barra da Tijuca.

Fernando hoje tem 19 anos e trabalha em empregos informais que consegue pela favela. Assim como Vitor, ele também não gosta de falar muito sobre a experiência vivida dentro do Degase e sobre o momento em que abandonou a escola. Infelizmente, nunca mais voltou a estudar e só concluiu a 6ª série do Ensino Fundamental, o que corrobora a pesquisa a pesquisa “Combate à evasão no Ensino Médio: desafios e oportunidades”, feita em parceria Firjan/SESI e PNUD em 2023.

Este estudo mostra que meio milhão de jovens acima de 16 anos abandonam a escola a cada ano. O problema é mais grave quanto mais vulnerável for a população: só 46% da camada social 1/5 mais pobre conclui o Ensino Básico.

Ramon Vellasco

Ramon Vellasco trabalha como fotojornalista e repórter freelancer. Desenvolve temas de questão urbana, cultura popular e arte, democracia, direitos humanos, periferia e favela.

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