Lições (e urgências) indígenas em Oxford

A partir da esquerda, Raoni Neto, o cacique Raoni, Megaron, Davi Yanomami, seu filho Dario e a deputada Joenia. Tainá de Luccas

Líderes dos povos da floresta fazem apelo dramático por socorro em painel sobre a Amazônia na universidade mais antiga do Reino Unido

Por Cristina Serra | ODS 15 • Publicada em 5 de fevereiro de 2020 - 10:06 • Atualizada em 17 de fevereiro de 2020 - 19:25

A partir da esquerda, Raoni Neto, o cacique Raoni, Megaron, Davi Yanomami, seu filho Dario e a deputada Joenia. Tainá de Luccas
O cacique Raoni: "Vocês são dependentes do dinheiro para comprar comida. Nós, não. Nós temos caça e roça. Não precisamos de dinheiro. Nós dependemos da floresta, da terra e do rio" Foto de Tainá de Luccas
O cacique Raoni: “Vocês são dependentes do dinheiro para comprar comida. Nós temos caça e roça. Não precisamos de dinheiro. Nós dependemos da floresta, da terra e do rio” Foto de Tainá de Luccas

A mais alta nobreza dos povos indígenas brasileiros visitou a terra da rainha Elizabeth e foi recebida na universidade de Oxford, na Inglaterra, para pedir ajuda internacional no momento em que suas terras e culturas estão sob ataque da política anti-ambiental do governo Bolsonaro. Juntos, os caciques Raoni Metuktire e Megaron Txucarramãe, da etnia Caiapó, Davi Kopenawa, dos  Yanomami, e a deputada federal Joênia Wapichana fizeram um dramático pedido de apoio à plateia de estudantes e professores, ao participaram do painel “Amazônia: violência crescente e tendências preocupantes”, do Departamento de Desenvolvimento Internacional da universidade, a mais antiga do Reino Unido, com mais de 900 anos. O #Colabora acompanhou o encontro, realizado sábado, 1º de fevereiro.

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Os líderes indígenas levaram uma pauta de prioridades que mostra a urgência dos problemas em seus territórios, frequentemente ameaçados, toda vez que o presidente se manifesta sobre a situação dos índios no Brasil. E apresentaram estratégia comum, ao pedir que os europeus pressionem seus governos para que estes tentem fazer pressão sobre Bolsonaro a fim de que: não seja liberada a mineração em terras indígenas; os garimpeiros invasores sejam retirados da Terra Yanomami, em Roraima; e que sejam demarcados os territórios hoje em processo de regularização. Pediram também que os consumidores europeus não comprem produtos originários de invasões de terra indígena, como madeira e ouro.

Segundo Davi Yanomami, estima-se que cerca de 20 mil garimpeiros invadiram a reserva indígena – com área um pouco maior do que Portugal – poluindo os rios e o solo com o uso de mercúrio na extração de ouro. “Ajudem-nos! Não fiquem só nos ouvindo”, apelou Davi, estimados 63 anos, xamã do seu povo, premiado internacionalmente e autor (em parceria com com o antropólogo Bruce Albert) do best-seller “A queda do céu”. “Bolsonaro diz que a Terra Yanomami é muito grande para pouco índio, que queremos criar território independente. É mentira! Somos filhos da terra. É preciso mergulhar fundo e descobrir onde o coração da terra está batendo. O meio ambiente está pedindo socorro. A mineração é boa para os governos e as grandes empresas. Mas não traz benefícios pra nós. O garimpo está matando os rios, os peixes e os índios. Escrevam para o presidente Bolsonaro””, reforçou Davi.

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É preciso mergulhar fundo e descobrir onde o coração da terra está batendo. O meio ambiente está pedindo socorro. A mineração é boa para os governos e as grandes empresas. Mas não traz benefícios pra nós. O garimpo está matando os rios, os peixes e os índios. Escrevam para o presidente Bolsonaro!

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Os líderes indígenas não quiseram ficar no espaço tradicional reservado aos palestrantes, em frente à plateia. Preferiram formar um círculo, como fazem nas aldeias, com o público próximo a eles podendo fazer perguntas. Apesar da informalidade, a presença dos caciques criou uma aura de reverência na plateia, sobretudo pelo carisma de Raoni, estimados 90 anos, e hoje um dos maiores símbolos mundiais de defesa das florestas tropicais. Apesar de ter aprendido um pouco de português nos anos 1950, quando teve contato com os irmãos Villas Boas, Raoni agora só se manifesta no idioma de sua tribo e é traduzido pelo sobrinho, Megaron Txucarramãe, estimados 69 anos.

Desta vez estava sem o cocar de penas amarelas que costuma usar e seus longos cabelos grisalhos se destacavam, além do botoque, o adorno de madeira fixado no lábio inferior, usado apenas pelos grandes guerreiros e oradores da etnia caiapó. Raoni é as duas coisas. Ainda jovem compreendeu que os índios teriam de lutar para garantir o direito às suas terras. E desde então não parou mais. Graças à sua mobilização, conseguiu a demarcação das terras dos caiapós, no Mato Grosso. Sua luta ficou mais conhecida depois que obteve o apoio do cantor Sting e com ele fez uma turnê internacional, no fim dos anos 1980, denunciando o desmatamento da Amazônia, já preocupante àquela época e que só se agravou nos últimos anos. Recebido por presidentes, reis, príncipes, papas e artistas, é desqualificado pelo presidente de seu próprio país. Em setembro do ano passado, na ONU, Bolsonaro disse que Raoni não tinha mais o “monopólio” da representação dos indígenas brasileiros.

A partir da esquerda, Bepró (neto de Raoni), o cacique Raoni, Megaron, Davi Yanomami, seu filho Dario e a deputada Joenia. Tainá de Luccas

Não foi isso que se viu em Oxford, onde cacique magnetizou a plateia e foi tratado com evidente deferência pelos demais indígenas presentes. “Não quero guerra, não quero conflito. Deixem o índio viver em paz na floresta. Pressionem os governos de vocês”, apelou Raoni à audiência, com várias nacionalidades europeias presentes. “Vocês são dependentes do dinheiro. Trabalham para ter dinheiro para comprar comida. Nós, não. Nós temos caça e roça. Não precisamos de dinheiro. Nós dependemos da floresta, da terra e do rio”, ensinou o líder indígena.

O sobrinho Megaron reforçou a estratégia de pedir pressão internacional. “Façam documentos para que os governos de vocês tomem providências. A pressão é muito importante para ajudar os povos indígenas”, afirmou o cacique, lembrando também da situação dramática da etnia guarani-kaiowá, acossada pelo agronegócio no Mato Grosso do Sul. Megaron lembrou a campanha que lançou Raoni ao Prêmio Nobel da Paz no ano passado e disse que ela será relançada neste ano.

O pioneirismo de Joênia Wapichana, 46 anos, a credenciou para estar ao lado das grandes lideranças. Primeira mulher indígena advogada, primeira indígena deputada federal (pelo partido Rede Sustentabilidade) e também a única a fazer uma inédita defesa no Supremo Tribunal Federal a favor da homologação da reserva Raposa Serra do Sol, em Roraima – tese vitoriosa na corte, em 2009. Joênia destacou que muitos produtos comercializados na Europa, como madeira e ouro, são extraídos ilegalmente em terras indígenas. “São produtos que trazem o sangue indígena. Vocês também recebem produtos do agronegócio brasileiro. Vocês acham que estão livres dos agrotóxicos? Não estão, porque o governo brasileiro autorizou cerca de 300 agrotóxicos que foram banidos aqui para serem usados no Brasil. Se vocês compram, não estarão livres”, enfatizou Joênia. “Exijam dos governos de vocês um selo ou certificação que garanta que os produtos que vocês consomem não tem origem em crimes cometidos em áreas indígenas”, sugeriu.

Indígenas da nova geração acompanham o giro das lideranças mais velhas na Europa. O filho de Davi Yanomami, Dario, expôs uma outra preocupação: que os não índios aprendam a distinguir as diferenças e particularidades entre as etnias. “Vocês usam muito o conceito de povos da Amazônia. O conceito certo é povos da floresta ou povos originários. Tem uma diversidade muito grande”, argumentou Dario, o que faz todo sentido, considerando que existem 305 povos indígenas e 274 línguas faladas por eles. Demonstrando a reverência com os mais velhos, Dario disse aos acadêmicos: “Meu mestrado e meu doutorado estão aqui”, enquanto apontava para Raoni, Megaron, Davi e Joênia. Os embaixadores dos povos indígenas ainda teriam outras capitais a percorrer nesta semana. Querem levar sua voz a quem quiser ouvi-los, já que em seu próprio país têm tido dificuldade de reverberar sua luta pelo meio ambiente e por direitos humanos, que deveria ser a de todos os brasileiros.

Cristina Serra

Trabalhou nas redações dos jornais Resistência, Leia Livros e Jornal do Brasil, da revista Veja e da Rede Globo. Cobriu o desastre de Mariana, em 2015, para o Fantástico. Escreveu o livro "Tragédia em Mariana - A história do maior desastre ambiental do Brasil" (Record).

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