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Veja o que já enviamos2024: Rio tem dezembro macabro, marcado por balas, tiros e mortes
Mês de violência armada apaga qualquer intenção de retrospectiva 2024 com boas notícias
Esta coluna, com publicação marcada para o último dia do ano, podia ser uma retrospectiva de coisas boas que aconteceram no Rio de Janeiro em 2024, da balneabilidade de praias na Baía de Guanabara à acachapante derrota do candidato bolsonarista a prefeito. Mas tivemos um dezembro macabro, de muitos tiros e muitas balas – um surto epidêmico na violência armada endêmica que o Rio enfrenta há quatro décadas.
A reta final do ano trouxe uma pilha de casos trágicos que servem (ou deveriam servir) para humanizar as lúgubres estatísticas da violência. Para citar a mais absurda, 2024 foi o ano com o maior número de crianças baleadas na Região Metropolitana do Rio de Janeiro nos oito anos de funcionamento do Instituto Fogo Cruzado: foram 26 crianças vítimas de tiros – quatro morreram e 22 ficaram feridas.
Leu essa? Número de mortes na Zona Oeste dobrou com guerra entre milícia e tráfico
No começo deste dezembro macabro, Kamilla Vitória, de 12 anos, foi morta após levar um tiro – de pistola ou revólver, pelas informações preliminares da polícia – durante intenso tiroteio enquanto brincava numa praça na Favela do Guarda, na Zona Norte do Rio. De acordo com depoimentos, o tiroteio foi iniciado por milicianos (ou ex-milicianos) agora aliados ao Comando Vermelho – sim, o Rio agora tem isso: facções criminosas do tráfico de drogas aliadas a milicianos e milícias parceiras de traficantes.
Na semana seguinte, Davi Delgado Magno, de 4 anos, foi baleado e morto em meio a uma briga entre seus pais no Morro da Fé, também na Zona Norte. A mãe tinha uma medida protetiva contra o pai que a acusa de ter chamado traficantes para resolver a briga do casal. O menino estava no carro do pai quando levou um tiro disparado por criminosos – que seriam do Comando Vermelho, facção que controla a venda de drogas no morro. Certamente não é normal. Mas não é incomum, neste Rio de Janeiro do século 21, que traficantes (ou milicianos) sejam chamados para resolver disputas assim nos territórios que controlam e onde o Estado e suas leis são ignorados.
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Veja o que já enviamosTambém não é normal que uma pessoa seja baleada ao errar o caminho e entrar numa região controlada por criminosos. Mas não é incomum o que aconteceu neste dezembro macabro com o turista argentino Gaston Fernando Burlon levou dois tiros de pistola ao entrar de carro na favela do Escondidinho quando ia com a família visitar o Cristo Redentor. Em 2024, houve 11 casos de disparos contra pessoas que entraram por engano em favelas da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, segundo dados do Instituto Fogo Cruzado. Ao todo, 16 pessoas foram baleadas: duas morreram e 14 ficaram feridas; o argentino Gaston ainda está internado, em estado grave.
De acordo com o Fogo Cruzado, nos últimos oito anos, 50 pessoas foram baleadas nestas circunstâncias: 10 morreram e 40 ficaram feridas. Esta trágica estatística pode já ter ficado mais trágica. Na noite do último sábado de 2024, a gerente contábil Diely Maia – baiana, radicada em São Paulo e apaixonada pelo Rio – foi morta a tiros aparentemente pelo motorista do seu Uber ter entrado por engano numa favela da Zona Oeste.
Desde 2017, o Fogo Cruzado mapeia a violência armada – a maior praga do Rio de Janeiro. É o uso indiscriminado de armas – por criminosos, por policiais e outros agentes de segurança e até por civis – a maior ameaça à segurança dos moradores da capital e da Região Metropolitana, uma ameaça muito maior do que o comércio de drogas. A guerra às drogas, alimentada pela polícia, só aumenta o número de confrontos armados e, paradoxalmente, o poder de fogo dos criminosos, que investem em mais armas e munições para garantir seu comércio e seus pontos de venda.
De um confronto entre policiais e criminosos, veio o tiro que matou a médica e oficial da Marinha Gisele Mendes de Souza e Mello, dentro do Hospital Naval Marcílio Dias. Ela foi baleada por um tiro de pistola na cabeça, vindo, de acordo com a polícia, da arma de um traficante que reagia a uma operação policial da PM. Estatísticas sobre balas perdidas atingindo inocentes como esta da médica e capitã, o Fogo Cruzado também tem: Gisele foi a 105ª vítima de bala perdida no Grande Rio em 2024 – 23 morreram. Pelo menos, 60 das 105 vítimas foram atingidas durante operações policiais. Foi também durante um confronto entre forças de seguranças e criminosos que a contadora Alessa Vitorino morreu após ser baleada nas costas no Complexo da Maré, também neste macabro dezembro).
É importante notar que, em todos esses casos citados acima (de Kamilla, de Davi, de Gaston, de Gisele, de Alessa), os tiros vieram de pistolas ou revólveres – e não dos fuzis que tanto os bandidos quanto a polícia gostam de ostentar. E, pelo menos, a metade das pistolas e revólveres apreendidas pela polícia são fabricados aqui no Brasil, como também a maior parte da munição flagrada com criminosos. Ainda assim, nunca houve interesse policial em saber como essas centenas de armas da Taurus e da Rossi e milhares de munições da CBC acabam servindo ao crime, nem qualquer tentativa de aumentar a responsabilidade da indústria de armamentos no controle de sua produção.
E, assim, seguimos assim no Rio de Janeiro – como em muitas outras partes do Brasil – com essa rotina de tiros, balas e armas que não poupa nem famílias a caminho da ceia de Natal. Num desfecho mórbido para este dezembro macabro, policiais rodoviários federais despejaram um punhado de tiros, na noite do dia 24, num carro na BR-040, onde estavam pai, mãe e dois filhos. A jovem Juliana, estudante de enfermagem de 26 anos, levou um tiro na cabeça – em estado gravíssimo, luta pela vida no hospital. Coloco um ponto final aqui, no último domingo de 2024, com a ínfima esperança de termos menos balas, menos tiros e menos armas em 2025.
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