Após trabalhar por sete anos na informalidade, como carpinteira, assistente de cabeleireira e recepcionista, aos 29 anos, Mirtes Renata realizou o sonho da carteira assinada trabalhando como empregada doméstica na casa de Sérgio Hacker, ex-prefeito da cidade de Tamandaré, em Pernambuco. Durante os quatros anos em que trabalhou para Sérgio e sua esposa Sari Corte Real, Mirtes conta que era submetida a incontáveis horas extras sem receber nada a mais por isso.
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“No começo foi difícil porque eles faziam testes. Deixavam dinheiro e joias em cima da mesa para ver se eu não iria roubar, mas eu só fazia meu trabalho e deixava tudo no lugar, então me contrataram”, relata Mirtes. “Eles também me colocavam para cuidar das crianças e levar o cachorro para passear, algo que não estava acordado, mas eu fazia porque precisava do emprego. Os sábados eram os dias mais difíceis. Meu horário era até meio-dia, mas eu ficava até 15h ou mais porque o Sérgio vinha para casa e queria que eu cozinhasse coisas diferentes, trocasse novamente lençóis de cama, tudo do jeito dele”, completa.
Durante a pandemia, Mirtes foi obrigada pelos patrões a cumprir o isolamento social longe do filho, em uma segunda residência do casal. Mesmo doente, era forçada a trabalhar: “Ela (Sari) me fez ficar no apartamento dela fazendo as coisas, com febre, dor no corpo. Varria a casa e parava um pouco para descansar. Fiquei dias sem ver meu filho e minha mãe”, explica.
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Veja o que já enviamosEm junho de 2020, a história de Mirtes e do seu filho Miguel Otávio, de 5 anos, ganhou repercussão nacional. Por conta de um dos passeios com o cachorro, Mirtes deixou o menino com a patroa. Sarí permitiu que o garoto circulasse sozinho no condomínio para procurar a mãe e Miguel acabou caindo do 9º andar de um prédio de luxo no Recife. A ex-primeira-dama foi condenada à prisão por abandono de incapaz e responde ao processo em liberdade. No início de julho de 2023, a Terceira Turma do Tribunal Superior do Trabalho confirmou a condenação de Sérgio Hacker e Sari Corte Real, ao pagamento de R$ 386 mil de indenização por danos morais coletivos a Mirtes e sua mãe, que também trabalhara como empregada doméstica para o casal.
O colegiado concluiu que o casal reproduziu padrão social discriminatório e racista em relação às trabalhadoras domésticas, cuja contratação foi fraudulenta e paga indevidamente pelos cofres públicos. Além disso, a exigência de trabalho durante a quarentena da covid-19 e a negligência quanto às normas de segurança do trabalho, que resultou na morte do menino, foram consideradas gravíssimas violações humanitárias trabalhistas que agrediram drasticamente o patrimônio imaterial de toda a sociedade brasileira. Segundo Mirtes, o valor da indenização irá para um fundo social de trabalho.
O caso de Mirtes e de seu filho Miguel é extremo, dramático, mas as denúncias de danos morais, maus tratos e racismo, feitas por empregadas domésticas, vêm se acumulando no Judiciário brasileiro. Dados do Instituto Data Lawyer mostram que em um levantamento pelas palavras “empregada doméstica” relacionados a racismo, maus tratos ou danos morais em “petição inicial” apresenta um volume total de 40.509 de processos jurídicos iniciados este ano. O estado de São Paulo lidera o maior volume de processos ativos (5.962) seguido respectivamente por Rio de Janeiro, Paraná, Rio Grande do Sul e Minas Gerais.
Os números também mostraram que de 2018 para 2022 houve um aumento de aproximadamente 38,02% nos casos registrados judicialmente e o principal desfecho foi o de acordo (48,78%) seguido dos status de pendente (22,23%), parcialmente procedente (14,64%) e improcedente (5,11%).
E os impactos da PEC?
Pelo Brasil a fora muitas casas contam com os serviços de empregadas domésticas e profissionais dessa área com carteira assinada que se dedicam às suas residências. No entanto, a dedicação exclusiva a uma única casa está se tornando cada vez mais incomum. Os patrões estão preferindo as diaristas, uma mudança que transforma esses profissionais em autônomos e muitas das vezes até conseguem ganhar mais do que um salário-mínimo trabalhando em lugares diferentes. Porém, perdem suas garantias sociais como férias, previdência, auxílio-doença, décimo terceiro, licença-maternidade, jornada diária de oito horas, seguro-desemprego, acesso ao FGTS, indenização em caso de demissão sem justa causa e até mesmo um prato de comida negado como é a experiência vivida por Nazaré e Mara, que convivem com a fome em seus dias de serviço.
Aos 57 anos de idade, a diarista Nazaré recebe valores entre R$ 100 e R$ 180 por dia trabalhado. Devido as condições impostas pelos patrões, dificilmente ela leva o dinheiro inteiro porque precisa descontar a passagem dos transportes públicos para deslocamento e a alimentação: “Tem casa que a gente chega e o armário está trancado para gente não ter como comer. Nem água dá, temos que levar garrafa. Mas é preferível trabalhar com fome do que não ter como garantir o sustento da família”.
Os direitos trabalhistas estendidos à categoria na emenda constitucional, que ficou conhecida como PEC das Domésticas, completaram 10 anos em 2023. Na teoria, a PEC deveria trazer apenas benefícios às trabalhadoras da área, mas tem se mostrado um bem cada vez mais distante de mulheres que já trabalhavam faxinando casas e nem sempre encontram patrões dispostos a lhes dar o que é de direito. Além do mais, receber apenas um salário-mínimo não atende as necessidades financeiras de muitas famílias como é o caso de Nazaré que é mãe solteira:
“São três filhos, dois netos, aluguel e comida cara. O salário (mínimo) não dá. A gente sabe que perde direitos, estou há 6 anos seguidos sem tirar nem uma semana em casa, mas eu prefiro para poder ganhar um pouco mais”, disse Nazaré, que se preocupa com o sustento da família.
Para conseguir garantir o sustento da casa elas também enfrentam outros problemas. Alimentação e água por conta própria, e até o uso do banheiro negado, não são casos isolados. Nazaré, que trabalha como diarista há 25 anos, depois de ter perdido o emprego de carteira assinada quando engravidou, e Mara, aos 60 anos, lidam constantemente com esses casos.
“Eu penso que já estou perto de me aposentar e que vale a pena continuar mais um pouco para garantir os estudos da minha filha e poder dar as coisas a ela. Vivemos com dignidade, tenho as coisas na minha casa então não sofro por comida de casa de patrão”, conta Mara, que trabalha em casas onde só pode se alimentar depois dos contratantes, em outras ela leva um lanche para “enganar o estômago” até poder fazer uma refeição completa em casa.
Em uma das residências em que trabalha, o pagamento de Mara não é em dinheiro. A patroa empresta a ela todo mês o vale-alimentação do próprio serviço, então a diarista usa do benefício da mulher para fazer as compras do mês no valor de R$ 500 reais em troca de limpar a casa, lavar e passar as roupas durante todas as sextas-feiras do mês: “Sei que não é certo e ganho muito pouco, mas foi o acordo que fiz com ela. É melhor do que nada, né? Penso isso, mas tem patrão que faz a gente de bobo e a gente aceita porque precisa”, desabafa.
Mara, assim como tantas outras, acumula funções. Em uma das casas, o trabalho inclui lavar e descarregar o carro da patroa, cuidar de cachorros, de crianças de visitas e cozinhar para outros familiares, mesmo sem poder comer o que prepara.
“Quando estou com muita fome dou umas beliscadas escondida sem ela ver, e eu sei que a casa tem câmera só que tem hora que a fome fala mais alto do que o medo do esporro”, contou, enfatizando que para ela a comida não é o pior: “O que me chateia muito mais é chegar e ver absorvente sujo e camisinha usada ou calcinha no chão para eu lavar e guardar, ela acha que isso é minha obrigação”.
A busca pelos direitos das domésticas começou na década de 70, mas só se formalizou em 2010 com os direitos das empregadas estabelecidos na Constituição. As registradas com carteira assinada têm direito a abono salarial, mas quantas se encontram dentro dessa realidade no Brasil?
A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua), do IBGE, de 2012 a 2022, revelou que três em cada quatro trabalhadoras domésticas não têm carteira assinada, número inferior ao de antes da emenda constitucional. Os números mostram que para muitos não compensa financeiramente e os contratantes estão cada vez mais se aproveitando das situações financeiras para explorar o trabalho das diaristas.
Mestranda em Justiça e Segurança, na Universidade Federal Fluminense (UFF), Thayná Bastos diz que os números refletem a sociedade desigual na qual vive a população brasileira: “Essa classe trabalhadora é composta, em sua grande maioria, por mulheres negras de renda salarial baixa. Atendendo a classe média e alta, que é branca. É mais uma maneira de refletir os problemas sociais do país, escancarando racismo, pobreza, desigualdade de gênero, territorial e de exploração de classe”.
O que pode ser feito?
Desde que a lei complementar regularizou o direito das empregadas domésticas, foi definido que a partir de três dias de trabalho na semana o contratante é obrigado a assinar a carteira. Até dois dias, podem ser contratadas como diaristas. Por isso, o presidente do Instituto Doméstica Legal, Mario Avelino, alerta as trabalhadoras: “Caso a diarista esteja trabalhando na informalidade, com mais de três dias sem carteira assinada, ela pode entrar na justiça para exigir seus direitos”.
Mario elencou cuidados importantes a serem tomados, tanto para os contratantes quanto para as trabalhadoras domésticas contratadas: o pagamento ser feito no dia do serviço ao invés de mensalmente, terem recibos assinados por ambas as partes com as datas do trabalho, redigir um termo de início de prestação de serviços da diarista e assinarem um de fim de “contrato” declarando o tempo trabalhado (quando findar os vínculos). “No site do instituto, por exemplo, é possível que ambas as partes se cadastrem e tenham controle dos valores de diária e emissão dos acordos”, orientou o presidente.
Sem um valor determinado por lei, uma medida que as diaristas podem tomar é acrescentar nos acordos escritos quais serão os serviços realizados, o horário por dia e o valor a ser pago pelo contratante. Assim, definido já na contratação, é mais uma garantia de que seja cumprido o combinado e evite as explorações. Especificando também as condições de alimentação e valores de locomoção até o trabalho.
Para Mario, tão importante quanto estabelecer em contrato quais serão os serviços feitos e o valor pago, é que as diaristas garantam seus direitos previdenciários. Caso paguem o INSS como autônomas e contribuinte individual, cumprem com 11% do valor e todos os direitos previdenciários por R$ 145,00 (valor de 2023). Caso ela só se cadastre como MEI, é recolhido 5% o que custa em média R$ 66,00.
“Sempre aconselho que se cadastrarem como microempreendedoras individuais, assim tem uma economia de quase R$ 80,00 e o mesmo direito da contribuinte individual. Mas o importante é que elas fiquem asseguradas pela Previdência, caso sofra um acidente, por exemplo, as famílias das provedoras do lar não vão ficar desamparadas financeiramente”.
Também preocupada com os incidentes que podem ocorrer ao longo da vida dessas mulheres e uma aposentadoria garantida, a influencer Veronica Oliveira, conhecida nas redes como Faxina Boa, além de falar com humor das situações vividas por diaristas, também as orienta sobre seus direitos.
Com 315 mil seguidores, aos 42 anos e mãe de três filhos – de 23 anos, 14 e uma bebê no seu segundo ano de vida – hoje Veronica vive dos trabalhados vindos da sua posição de influenciadora digital. Mas por grande parte da sua vida ela foi diarista na cidade de São Paulo. E foi já na internet que ela deu início a profissão, onde fez uma publicação anunciando para os amigos que estava disponível para faxinas. Tanto as situações boas quanto as ruins do trabalho começaram a ser compartilhadas por Veronica, e de uma maneira engraçada ela foi conquistando seguidoras por todo Brasil que passam pelas mesmas situações:
“Achei espaço na falta de valor que esse trabalho tem. De uma forma diferente, comecei a colocar na internet os bastidores da profissão, então não era um perfil só de dica de limpeza. Eu quis falar da forma como somos vistas, as situações que enfrentamos e hoje viajo pelo país fazendo uma análise social do trabalho de diarista”, conta Veronica, que há 6 anos publicou um livro sobre suas vivências.
Para a influenciadora, a estratégia de falar de coisas sérias com humor foi natural. E, também, uma forma de “não carregar os estigmas que já existem sobre quem trabalha como faxineira”. “Aos poucos as pessoas foram se conectando comigo. É uma profissão solitária, então dificilmente elas conversam entre si. No primeiro momento, criamos uma rede de apoio mesmo onde recebo até hoje diversos relatos”, explica.
Em 2018, Veronica resolveu criar uma empresa que fazia a mediação entre as diaristas e os contratantes. A ideia era estabelecer os acordos de trabalho e conscientizar as trabalhadoras sobre o que era permitido legalmente ou não: “Passei por situações como receber comida estragada para comer, ter que ficar o dia inteiro sem água e sem poder ir ao banheiro. E tem muita gente ainda vivendo isso e que não tem dimensão de que está sendo maltratada e explorada, então eu aproveito a visibilidade que conquistei na internet para falar e fazer elas perceberem. Saberem que podem denunciar”, completa Veronica, acrescentando que muitas não sabem de seus direitos.
Assim como já foi a realidade da atual influenciadora, ela diz ter consciência de que mesmo entendendo que é errado, algumas trabalhadoras domésticas aceitam as explorações porque precisam do trabalho. E que “infelizmente nem todas têm outras oportunidades”.
“A necessidade, algumas vezes, se impõe para aquela mulher e ela precisa sim entrar às 7h da manhã e sair às 21h da noite, é difícil orientar a não aceitar e dizer que não é assim que funciona. Então também tento dar essas orientações de uma maneira que não as afaste de tentar garantir os seus direitos e, também, de criar coragem mesmo de denunciar”.
Para a justiça
A advogada Maria Luíza Alen, bacharel em Segurança Pública e mestranda da área na UFF, entende que as situações discriminatórias contra domésticas, como não poder comer no local de trabalho, não poder usar o banheiro e outras situações em que as diaristas se sintam ofendidas, são casos de justiça: “É importante que elas tenham provas das ofensas, assim dá para entrar com um pedido de indenização por danos morais porque são atitudes que atingem a esfera moral, existencial e também o princípio da dignidade da pessoa humana, que é previsto na Constituição”, explica Maria Luíza.
E, mesmo não tendo vínculo empregatício de doméstica e sendo diarista, a advogada ressalta que pode ser levado à justiça e, de qualquer maneira, estão ali prestando um serviço. E as ofensas podem ser tratadas criminalmente processando os patrões por crime de injúria: “Nesses casos, a decisão vai muito de acordo com o entendimento do juiz e por isso é importante que elas tentem ao máximo colher boas provas para entrar com um processo. Como filmagens, gravações de áudio e testemunhas dos ocorridos”.
Além disso, para os casos de racismo, a Lei 7.716/89 pune todo tipo de discriminação ou preconceito, seja de origem, raça, sexo, cor, idade. Todo caso deve ser denunciado. E a legislação brasileira, através do artigo 149 do Código Penal, prevê os elementos que caracterizam a redução de um ser humano à condição análoga à de escravo: a submissão a trabalhos forçados ou a jornadas exaustivas, a sujeição a condições degradantes de trabalho e a restrição de locomoção do trabalhador. Com prisão de 2 a 8 anos e multa pela violência causada à pessoa submetida ao caso.