A distância de mais de 1.500 km entre Porto Seguro, no sul da Bahia, e Brasília não impediu que o povo da etnia Pataxó viajasse de ônibus até o Acampamento Terra Livre (ATL), reunião de indígenas de todo o Brasil para defender seus direitos e suas terras. Longe de seus territórios, acampados em tendas na Esplanada dos Ministérios, eles mantêm seus rituais e cultivam sua espiritualidade. “A reza é um dos princípios para dar força e coragem para irmos à luta. Quando pegamos o maracá e balançamos, o cacique ou qualquer liderança e todos ali presentes no ritual, ficam sem cansaço e sem medo. Quando você balança o maracá, traz a força espiritual”, explica Timbira Pataxó, vice-cacique e pajé da Aldeia Coroa Vermelha.
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Em sua 18° edição, o Acampamento Terra Livre reúne mais de 7 mil indígenas de 200 povos originários, para marchar contra uma série de medidas que vão de encontro ao que foi estabelecido na Constituição Federal de 1988, como o PL 191, que libera o garimpo em terras indígenas, e o Marco Temporal, que limita o reconhecimento de novas terras tradicionalmente habitadas por povos nativos. “Nosso povo é muito resistente. Nós superamos todos os massacres que se abateram sobre nós”, afirma Zeca Pataxó, cacique da Aldeia Coroa Vermelha e coordenador do movimento indígena, ao falar de sua etnia. Mas ele poderia estar falando sobre qualquer um dos povos representados no acampamento montado em Brasília desde o dia 4.
Nas tendas improvisadas, além dos debates e das manifestações de protestos, os indígenas mantêm suas tradições. “A dança, o canto e o maracá são peças chaves para a realização dos rituais. A presença de ‘Niamissum’ (Deus) é entoada, uma vez que ele é o principal, ele que dá a resistência”, assegura o pajé Timbira, acrescentando que, através do Awê (ritual), todos se unem e passam a estar fortificados para lutarem juntos. A prática ritualística do rezo, mais do que um traço cultural, se torna uma ferramenta de luta coletiva, que fortalece a todos na aldeia, explica o pajé Pataxó.
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Veja o que já enviamosDe acordo com dados do Siasi (Sistema de Informação da Atenção à Saúde Indígena), mais de 12 mil mulheres e homens da etnia Pataxó vivem entre o sul da Bahia e norte de Minas Gerais. O povo teve contato com não indígenas a partir do século 16 e há registros da existência da Aldeia Barra Velha, a mais antiga, desde o século 17. Acampados em Brasília, o cacique e o pajé lembram que a história de seu povo é construída por muitas lutas, com tentativas de dizimação da população Pataxó. “Indígenas foram assassinados, mulheres foram estupradas, parentes foram expulsos de suas aldeias”, conta Zeca Pataxó.
Em 1951, os habitantes da Aldeia Barra Velha foram alvos de violenta repressão policial que resultou na morte e prisão de 38 indígenas. Houve também um incêndio na aldeia: muitos indígenas foram expulsos ou fugiram da aldeia. Memórias como essa são repassadas para gerações mais novas pelos anciões da aldeia para que os jovens se apropriem da luta política. “Nossos antepassados saíam das aldeias e vinham para Brasília à pé, para reivindicar seus direitos”, afirma Timbira. “Muitos anciões não estão mais presentes ou, devido a idade, não podem mais viajar até Brasília devido a distância”, acrescenta que os mais antigos são recordados nos rituais.
São quase dois mil quilômetros do interior de Pernambuco até Brasília, onde um grupo da etnia Pankararu está acampado com a mesma preocupação de mobilizar a força espiritual para enfrentar as ameaças das políticas do homem branco. “Essa é uma luta do mundo material e espiritual. Estamos aqui para defender o que é mais sagrado, que é a terra e a nossa cultura. Se passaram mais de 1500 anos e ainda temos nossa cultura milenar. Nós sabemos que vamos lutar até o fim. Ao lado dos nossos parentes e de nossos irmãos”, afirma Ubirajara Pankararu, liderança da etnia que vive na região do Médio São Francisco, concentrada em aldeias nos municípios pernambucanos de Petrolândia e Tacaratu.
O indígena explica os rituais preparados pelos representantes da etnia em Brasília durante o Acampamento Terra Livre. “Nós nos pintamos com o barro da terra, que representa as cinzas e a força dos nossos antepassados. E pra gente toda luta, toda ação e articulação, nós precisamos da força e conexão com nossos ancestrais e a força da nossa mata,[”, frisa Ubirajara Pankararu.
“Esta luta é um elo de união. É a força de cada povo com sua história, com sua religião, sua cultura, seus cantos e sabedoria. A gente sente quando falam dos parentes da Amazônia, que sofrem com o garimpo. Enquanto vocês têm o celular para se comunicar, nós temos a natureza. A questão espiritual do índio não tem distância. A gente sente quando nossos biomas estão sendo atacados”, acrescenta o líder indígena.
Os Pankararu lutam há mais de 70 anos pela demarcação de território indígena às margens do São Francisco onde vivem sob ameaças de invasores e posseiros. “Existem outros povos em que os ancestrais tinham uma ligação tradicional e religiosa com o rio São Francisco e depois da construção da barragem da Chesf e da hidrelétrica nós perdemos esse elo. Agora essas famílias estão tentando retomar a conexão com o rio, com a luta pelo território”, afirma Ubirajara Pankararu.
De acordo com relatório ‘Povos Indígenas do Nordeste Impactados com a Transposição do rio São Francisco’, feito pelo Cimi (Conselho Indigenista Missionário), a região é caracterizada “por uma extrema falta de acesso à água por maior parte de sua população” – em especial nas áreas rurais, onde também se concentra a maior parte dos povos indígenas. “A nossa ciência está dentro da nossa tradição. Nós temos a tradição com o umbuzeiro, onde pegamos o umbu e fazemos uma oferenda aos irmãos que se encantaram nas águas e daí vem a nossa ligação com as águas”, explica o pajé Washington Pankararu, líder religioso da etnia.
O rio também tem grande importância simbólica no contexto da cosmologia e das crenças religiosas dos índios. “O Rio São Francisco é a nossa vida”, destaca o pajé. No rio, estão localizados os encantados da água, que inspiram rituais e constituem a força e própria identidade coletiva de um povo.
O Cimi calcula que as hidrelétricas instaladas no São Francisco foram responsáveis pela remoção forçada de mais de 150 mil pessoas, entre as quais vários povos indígenas. “O nosso território faz parte da gente e o não-indígena não entende. Quando eles invadem nossas terras, eles estão arrancando uma parte da nossa carne. O nosso território precisa sobreviver, para passarmos conhecimento e darmos continuidade às novas gerações”, afirma Ubirajara Pankararu.