Gastronomia social sobe o morro

Projeto Refazendo, no Vidigal, chega a sua 15ª edição exibindo qualidade sem desperdício

Por Paula Autran e Reneé Rocha | ODS 15 • Publicada em 4 de dezembro de 2017 - 09:20 • Atualizada em 5 de dezembro de 2017 - 14:59

O chef Fábio Pimenta, do Projeto Refazendo, no Vidigal, exibe, orgulhoso, o seu jantar. Foto: Divulgação
O chef Fábio Pimenta, do Projeto Refazendo, no Vidigal, exibe, orgulhoso, o seu jantar. Foto: Divulgação

Entrada: um chef cru, que não sabia cozinhar quando abriu seu Bar Lacubaco, no Vidigal, há oito anos.

Prato Principal: um estágio com Alex Atala, a participação num reality show de comida caseira com Olivier Anquier e a experiência de cozinhar com o italiano Massimo Bottura, eleito o melhor chef do mundo pelo 50 Best.

Sobremesa: a criação do projeto Refazendo – que chegou a sua 15ª edição, no final de setembro -, uma releitura do Refettorio Gastromotiva, responsável por levar a gastronomia social morro acima.

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Não tem cardápio montado. O mercado manda os produtos às 17h, quando chegam os voluntários para me ajudar na cozinha. Vem gente de fora do morro e até de fora do Brasil. O jantar é servido às 19h. Depois que todos comem, a gente conta o que usou no preparo

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Se tivesse que montar um cardápio com alguns dos fatos mais saborosos de sua vida, não faltariam ingredientes a Fábio Pimenta. Como as sobras dos produtos que hoje recebe de um mercado local e transforma em pratos apetitosos a serem servidos gratuitamente a grupos que participam de projetos sociais no Vidigal, ele também soube se preparar. E fazer, além do limão uma limonada, da couve-flor um hambúrguer, do jiló um bife ao molho madeira, do tomate um sorvete e muito mais.

“Seis meses depois de eu e minha mulher, Fabíola, abrirmos o restaurante, a cozinheira abandonou a gente. Então fomos para a cozinha tentar nos virar. Mas o arroz empapou, a carne queimou… Ai, contratamos outro cozinheiro e resolvemos aprender na marra, para não ficarmos mais na mão. Ela fez um curso no Gastromotiva, e, em 2014, com a ajuda do meu amigo Jonathan Haagensen, que é ator e conheceu o Atala ao ir a São Paulo para uma apresentação de sua banda, consegui um estágio com ele. Na mesma época, também em São Paulo, participei do programa “Cozinheiros em ação”, com o Olivier, e voltei para casa querendo fazer pratos sofisticados”, relembra Fábio. Mas os clientes não gostaram: “‘Cadê o meu arroz com feijão?’, eles reclamavam. Então vi que o que tinha que fazer era aperfeiçoar o meu PF, dar um toque de alta gastronomia a ele com o que tinha aprendido sobre linha de produção, higiene…”. Foi quando o novo chef do Vidigal reconstruiu sua cozinha: “Ela estava toda errada. Então a refiz toda branca, com azulejos e pia inox. E mantive o contato com o Atala”. De lá para cá, o Bar Lacubaco ficou famoso, e ganhou menção no Guia Gastronômico das Favelas do Rio (ed. Abbas e Arte Ensaio).

Fábio recebe as sobras que chegam do supermercado da comunidade. Foto Divulgação

Em 2016, por ocasião da inauguração do Refettorio Gastromotiva, na Lapa, o chef paulista ligou para o ex-estagiário do Vidigal o chamando para participar da empreitada, ao lado de Bottura, criador do Refettorio Ambrosiano – onde mais de 65 chefs internacionais cozinharam com ingredientes vindos da Expo Milão 2015. Foi de lá que David Hertz, do Gastromotiva, trouxe o modelo que inspirou Fábio: servir refeições para pessoas carentes a partir de sobras de alimentos de restaurantes e estabelecimentos que vendem produtos alimentícios. Eles chamam chefs conhecidos para participarem, eventualmente, da elaboração do menu. “Naquele momento, em que tive a oportunidade de cozinhar ao lado do número 1 do mundo, foi que entendi todo este negócio de sustentabilidade e desperdício. No refettorio, os alimentos chegam sem estar próprios para as prateleiras, mas estão próprios para o consumo. As caixas e caixas chegam, e você vê que pode aproveitar tudo. O próprio osso do boi vira caldo de carne”, conta ele. “Quando sai de lá, liguei para o Jonathan e para o David querendo fazer algo parecido no Vidigal. E assim que cheguei fui ao mercado local daqui buscar parceria. Também procurei os projetos todos que são desenvolvidos aqui na comunidade (de boxe, futebol, capoeira…). A ideia era oferecer jantares para eles, pelo menos uma vez por mês”, explica Fábio. Nascia o Refazendo, que em setembro fez um ano, em sua 15ª edição.

“Não tem cardápio montado. O mercado manda os produtos às 17h, quando chegam os voluntários para me ajudar na cozinha. Vem gente de fora do morro e até de fora do Brasil. O jantar é servido às 19h. Depois que todos comem, a gente conta o que usou no preparo”, diz ele. Na última terça-feira não foi diferente. O menu anunciado num quadro dizia que a entrada eram legumes assados com crisps de quiabo ao molho de fondue de tomate. O prato principal, arroz à piamonese com filé ao molho madeira. Para a sobremesa, torta de maçã, e para beber, além de água, suco de um mix de poupas de uva verde, mamão e tangerina. “Coloquei ‘filé’, mas não disse de quê”, brinca o mestre cuca, que usou muito limão para tirar o amargor do jiló que fez as vezes de carne.

O prato principal: espaguete à bolonhesa. Foto Divulgação

“Imaginei que não fosse carne, pela proposta do projeto. Mas o pessoal todo achou que era. Embora tenha percebido que era um legume, não identifiquei qual seria”, descreve Rodrigo Alves, presidente do bloco Acadêmicos do Vidigal, que lotou o Bar Lacubaco  para a degustação. Eram 70 comensais, entre ritmistas, diretoria, velha guarda, comissão de frente e alguns destaques, com suas famílias. “Fez o maior sucesso, o pessoal adorou. O jiló me surpreendeu, porque não estava amargo, mas o Fabinho também fez um quiabo à milanesa que ninguém esperava. Foi o meu preferido”, acrescenta Rodrigo, em referência à entrada da noite, que vinha acompanhada de vagem, maxixe, pimentão.

Todos esses ingredientes vêm do mercado Super Rede. O peso bruto de cada remessa pode chegar a cem quilos, mas tudo é lavado e esterilizado. No total, nas 15 edições, mais de 600 quilos de alimentos foram reaproveitados por Fábio. São principalmente legumes e verduras em geral. Nada de proteína animal. Todos doados. “Alguns produtos têm apenas dois ou três dias de vida útil. A gente tinha uma perda muito grande. Quando o Fábio veio com essa proposta foi muito gratificante. Mas lembramos que tudo que sai daqui é próprio para o consumo. O que não serve para mim não serve para o meu próximo”, observa Vander Sebastião, gerente do mercado e grande parceiro de Fábio. “Nunca imaginei que dali podiam surgir pratos bacanas como o sorvete de tomate! O pessoal ficou até assustado. Alguns dos nossos funcionários acompanham o processo para aprender as receitas e fazer aqui também”.

“A gente incentiva a gastronomia social e que nossos alunos levem esta cultura para suas comunidades. Damos o Know how. São sementes que a Gastromotiva vai espalhando. E o Fabio está levando a educação do combate ao desperdício para o Vidigal”, lembra Mariana Vilhena, coordenadora de Comunicação do Gastromotiva.

Paula Autran e Reneé Rocha

Paula Autran e Reneé Rocha se completam. No trabalho e na vida. Juntos, têm umas quatro décadas de jornalismo. Ela, no texto, trabalhou no Globo por 17 anos, depois de passar por Jornal do Brasil, O Dia e Revista Veja, sempre cobrindo a cidade do Rio. Ele, nas imagens (paradas ou em movimento), há 20 anos bate ponto no Globo. O melhor desta parceria nasceu no mesmo dia que o #Colabora: 3 de novembro de 2015. Chama-se Pedro, e veio fazer par com a irmã, Maria.

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