Munduruku vira inspiração de luta para o mundo

Protocolo de consulta que barrou grande obra no rio Tapajós é referência para outros povos

Por Janaína Cesar | ODS 15 • Publicada em 22 de outubro de 2019 - 11:47 • Atualizada em 23 de outubro de 2019 - 12:56

Para os Munduruku a terra é sagrada: “A gente está protegendo a nossa mãe que é onde os nossos filhos vão sobreviver. Para nós, uma terra é uma vida e a gente está cuidando da vida da natureza também”. Foto Anderson Barbosa
Para os Munduruku a terra é sagrada: “A gente está protegendo a nossa mãe que é onde os nossos filhos vão sobreviver. Para nós, uma terra é uma vida e a gente está cuidando da vida da natureza também”. Foto Anderson Barbosa
Para os Munduruku a terra é sagrada: “A gente está protegendo a nossa mãe que é onde os nossos filhos vão sobreviver. Para nós, uma terra é uma vida e a gente está cuidando da vida da natureza também”. Foto Anderson Barbosa

Vaticano – “As comunidades estão agindo como o povo Munduruku”, disse Keila Marães Giffoni, da coordenação da Caritas, do Pará, na tarde desta segunda-feira, 21, durante uma apresentação sobre as violações dos direitos humanos dos povos indígenas realizada em evento paralelo ao Sínodo da Amazônia, em andamento no Vaticano até o dia 27 deste mês. Keila se refere ao protocolo de consulta do povo Munduruku que conseguiu barrar a construção de uma das hidrelétricas no rio Tapajós.

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Para a paraense, “esse é um instrumento de luta e esperança que está servindo de inspiração para a construção de protocolos de consulta de outros povos”, disse. “Comunidades quilombolas, em Belém, conseguiram barrar a construção de uma linha de transmissão e de uma rodovia que passariam dentro do território. Além disso conseguiram levar suas propostas para o plano diretor do município. E isso só aconteceu porque quando foram nos procurar, a primeira inspiração que tivemos foi o protocolo dos Munduruku. Baseado nele, foi construído o dos quilombolas”, explicou. Para ela “os povos dos outros países que compõe a Pan-Amazônia precisam desse instrumento para que consigam barrar a implementação de corporações transnacionais e garantir a permanência na terra, a soberania alimentar, a preservação da cultura e as tradições”.

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O povo Munduruku estabeleceu que, em vez de estar disponível para responder à consulta prévia quando os grandes projetos chegassem, fariam o que queriam em seu território, pontuando, previamente, questões para eles imprescindíveis

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Daniel Seidel, membro da Rede Eclesial Pan-Amazônica e assessor para os direitos humanos das dioceses do Xingu e Marabá. Foto Janaína Cesar
Daniel Seidel, membro da Rede Eclesial Pan-Amazônica e assessor para os direitos humanos das dioceses do Xingu e Marabá. Foto Janaína Cesar

O protocolo de consulta é um instrumento de luta e resistência dos povos indígenas que nasceu a partir da convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), de 1989. A 169 estabelece que os povos indígenas devem ser ouvidos quando existem projetos que incidem em seus territórios. “Mas os Munduruku não se restringiram ao que está tecnicamente na convenção. Eles foram além, justamente em relação a outros aspectos que, antropologicamente, para eles, são fundamentais”, explicou Daniel Seidel, membro da Rede Eclesial Pan-Amazônica (Repam), assessor para os direitos humanos e incidência dos territórios das dioceses do Xingu e Marabá.

Segundo Daniel, “o povo Munduruku estabeleceu que, em vez de estar disponível para responder à consulta prévia quando os grandes projetos chegassem, fariam o que queriam em seu território, pontuando, previamente, questões para eles imprescindíveis. O uso da terra deve ser feito conforme a cultura desse povo, ela não pode ser pensada pelo branco e implantada para o índio. Esse protocolo, além de dizer como deve ser feito, abrange aspectos culturais e tradicionais daquele povo em questão e os outros povos que estão construindo os protocolos de consulta estão se baseando nisso também. Conforma a cultura daquele povo, é a destinação do território”.

“Como se fosse um projeto de futuro, a utopia e sonho que eles têm para o território daqui em diante”, disse Daniel. “A 169 exigia a consulta prévia e informava sobre os projetos quando esses já estavam prontos para serem instalados e com isso todo o processo, na verdade, era puramente burocrático, como o que aconteceu em Altamira, por exemplo.” Daniel acompanhou os trabalhos no Xingu, em Altamira, e lembra que as condicionantes de Belo Monte não foram cumpridas. “Mais de 80 mil pessoas foram deslocadas, as comunidades que existiam foram dilaceradas, jogadas em reassentamentos urbanos coletivos, outros, na floresta, deixados sem transporte público”, contou.

Mas a experiência dos Munduruku veio para provar que o protocolo de consulta, feito da maneira deles, funciona. “Os quilombolas da base de Alcântara estão com seu protocolo pronto inspirados na experiência dos Munduruku”, disse Daniel. O protocolo de consultas se tornou uma referência para o trabalho da Repam porque entenderam que é uma estratégia importante de luta que começou as ser disseminada a partir da situação dos Munduruku para o restante do estado do Pará e para o Maranhão. E a intenção é fazer essa experiência circular mais ainda. A Repam conta com a ajuda da Caritas e com uma assessoria de advogados para que os povos possam se organizar, para que quando os empreendimentos chegarem, eles já estejam com os protocolos elaborados.

Reinaldo Poxo Munduruku, do rio Tapajós, faz um discurso em sua língua, durante a audiência com Victoria Tauli-Corpuz (ao fundo, de vermelho), relatora especial da ONU sobre Direitos dos Povos Indígenas. Foto Marizilda Cruppe
Reinaldo Poxo Munduruku, do rio Tapajós, faz um discurso em sua língua, durante a audiência com Victoria Tauli-Corpuz (ao fundo, de vermelho), relatora especial da ONU sobre Direitos dos Povos Indígenas. Foto Marizilda Cruppe

Segundo Marline Dassoler Buzatto, missionária da secretaria nacional do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), outros povos que também estão ameaçados pela implementação de hidrelétricas e mineradores, já estão se organizando. “Temos povos se organizando no Mato Grosso, Pará, com o povo Maraguá, e Amazonas, com o povo Mura, que em breve vai amarrar a construção da Potassil do Brasil, uma mineradora que pretende explorar potássio naquela terra.”

Mas esse instrumento de proteção usado pelos povos indígenas e quilombolas pode estar com os dias contados. A convenção 169 é a base do protocolo de consulta, o Brasil é um dos signatários e por isso os protocolos devem ser respeitados e executados. O país, no entanto, tem de 5 de setembro de 2021 a 5 de setembro de 2022 para informar se deixará de segui-la ou não. Mas o governo brasileiro presidido por Jair Bolsonaro, segundo reportagem publicada pelo jornal Folha de S. Paulo de 4 de outubro, já deixou claro sua posição em relação à vários pontos da convenção: para ele não há regulamentação sobre como deve ser realizada a consulta; acha errado que as comunidades quilombolas se enquadrem como comunidades tribais e vê a consulta prévia como um impacto a “projetos de interesse para o país”.

Janaína Cesar

Formada pela Universidade São Judas Tadeu (SP), trabalha há 17 anos como jornalista e vive há 15 na Itália, onde fez mestrado em imigração, na Universidade de Veneza. Escreve para Estadão, Opera Mundi, IstoÉ e alguns veículos italianos como GQ, Linkiesta e Il Giornale di Vicenza. Foi gerente de projetos da associação Il Quarto Ponte, uma ONG que trabalha com imigração.

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