Incêndio em área úmida da Amazônia provoca perda de 27% das árvores

Estudo aponta que, em três anos apenas, mortalidade da vegetação de pequeno e médio porte abriu espaço até para aparecimento de espécies nativas de bambu

Por Agência Fapesp | ODS 15 • Publicada em 10 de junho de 2021 - 11:01 • Atualizada em 29 de outubro de 2024 - 12:32

Queimada observada por pesquisadores em área úmida da Amazônia: perda de 27% das árvores (Foto: Aline Pontes-Lopes/Inpe)

(Luciana Constantino*) – Mesmo nas regiões mais úmidas da Amazônia, o impacto de incêndios florestais – que só se alastram por essas áreas quando são registradas fortes secas – é significativo e capaz de mudar as características da vegetação ao longo das próximas décadas, embora ainda seja menor do que em outras parcelas do bioma.

Estudo inovador, que mediu in loco os efeitos do fogo, aponta que a floresta queimada em área úmida perde, em média, 27,3% das árvores, principalmente de pequeno e médio porte, e 12,8% da biomassa (estoque de carbono) até três anos após o incêndio. A mortalidade da vegetação, maior nos primeiros dois anos, abriu espaço, por exemplo, para o desenvolvimento de espécies nativas de bambus herbáceos.

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Com uma área de 5 milhões de quilômetros quadrados (km2), a Amazônia Legal abrange 59% do território brasileiro, distribuída por 775 municípios. Representa 67% das florestas tropicais, abrigando um terço das árvores do mundo, e 20% das águas doces.

É também o bioma brasileiro que historicamente mais registra focos de incêndio por ano, de acordo com dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Somente em 2020, foram 103.161 focos de queimadas, o maior registro desde 2017 (com 107.439 notificações no ano). E o terceiro maior na década, ficando atrás de 2015, com 106.438 focos.

Leia também: Fumaças das queimadas encobre Manaus

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Vimos nas áreas queimadas que arvoretas, mudas e arbustos são os primeiros a morrer, abrindo sub-bosque que permitiu caminhar pela floresta e instalar as parcelas de inventário florestal em 2015. Em até dois ou três anos morreram, sobretudo, as árvores pequenas e médias

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Esses incêndios florestais de 2015, provocados pela seca extrema causada pelo fenômeno climático El Niño, foram o foco de uma pesquisa apoiada pela Fapesp por meio de dois projetos e publicada na revista Proceedings of the Royal Society B: Biological Sciences.

Conduzido sob a orientação do chefe da Divisão de Observação da Terra e Geoinformática (DIOTG) do Inpe, Luiz Eduardo Oliveira e Cruz de Aragão, o estudo detalha os impactos das queimadas na vegetação usando também dados coletados diretamente no campo.

“Estudar como as florestas respondem ao fogo no longo prazo é uma das fronteiras do conhecimento sobre o funcionamento da Amazônia. Este entendimento visa não só melhorar o potencial de modelar o futuro do bioma e sua interação com o clima, como também prover subsídios para que o Brasil possa reportar melhor suas emissões e remoções de carbono dentro do contexto das políticas de redução de emissões por desmatamento e degradação florestal [REDD+], que podem trazer benefícios financeiros para o país”, afirma Aragão à Agência Fapesp.

Os pesquisadores analisaram áreas queimadas e não queimadas imediatamente após os incêndios que atingiram o norte da região entre os rios Purus e Madeira, na Amazônia Central, e fizeram recenseamentos anuais para rastrear os fatores demográficos que determinaram a mudança de biomassa ao longo dos três anos seguintes.

A área está localizada a cerca de 90 km a sudeste de Manaus, no município de Autazes, próximo à rodovia BR-319. Os pesquisadores mediram árvores com diâmetro de 10 centímetros ou mais e avaliaram como o crescimento do caule e a mortalidade foram influenciados pela intensidade do fogo (representada pela altura da marca queimada na base das árvores) e pelas características morfológicas da vegetação (tamanho e densidade da madeira).

A maior parte da coleta in loco ficou a cargo da doutoranda Aline Pontes-Lopes, do Inpe, e da pesquisadora Camila Silva, do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), primeiras autoras do artigo.

“Esses dados de campo são muito valiosos. No trabalho foram coletados múltiplos censos de uma mesma área queimada, que é um tipo de informação rara na Amazônia, ainda mais em floresta úmida. São poucos os lugares em que existem dados de campo sobre a mortalidade das árvores, o crescimento e a avaliação da dinâmica do local. Além disso, o estudo mostra efeitos sobre áreas mais úmidas da floresta, onde não era comum fogo, trazendo novos conhecimentos dessas regiões”, avalia Ricardo Dal’Agnol, coautor do artigo.

Pesquisador na DIOTG-Inpe, Dal’Agnol também recebe apoio da Fapesp e participou de outro trabalho publicado em janeiro que apontou o estresse hídrico, a fertilidade do solo e a degradação vegetal como fatores que influenciam na mortalidade de árvores, abrindo clareiras na floresta amazônica.

Arbustos e mudas são primeiros a morrer

“Vimos nas áreas queimadas que arvoretas, mudas e arbustos são os primeiros a morrer, abrindo sub-bosque que permitiu caminhar pela floresta e instalar as parcelas de inventário florestal em 2015. Em até dois ou três anos morreram, sobretudo, as árvores pequenas e médias”, explica Pontes-Lopes. Esses sub-bosques são formados por um conjunto de vegetação de baixa estatura que cresce em nível abaixo do dossel florestal.

Segundo a doutoranda, outro ponto importante é o impacto do fogo na biomassa. De acordo com o estudo, enquanto a biomassa permaneceu estável ao longo dos três anos em áreas não queimadas, nas regiões atingidas houve redução de 12,8% no mesmo período.

“O impacto foi particularmente grande em lianas [cipós e trepadeiras], que perderam 38,6% dos indivíduos e 38,1% da biomassa. As árvores perderam 28% dos indivíduos e 12,1% na biomassa, enquanto nas palmeiras a queda foi de 14,6% e 27,2%, respectivamente. Essas mesmas comparações nas áreas não queimadas mostraram perdas muito menores ou nenhuma tendência de mudança significativa”, informa o artigo.

Ao analisar as alterações no crescimento ao nível do tronco e comparar áreas atingidas pelo incêndio com as não afetadas, o trabalho indica que árvores de menor densidade de madeira cresceram mais rapidamente em regiões queimadas até três anos depois. Além disso, as de maior tamanho acumularam mais carbono nas parcelas queimadas.

Entretanto, o maior crescimento destas duas classes de árvores não significou aumento na biomassa total da floresta ou incremento na produção de madeira, sendo insuficiente para contrabalancear a grande mortalidade de árvores causada pelo incêndio.

Segundo Pontes-Lopes, os dados coletados estão sendo usados por outros grupos em pelo menos mais quatro estudos. Eles foram padronizados e colocadas no repositório ForestPlots.net – um site onde pesquisadores, cientistas e comunidades locais de florestas, especialmente as tropicais, podem compartilhar informações.

Fumaça de queimada em área da Floresta Amazônica, no Amapá: pesquisadores ainda avaliam impacto de incêndios florestais no bioma (Foto: Nelson Almeida / AFP - 31/10/2020)
Fumaça de queimada em área da Floresta Amazônica, no Amapá: pesquisadores ainda avaliam impacto de incêndios florestais no bioma (Foto: Nelson Almeida / AFP – 31/10/2020)

Investigação sobre morte de árvores grandes

A pesquisa destaca que o monitoramento contínuo de áreas afetadas pelas queimadas em intervalos regulares (anual ou semestral) permite compreender melhor os fluxos de dióxido de carbono (emissão e absorção de CO2), o tempo de recuperação para os estados pré-incêndio e eventuais interrupções da dinâmica do carbono pela mortalidade de árvores. “Estudos futuros devem se concentrar no monitoramento pós-fogo de longo prazo para investigar se a mortalidade tardia de árvores grandes ocorre em larga escala na Amazônia”, destaca o artigo.

Estima-se que as queimadas no bioma podem ser responsáveis por mais de 50% das emissões globais de gases de efeito estufa por mudança de uso da terra. Esses gases, principalmente o CO2, contribuem para o aumento da temperatura global, que pode chegar a 1,5°C acima dos níveis pré-industriais até 2050 caso medidas de mitigação não sejam adotadas pelos países.

Porém, os impactos de longo prazo das queimadas na Amazônia ainda são insuficientemente quantificados. Um artigo publicado no ano passado, cuja primeira autora é Silva, mostrou que, ao longo de 30 anos, mais de 70% das emissões brutas resultantes da combustão de incêndio florestal são decorrentes do processo de mortalidade e decomposição da vegetação.

Essas emissões foram apenas parcialmente compensadas pelo crescimento da floresta no mesmo período. No geral, as emissões anuais atingem o pico quatro anos após os incêndios.

O desmatamento e a degradação florestal, aliados às mudanças climáticas, comprometem os estoques de carbono da floresta. Pela fotossíntese, as plantas convertem luz e dióxido de carbono em energia, reduzindo a quantidade de CO2 na atmosfera. O carbono fica armazenado na biomassa até que a vegetação seja queimada ou morra e se decomponha.

“Sem uma regulamentação adequada sobre o uso da terra, a intenção atual do governo brasileiro de pavimentar a rodovia BR-319 aumentará o desmatamento no Purus-Madeira, aumentando as fontes de ignição e o risco associado de incêndios florestais em grande escala nessa região”, alertam os pesquisadores.

Para apoiar futuras tomadas de decisão na prevenção de incêndios de grande escala na Amazônia, eles sugerem o desenvolvimento de dois produtos. Um que faça mapeamento do risco de incêndios florestais e outro que mapeie o impacto potencial do fogo com base em características morfológicas das plantas. Tecnologias de sensoriamento remoto são essenciais para o desenvolvimento desses produtos de forma complementar aos inventários de campo.

“Conhecer os efeitos das queimadas sobre a floresta permite uma melhor gestão ambiental, com políticas públicas voltadas ao manejo do fogo, que devem ser desacopladas das políticas para a redução do desmatamento. O avanço nessa área é fundamental para quantificarmos o real impacto das ações humanas sobre o ciclo do carbono da Amazônia e buscarmos caminhos coerentes para atingirmos o desenvolvimento sustentável da nação”, conclui Aragão.

*Luciana Constantino é jornalista com experiência em cobertura nas áreas de sustentabilidade, desenvolvimento humano, ciência e política. Foi editora-executiva no jornal “O Estado de S.Paulo”, trabalhando em São Paulo e na Sucursal de Brasília. 

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