Indígenas ficam fora de debate sobre mineração

Comissão da Câmara convoca audiência para discutir exploração em Rondônia e ‘esquece’ de convidar os donos da terra

Por Marizilda Cruppe | ODS 16 • Publicada em 3 de outubro de 2019 - 16:54 • Atualizada em 3 de outubro de 2019 - 17:08

Garimpo ilegal em Porto Velho. Foto Carl de Souza/AFP
Garimpo ilegal em Porto Velho. Foto Carl de Souza/AFP
Garimpo ilegal em Porto Velho. Foto Carl de Souza/AFP

O convite e um vídeo começaram a circular pelo WhatsApp na terça-feira (1 de outubro), véspera de feriado em Porto Velho, capital de Rondônia. No vídeo, o deputado federal Coronel Chrisóstomo (PSL/RO), proponente do evento, explica que a audiência tratará de “tudo sobre todos os tipos de minérios.” Disse também que tratarão “desde o planejamento, da exploração, da comercialização, da exportação, de toda a organização dos minérios no Estado de Rondônia e na Amazônia”. Chrisóstomo ainda convidou todos os prefeitos interessados “principalmente de onde tem mineração” e estendeu o convite aos prefeitos que desejassem participar, vereadores e empresários da área que investem e querem investir em minério “seja no diamante, no nióbio, na cassiterita, no ouro.” Convidou também “aqueles que trabalham na mineração”. O Coronel destacou “um detalhe”: a presença do ministro das Minas e Energia, o Almirante Bento Albuquerque, além de órgãos federais da área para tratar “inclusive de mineração em terras indígenas.”

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No entanto, a Comissão de Minas e Energia da Câmara “esqueceu” de um outro detalhe: convidar os povos indígenas, os donos de grande parte das terras. Os analistas do ICM-Bio e os representantes de organizações ambientais também não foram lembrados. Quinze associações indígenas, entre elas a Wãypa e a do Povo Uru-eu-wau-wau, divulgaram ontem à noite uma nota de repúdio de três páginas em que dizem que receberam “com profundo desgosto” a informação da audiência na próxima sexta-feira, dia 4, em Porto Velho. A nota cita a legislação vigente, como o artigo 231 da Constituição, que reconhece os direitos dos povos originários sobre as terras que ocupam e responsabiliza a União pela demarcação das terras e proteção dos povos indígenas. A Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre Povos Indígenas e Tribais, é de 1989. Em seu artigo 7º inciso 1º diz que “Os povos interessados deverão ter o direito de escolher suas próprias prioridades no que diz respeito ao processo de desenvolvimento, na medida em que ele afete as suas vidas, crenças, instituições e bem-estar espiritual, bem como as terras que ocupam ou utilizam de alguma forma […]. Além disso, esses povos deverão participar da formulação, aplicação e avaliação dos planos e programas de desenvolvimento nacional e regional suscetíveis de afetá-los diretamente.” As terras indígenas (ainda) mais afetadas seriam a Uru-Eu-Wau-Wau, Sete de Setembro, Roosevelt, Karipuna, Rio Guaporé e Igarapé Lourdes. Estas terras já vêm sofrendo com invasões, desmatamento, roubo de madeira e garimpo ilegal.

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Os povos interessados deverão ter o direito de escolher suas próprias prioridades no que diz respeito ao processo de desenvolvimento, na medida em que ele afete as suas vidas, crenças, instituições e bem-estar espiritual, bem como as terras que ocupam ou utilizam de alguma forma

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Até o Ministério Público Federal ficará de fora. Agora há pouco, a procuradora do Ministério Público Federal de Rondônia, Gisele Dias de Oliveira Bleggi Cunha, divulgou carta dirigida ao deputado federal Coronel Chrisóstomo, proponente da audiência, informando que o MPF decidiu não participar da mesa redonda depois de tomar conhecimento, através da nota de repúdio divulgada pelas associações indígenas, que estas entidades não tinham sido convidadas. Segundo a nota, o “objeto de debate consiste em tema complexo e diretamente relacionado ao interesse de muitas etnias do Estado.” Na nota, o MPF solicita à Comissão de Minas e Energia da Câmara dos Deputados que “se outros eventos forem realizados sobre a temática em questão, exploração de minérios em Terras Indígenas, sejam amplamente divulgados e endereçados a todas as etnias do Estado de RO e associações indígenas respectivas […]”. Em outro trecho, a procuradora destaca que “todos os povos indígenas de Rondônia precisam ser provocados a se manifestarem, e suas falas deverão ser levadas em consideração na tomada de decisão governamental sobre a exploração mineral em Terras Indígenas.”

“Eles podem convidar quem eles quiserem”

O #Colabora procurou o Almirante Bento Albuquerque, ministro das Minas e Energia, que confirmou ter uma agenda extensa em Rondônia, na sexta-feira, mas sem qualquer compromisso marcado com os indígenas. Ele comentou sobre a mesa redonda da mineração e disse que se os indígenas quiserem falar com ele “é só agendar”.

O senhor vai participar da audiência pública marcada para a próxima sexta-feira?

 Na realidade, tenho uma agenda extensa em Rondônia, quem vai participar da audiência é o Secretário de Geologia, Mineração e Transformação Mineral do ministério, Dr Alexandre Vidigal. Vou participar do encerramento.

 O senhor sabe que os indígenas não foram avisados e foram surpreendidos quando souberam da audiência pelo WhatsApp?

A audiência pública foi convocada pela Comissão de Minas e Energia da Câmara dos Deputados – instrumento jurídico previsto na Constituição. O ministério foi convidado e poderia ter sido convocado, também, para participar do evento.

E sobre os indígenas não terem sido convidados?

Sugiro que você faça a pergunta para quem convocou a audiência pública, no caso a Comissão de Minas e Energia da Câmara dos Deputados.

O senhor acha que o resultado de uma audiência pública em que os povos indígenas não são ouvidos deve ser considerado?

 Para informação – sugiro dar uma olhada no Regimento Interno da Câmara dos Deputados e na Constituição – audiências públicas não deliberam ou apresentam resultados. Servem para esclarecimento, discussão de temas ou assuntos de interesse do Congresso. Mais uma informação, quando a audiência pública é realizada fora da Câmara dos Deputados é chamada de Mesa Redonda. Eles podem convidar quem eles quiserem.

E a Convenção 169 da OIT?

Uma coisa não tem nada a ver com a outra.

Ministro, os indígenas não terem sido convidados é um fato, correto?

Não sei. Quem emitiu os convites foi a Comissão de Minas e Energia da Câmara

O senhor gostaria de conversar com os indígenas sobre mineração nas terras em que eles vivem?

Dois dos pilares da gestão do ministério são o diálogo e a transparência. Já conversamos com muitos indígenas sobre o assunto e continuaremos a conversar com quem nos solicitar.

Qual será a sua agenda na sexta-feira em Rondônia?

Tenho uma agenda extensa sobre diversos assuntos do Estado da esfera de competência do ministério com o governador, assembleia legislativa e também vou à hidrelétrica de Santo Antônio. Não terei tempo para acrescentar outro evento. Entretanto, poderemos fazer um agendamento aí [Rondônia] ou em Brasília com eles [indígenas], só agendar.

Marizilda Cruppe

​Marizilda Cruppe tentou ser engenheira, piloto de avião e se encontrou mesmo no fotojornalismo. Trabalhou no Jornal O Globo um bom tempo até se tornar fotógrafa independente. Gosta de contar histórias sobre direitos humanos, gênero, desigualdade social, saúde e meio-ambiente. Fotografa para organizações humanitárias e ambientais. Em 2016 deu a partida na criação da YVY Mulheres da Imagem, uma iniciativa que envolve mulheres de todas as regiões do Brasil. Era nômade desde 2015 e agora faz quarentena no oeste do Pará e respeita o distanciamento social.

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