Brutalidade marca assassinatos de indígenas em 2021

Polícia de Brasília em protesto de indígenas: brutalidade marca assassinatos de indígenas em 2021, aponta relatório do Cimi (Foto: José Cruz/Agência Brasil – 27/04/2017)

Relatório do Cimi sobre violência aponta recorde de invasões de territórios em ano com 176 homicídios e 148 casos de suicídios

Por Oscar Valporto | ODS 16 • Publicada em 18 de agosto de 2022 - 07:11 • Atualizada em 29 de novembro de 2023 - 10:21

Polícia de Brasília em protesto de indígenas: brutalidade marca assassinatos de indígenas em 2021, aponta relatório do Cimi (Foto: José Cruz/Agência Brasil – 27/04/2017)

No Acre, um menino de 12 anos foi morto a tiros por um homem que pescava num lago na área indígena Kulina: o corpo foi cortado em dois, uma parte jogada na água, outro largada na terra. Em Eirunepé (AM), cinco homens arrastam um menino Kanamari de 14 anos: ele foi amarrado pelo pescoço antes de ser estuprado e morto com 29 golpes de faca. No Mato Grosso do Sul, a Guarani Kaiowá Raíssa, de 11 anos, foi alcoolizada, abusada sexualmente por cinco pessoas e atirada de um penhasco. Os relatos desses crimes brutais contra crianças do ‘Relatório Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil – dados de 2021’, divulgado nesta quarta (17/08) pelo o Conselho Indigenista Missionário (Cimi).

Leu essa? Número de assassinatos de indígenas cresceu 61% em 2020

A brutalidade cada vez maior é um dado extra na escalada de violência contra os indígenas no governo Bolsonaro: o Cimi registrou 176 assassinatos em 2021, número pouco menor do que os 182 homicídios registrados em 2020. Nos cinco anos anteriores (2015/2019), a média foi inferior: 123 indígenas assassinados por ano. “Esse relatório foi o mais doloroso de todos pela crueldade dos crimes praticados contra os indígenas”, afirmou Roberto Antonio Liebgott, coordenador do Cimi Sul e um dos organizadores do relatório, no lançamento realizado na sede da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e transmitida pelo canal do Cimi no Youtube.

É chocante o número de crianças assassinadas. São corpos dilacerados, mocinhas esquartejadas. Parece que não basta matar; tem que destruir o corpo, decapitar, esquartejar. Isso é o horror, é inominável

Lúcia Helena Rangel
Professora e coordenadora do relatório do Cimi

O documento mostra ainda a multiplicação das ameaças às Terras Indígenas com o aumento, pelo sexto ano consecutivo, dos casos de “invasões possessórias, exploração ilegal de recursos e danos ao patrimônio”. Em 2021, o Cimi registrou a ocorrência de 305 casos do tipo, que atingiram pelo menos 226 Terras Indígenas (TIs) em 22 estados do país. No ano anterior, havia sido registrados 263 casos de invasão em 201 terras em 19 estados. A quantidade de casos em 2021 é quase três vezes maior do que a registrada em 2018, quando foram contabilizados 109 casos do tipo.

O relatório registrou aumento em 15 das 19 categorias de violência sistematizadas pela publicação em relação ao ano anterior – essas categorias são divididas em três capítulas: violência contra o patrimônio, que inclui as invasões; violência por omissão do poder público, como a falta de assistência na saúde e na educação e a mortalidade infantil; e a violência, que registra, além dos homicídios, lesões corporais, casos de racismo, violências sexuais, ameaças.

Suas mãos estão vermelhas com o sangue do nosso povo. Estamos lutando contra um governo que mata

Neusa Kunhã Takuá
Vice-cacique de aldeia Guarani Nhandeva

No caso dos assassinatos, 39 vítimas eram crianças ou adolescentes com menos de 19 anos. No Rio Grande do Sul, na TI Guarita, Daiane Kaingang, de 14 anos, foi estuprada e assassinada: o corpo, jogado no mato, foi encontrado dilacerado dias depois. Em Guajará-Mirim, Rondônia, uma menina indígena de 5 anos, deficiente, foi encontrada morta com marcas de violência. “É chocante o número de crianças assassinadas. São corpos dilacerados, mocinhas esquartejadas. Parece que não basta matar; tem que destruir o corpo, decapitar, esquartejar. Isso é o horror, é inominável”, desabafou a professora socióloga Lucia Helena Rangel, coordenadora da pesquisa para o relatório do Cimi.

Na introdução do relatório, Rangel e Lingblott apontam a violência “sistêmica e institucionalizadas” a que os indígenas estão submetidos. “Corpos, espíritos, terras e águas sofrem cruéis agressões, e as vidas de crianças, jovens, homens, mulheres, idosos e idosas estão sendo aniquiladas sob a omissão e conivência silenciosa dos entes e agentes públicos”, escrevem os coordenadores do documento. “Esse relatório é também uma denúncia dos ataques contra a dignidade da vida; no caso, a dignidade da vida indígena”, afirmou Antônio Eduardo Cerqueira de Oliveira, secretário-executivo do Cimi, durante o lançamento acompanhado por lideranças indígenas e representantes de ONGs e embaixadas.

Indígenas no lançamento do relatório do Cimi: aumento no número de invasões de territórios (Foto: Cimi/Divulgação)
Indígenas no lançamento do relatório do Cimi: aumento no número de invasões de territórios (Foto: Cimi/Divulgação)

Escalada de violência

No capítulo ‘Violência contra a Pessoa’, foram registrados, além dos 176 homicídios, casos de abuso de poder (33); ameaça de morte (19); ameaças várias (39); assassinatos (176); homicídio culposo (20); lesões corporais dolosas (21); racismo e discriminação étnico cultural (21); tentativa de assassinato (12); e violência sexual (14). Vice-cacique de aldeia Guarani Nhandeva no sul do estado do Rio, Neusa Kunhã Takuá culpou toda a sociedade brasileira pelas violências contra os indígenas. “Suas mãos estão vermelhas com o sangue do nosso povo”, afirmou a líder indígena no lançamento do relatório, enfatizando a responsabilidade de Bolsonaro. “Estamos lutando contra um governo que mata”.

Dom Roque Paloschi, presidente do Cimi e arcebispo de Porto Velho, destacou “o absurdo das muitas violações com ação direta do estado”, citando os três Poderes: “o Executivo pela omissão na demarcação das terras e pela ação violenta das forças policiais; o Legislativo pelos projetos de lei que atacam direitos dos povos indígenas; o Judiciário pela morosidade em tomar medidas protetivas”. Dom Roque disse que o relatório faz parte de uma missão. “É uma missão de cristãos e cristãs denunciar a violência contra os povos originários e a a violação sistemática de seus territórios e seus direitos”, frisou o presidente do Cimi.

O relatório de hoje é, a meu ver, mais um passo na construção do que nós precisamos: democracia. E a construção da democracia implica o enfrentamento da mentira, das fake news e de tudo que elas representam. Em Jesus, verdade e vida se integram. Pois Jesus é o caminho, a verdade e a vida. Fake news e mentira têm outra origem e seu resultado é sempre a morte. Por isso, lutar pela vida significa, necessariamente, mostrar a verdade

Dom Joel Portella Amado
Secretário-geral da CNBB

No capítulo ‘Violências contra o Patrimônio’, dos povos indígenas, foram registrados 871 casos de omissão e morosidade na regularização de terras; 118 conflitos relativos a direitos territoriais; e 305 invasões possessórias, exploração ilegal de recursos naturais e danos diversos ao patrimônio. No total de 1.294 casos de violências contra o patrimônio dos povos indígenas em 2021. “Temos um governo que não apenas não demarca, como prometeu, mas estimula o desrespeito aos territórios. Vemos uma escalada de invasões violentas: quem invade, também atira, bota fogo nas plantações e nas casas, passa o trator por cima de tudo”, denunciou a professora Lúcia Helena Rangel.

Lançamento do relatório do Cimi na sede da CNBB: ‘É uma missão de cristãos e cristãs denunciar a violência contra os povos originários e a a violação sistemática de seus territórios e seus direitos’, disse o secretário-geral Dom Joel (Foto: Cimi/Divulgação)

Roberto Antonio Liebgott acrescentou que o governo Bolsonaro implantou no Brasil uma anti-política indigenista, com “um monstro de cinco pernas”: desumanização, para tratar os indígenas como bichos que podem ser caçados; desterritorialização, para entregar suas terras à agricultura ou à mineração; devastação, para destruir o habitat indígena, a floresta; desconstituição dos direitos, com ações no Legislativo e no Judiciário; e a integração forçada. “Com esse monstro de cinco pernas, podemos prever que o relatório com números de 2022 terá números ainda maiores de violência contra os indígenas”, disse o coordenador do Cimi Sul.

O capítulo ‘Violência por Omissão do Poder Público’ registra 744 mortes de crianças até cinco anos – a quantidade de óbitos de crianças só foi maior, na última década, nos anos de 2014 (785), 2019 (825) e 2020 (776). O número de suicídios de indígenas em 2021 chegou a 148, o maior já registrado desde que o Cimi passou a contabilizar este dado com base em fontes públicas, em 2014. Ainda neste capítulo, foram registrados 34 casos de desassistência geral; 28 de desassistência na área de educação escolar indígena; 107 de desassistência na área de saúde; 13 de disseminação de bebida alcóolica e outras drogas; e 39 de morte por desassistência à saúde: um total de 221 casos, 25% a mais do que registros nestas categorias em 2020 (177 casos).

Secretário-geral da CNBB, Dom Joel Portella Amado destacou a importância do relatório do Cimi ao revelar esse cenário de violência contra os povos indígenas. “A CNBB está completando 70 anos e, ao longo de sua história, tem um serviço que considera indispensável: a solidariedade aos mais frágeis, aos vulneráveis. Nessa defesa, isso eu gostaria de destacar, se encontra sem dúvida a apresentação da verdade, ainda que a verdade seja dura e envolva sofrimento e perda de vidas. A verdade precisa ser dita”, afirmou Dom Joel ao abrir o evento. “O relatório de hoje é, a meu ver, mais um passo na construção do que nós precisamos: democracia. E a construção da democracia implica o enfrentamento da mentira, das fake news e de tudo que elas representam. Em Jesus, verdade e vida se integram. Pois Jesus é o caminho, a verdade e a vida. Fake news e mentira têm outra origem e seu resultado é sempre a morte. Por isso, lutar pela vida significa, necessariamente, mostrar a verdade”, concluiu o secretário-geral da CNBB.

Oscar Valporto

Oscar Valporto é carioca e jornalista – carioca de mar e bar, de samba e futebol; jornalista, desde 1981, no Jornal do Brasil, O Globo, O Dia, no Governo do Rio, no Viva Rio, no Comitê Olímpico Brasileiro. Voltou ao Rio, em 2016, após oito anos no Correio* (Salvador, Bahia), onde foi editor executivo e editor-chefe. Contribui com o #Colabora desde sua fundação e, desde 2019, é um dos editores do site onde também pública as crônicas #RioéRua, sobre suas andanças pela cidade

Newsletter do #Colabora

Um jeito diferente de ver e analisar as notícias da semana, além dos conteúdos dos colunistas e reportagens especiais. A gente vai até você. De graça, no seu e-mail.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Compartilhe:

Sair da versão mobile