A dor que o Rio não quer ver

Pais protestam contra retirada de homenagem a crianças vítimas da violência armada: “é a única forma que temos de pedir ajuda e não cair no esquecimento”, diz mãe

Por Ana Carolina Ferreira | ODS 16 • Publicada em 13 de fevereiro de 2025 - 07:57 • Atualizada em 13 de fevereiro de 2025 - 10:33

Pais e parentes protestam contra retirada de fotos de crianças vítimas da violência: a dor que o Rio não quer ver (Foto: Rafael Henrique Brito / ONG Rio de Paz – 04/01/2025)

“São as crianças de hoje que constroem o amanhã”. Mas e quando esse futuro é brutalmente interrompido pela violência armada? Amanda Ferreira Nunes, 40 anos, mãe do menino Lohan Samuel, ainda tenta lidar com a morte de seu filho. Lohan tinha apenas 11 anos quando foi vítima de uma troca de tiros entre facções rivais no Complexo do Chapadão, conjunto de favelas na Zona Norte do Rio de Janeiro, em 2023. Num ato por justiça, em 28 de dezembro de 2024, cartazes – com o rosto do filho de Amanda e de outras 48 crianças que perderam suas vidas por “balas perdidas – foram colocados às margens da Lagoa Rodrigo de Freitas, cartão postal da cidade, na Zona Sul do Rio. A homenagem não durou nem um dia: a prefeitura decidiu pela remoção do memorial.

Foi um ato desumano retirar a foto das nossas crianças, porque foi um grito profundo da nossa alma, de nós que somos mães e perdemos nossos filhos. É a nossa forma de pedir justiça e proteção para que outras famílias não passem o que estamos vivendo. Parece que só quem pode dar o grito de desespero são os poderosos

Amanda Ferreira Nunes
Mãe de Lohan Samuel, 11 anos

Mas bem ali, no local conhecido por Curva do Calombo, ficaram cartazes com nomes de policiais militares mortos em confrontos, outra homenagem realizada pela ONG Rio de Paz, a mesma que reuniu as fotos das crianças. O teólogo Antônio Carlos Costa, fundador e presidente da organização, explica que a manifestação pretendia ser simétrica na representação de grupos. “A primeira homenagem foi para um médico vítima de latrocínio naquele local; eu coloquei uma bicicleta pintada de preto, representando um cidadão da classe média morto. Depois, pensei em levar nomes de moradores de favela e também de crianças. Estava faltando uma instituição que costuma ser ignorada por nós, defensores de direitos humanos: a polícia. Então, passamos a representar no memorial a classe média, a favela e a polícia, durante nove anos”, conta.

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Essa simetria acabou quebrada após a ONG decidir trocar as placas com nomes das crianças para suas fotos, com o objetivo de causar mais impacto em quem passava por ali: milhares de cariocas e turistas passam pelo local todo dia, fazendo exercício ou apenas passeando; outros milhares de motoristas e passageiros de carros e ônibus trafegam pela pista ao lado da Lagoa. Agentes da prefeitura do município removeram as fotos do memorial; a justificativa oficial foi de que não houve consulta prévia.

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As únicas pessoas que fizeram homenagem à memória da Ester, que se ofereceram a mostrar a realidade, foram da Rio de Paz. Desde o dia que ela faleceu, eles colocaram a plaquinha com o nome; e, depois, a foto dela. É a única forma que eu e outros pais temos de pedir ajuda e justiça, para que não caiam no esquecimento

Thamires de Assis
Mãe de Ester, 9 anos

A retirada das fotos só ampliou a dor de mães e outros parentes das pequenas vítimas da violência armada no Rio. “Foi um ato desumano retirar a foto das nossas crianças, porque foi um grito profundo da nossa alma, de nós que somos mães e perdemos nossos filhos. É a nossa forma de pedir justiça e proteção para que outras famílias não passem o que estamos vivendo. Parece que só quem pode dar o grito de desespero são os poderosos”, desabafa Amanda, revoltada pela impossibilidade de reivindicar a memória do filho.

A mãe de Lohan Samuel complementa que não é uma questão de disputa entre os policiais homenageados e as crianças; os dois grupos deveriam estar presentes no memorial. “A gente tem a impressão de que estão tentando ocultar o acontecimento com nossas crianças, que estão tentando esconder para que as pessoas não tenham ciência de como o nosso estado está perigoso. Todos somos vítimas e perdemos alguém. É injusto”, afirma.

As fotos das crianças estão ali para que as pessoas serem lembradas, infelizmente, de acontecimentos trágicos com os quais as autoridades no Rio de Janeiro estão pouco se importando

Sandro Alves Silva
Pai de Kamilla, 12 anos

Como Amanda, Thamires de Assis, 30 anos, tem um misto de sentimentos – tristeza e revolta; ela também perdeu sua filha em fevereiro de 2023. Ester de Assis Oliveira, aos 9 anos, voltava da escola quando começou um tiroteio entre criminosos em Madureira, bairro da na Zona Norte, onde mais uma vida inocente foi interrompida. No mesmo dia, Thamires conheceu e recebeu apoio da ONG. “As únicas pessoas que fizeram homenagem à memória da Ester, que se ofereceram a mostrar a realidade, foram da Rio de Paz. Desde o dia que ela faleceu, eles colocaram a plaquinha com o nome; e, depois, a foto dela. É a única forma que eu e outros pais temos de pedir ajuda e justiça, para que não caiam no esquecimento”.

Thamires com girassóis, flores preferidas da filha: "a placa e as flores eram tudo que eu poderia fazer para pedir justiça" (Foto: Rafael Henrique Brito / ONG Rio de Paz - 28/12/2024)
Thamires com girassóis, flores preferidas da filha: “a placa e as flores eram tudo que eu poderia fazer para pedir justiça” (Foto: Rafael Henrique Brito / ONG Rio de Paz – 28/12/2024)

Antes da retirada da homenagem pela prefeitura, Thamires chegou a levar para às margens da Lagoa Rodrigo de Freitas, as flores que a pequena mais amava: girassóis, as flores do sol, que popularmente representam vitalidade, energia e alegria. “Foi como se estivessem arrancando ela de mim mais uma vez. A placa e as flores eram tudo que eu poderia fazer para pedir justiça”, desabafa a mãe de Ester.

Sandro Alves Silva, que perdeu a filha Kamila Vitória Aparecida, 12 anos, após um ataque a tiros em Del Castilho, bairro da Zona Norte, se junta aos lamentos. “É uma manifestação pacífica, que não atrapalha ninguém. As fotos das crianças estão ali para que as pessoas serem lembradas, infelizmente, de acontecimentos trágicos com os quais as autoridades no Rio de Janeiro estão pouco se importando. Até agora não tivemos uma resposta do prefeito o porquê das fotos terem sido retiradas; é como se tivesse ignorado a memória das nossas crianças”, desabafa Sandro.

Nossa história é a de uma nação cruel, que carrega no seu histórico o massacre de povos originários, da população preta arrancada de seu continente. Convivemos durante 21 anos com o regime militar, com anos de chumbo, de execução, tortura, desaparecimentos. E a gente esquece desse passado

Antônio Carlos Costa
Teólogo e fundador da ONG Rio de Paz

O presidente da ONG Rio de Paz destaca que a a retirada das fotos levou os familiares a pensarem que, para a prefeitura do Rio, a vida dos policiais tem mais valor do que as vidas das crianças mortas pela violência armada, por balas perdidas. “Se a preocupação era com a ordem pública e era necessário um pedido prévio do uso do espaço, como explicar a preservação dos cartazes referentes aos policiais assassinados? Por que isso?”, questiona Antônio Carlos Costa para quem a alegação de falta de consulta não se sustenta porque porque a instalação está presente há quase uma década no local sem pedido prévio à prefeitura.

Protesto contra retirada pela prefeitura de homenagem a crianças vítimas de violência no Rio: silenciamento e apagamento (Foto: Rafael Henrique Brito / ONG Rio de Paz - 04/01/2024)
Protesto contra retirada pela prefeitura de homenagem a crianças vítimas de violência no Rio: silenciamento e apagamento (Foto: Rafael Henrique Brito / ONG Rio de Paz – 04/01/2025)

Desde a retirada das fotos, há mais de 40 dias, os pais e os dirigentes da ONG vêm tentando uma reunião com o prefeito para tentar retomar a homenagem que consideram didática – mas o encontro chegou a ser marcado e depois adiado. “A gente aposta na educação porque a gente sabe que as crianças de hoje vão construir o futuro: quando a gente perde uma criança hoje, a gente perde a oportunidade de investir num futuro melhor”, diz Amanda Ferreira ao pensar nas vidas de crianças perdidas devido à violência armada, como aconteceu com seu filho Lohan.

Segundo levantamento realizado pelo Instituto Fogo Cruzado, desde julho de 2016, 700 menores de idade foram baleados na região metropolitana do Rio, segundo o Instituto Fogo Cruzado. O número equivale a uma vítima a cada quatro dias. Como diz a plataforma Futuro Exterminado, são “crianças ou adolescentes que estavam a caminho da escola ou da padaria, brincando no quintal ou correndo com amigos”. Somente em 2024, foram 26 crianças baleadas, número recorde desde o início do monitoramento.

Parentes fazem ato na sede do Executivo Municipal após prefeito ter desmarcado reunião: desrespeito à dor (Foto: Rafael Henrique Brito / ONG Rio de Paz -23/01/2025)
Parentes fazem ato na sede do Executivo Municipal após prefeito ter desmarcado reunião: desrespeito à dor (Foto: Rafael Henrique Brito / ONG Rio de Paz -23/01/2025)

Reflexo de cultura do esquecimento no país

A retirada da instalação com as fotos da criança na Lagoa Rodrigo de Freitas reflete um panorama ainda maior, sobre uma dor que não só o estado do Rio de Janeiro, mas todo o Brasil se nega a enxergar, acredita o fundador da ONG Rio de Paz, que também jornalista, escritor e ex-pastor presbiteriano. Para Antônio Carlos Costa, muita gente se incomoda com manifestações como a da organização. “Muitos não querem as fotos daquelas crianças ali, porque é a lembrança perene do nosso fracasso como sociedade, porque aquelas mortes não seriam admitidas, por exemplo, na Zona Sul”, afirma.

Como exemplo, ele lembra o caso do estudante e músico Rafael Mascarenhas, filho da atriz Cissa Guimarães, vítima de atropelamento em 2010 num túnel da cidade. Cissa estampou o retrato do filho em camisetas e organizou manifestações pela punição do responsável pela morte do rapaz: hoje seu nome batiza o Túnel Acústico Rafael Mascarenhas. “Devemos ser solidários também à dor desses pais de crianças vítimas de bala perdida. São situações trágicas que permanecem ocultas para muitos moradores das áreas mais abastadas. Pessoas que, caso se unissem e pressionassem nossas autoridades públicas, salvariam a vida das crianças, impediriam que outros pais e mães passassem por essa mesma dor”, afirma Antônio.

Uma instalação como essa na Lagoa exerce essa função didática, educativa. Estamos dizendo o seguinte: temos que romper com esse padrão. Temos que ser um povo que, diante desses quadros, expresse mais ira. Uma sociedade que não tem esse sentimento de indignação é uma sociedade morta

Antônio Carlos Costa
Teólogo e fundador da ONG Rio de Paz

Mas por que esse apagamento da memória acontece no Brasil? Para o presidente da Rio de Paz, ativista pelos direitos humanos, há um “déficit do ponto de vista do processo civilizatório” no Brasil, por conta dos 388 anos de escravização que têm reflexos até hoje nas desigualdades socioeconômicas do país. “São quase quatro séculos caracterizados por uma cultura de exclusão. De um ser humano vendo o outro como um objeto. Isso nos marcou de modo que hoje é traço da cultura brasileira o desrespeito à santidade da vida humana”, explica o teólogo, ao revisitar o passado do país para entender suas mazelas atuais.

As fotos das crianças vítimas da violência às margens da Lagoa, cartão postal do Rio: prefeito mandou tirar (Foto: Rafael Henrique Brito / ONG Rio de Paz - 28/12/2024)
As fotos das crianças vítimas da violência às margens da Lagoa, cartão postal do Rio: prefeito mandou tirar (Foto: Rafael Henrique Brito / ONG Rio de Paz – 28/12/2024)

Antônio Carlos Costa não nega traços pelo qual o povo brasileiro é popularmente conhecido – a cultura da dança e da música, a alegria e a facilidade de fazer amizades. Mas afirma que existe um lado obscuro que é preciso reconhecer. “Nossa história é a de uma nação cruel, que carrega no seu histórico o massacre de povos originários, da população preta arrancada de seu continente. Convivemos durante 21 anos com o regime militar, com anos de chumbo, de execução, tortura, desaparecimentos. E a gente esquece desse passado. Para a perplexidade do mundo, elegemos um presidente que celebrou esse período da história do Brasil. Que, num voto na Câmara, fez menção honrosa a um torturador, uma das pessoas mais vis que passaram pelo nosso país”, diz, referindo-se ao ano de 2016, quando Bolsonaro dedicou seu voto pelo impeachment de Dilma Rousseff à memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, ativo torturador durante a ditadura.

A história explica a “apatia da sociedade”, segundo Antônio, que também questiona como é possível uma nação usar verba pública para sediar uma edição dos Jogos Olímpicos, em 2016, ou promover grandes eventos, como a Copa do Mundo de 2014, quando há tantas pessoas em situação de miséria e vulnerabilidade. “É um problema da nossa cultura, e uma instalação como essa na Lagoa exerce essa função didática, educativa. Estamos dizendo o seguinte: temos que romper com esse padrão. Temos que ser um povo que, diante desses quadros, expresse mais ira. Uma sociedade que não tem esse sentimento de indignação é uma sociedade morta. O que acontece no Brasil é algo gravíssimo, mas tratado com indiferença, a começar pelos supostos representantes do povo”, conclui.

Ana Carolina Ferreira

Estudante de jornalismo na Universidade Federal Fluminense (UFF). Gonçalense, ou papa-goiaba, apaixonada pelas possibilidades de se contar histórias na área da comunicação. Foi estagiária na Assessoria de Comunicação do Ministério Público Federal e da UFF. Amante da sétima arte e crítica amadora do universo geek.

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