“É um projeto para quem é meio louco”, confessa Carla Schmidt, 30 anos, produtora agroecológica no Assentamento Boa Amizade, em Hulha Negra, interior do Rio Grande do Sul. O projeto incomum a que ela se refere é o FitoPampa, iniciativa do grupo de pesquisa e extensão Ecos do Pampa, da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (UERGS). O motivo do estranhamento da produtora é a proposta de extração de óleos essenciais de plantas nativas do bioma Pampa que sempre foram vistas como “inços”, como são chamadas as ervas daninhas no estado.
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A principal espécie trabalhada pelo projeto é a carqueja, planta de nome científico Baccharis trimera. Nativa da América do Sul, a carqueja possui caules verdes, finos e sem folhas que podem variar de 60 centímetros a 1,2 metros. Ela costuma ser utilizada pela medicina tradicional e uma de suas características mais reconhecidas é o gosto amargo. “As pessoas que têm o poder de fazer uso da paisagem acabam achando que essa espécie atrapalha o sistema produtivo”, explica Adriana Dias Trevisan, coordenadora do FitoPampa.
Essas plantas que estão há séculos aqui, então já traduzem a química do que existe de problemas sanitários que são desse território. Faz todo o sentido, usarmos as plantas do lugar como estímulo, imitando a natureza para trazer as químicas que naturalmente fazem essa essa defesa
A carqueja é uma planta comum no Pampa gaúcho, principalmente em áreas de campo nativo, cada vez mais ameaçadas pelo avanço de lavouras de soja e outras monoculturas. Dados do MapBiomas mostram que entre 1985 e 2023 o bioma perdeu 28% de vegetação nativa, o que representa 3,3 milhões de hectares. Nesse mesmo período, a área ocupada para a agropecuária passou de 28% para 45% do território.
O objetivo da pesquisa é criar um arranjo ecoprodutivo com produtores agroecológicos e assentados da reforma agrária. Para a implementação da iniciativa, o projeto recebeu R$ 2,6 milhões de um edital de bioeconomia da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), agência vinculada ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI).
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Veja o que já enviamosA intenção com o projeto é estimular o plantio da carqueja e de outra planta nativa do Pampa – o capim-limão (cymbopogon). Após a extração, os óleos essenciais são enviados para a empresa Nanoscopic de Florianópolis, onde são produzidas nanoemulsões que servem como bioinsumos alternativos aos agrotóxicos usados para combater doenças, como as transmitidas pelo carrapato-estrela, e espécies invasoras, a exemplo do capim-annoni.
Evitar venenos e fazer parcerias
Carla Schmidt, do assentamento em Hulha Negra, planeja começar o cultivo de carqueja em setembro. A produtora conta que a espécie costumava ser valorizada por conta da apicultura, mas que nunca imaginou que iria plantá-la. Apesar disso, depois de conhecer as possibilidades de uso do óleo para substituir fungicidas, percebeu que a novidade “caiu como uma luva”.
“Se tiver uma coisa que dê para amenizar o uso de tanto veneno, isso é maravilhoso”, afirma Claudia Schmidt, produtora rural no Assentamento Vitória 2000, em Candiota (RS) e irmã de Carla. Há 20 anos, Claudia e sua família trabalham com pecuária de gado de corte, apicultura, piscicultura, produção de pastagens e algumas áreas destinadas à lavoura. O principal interesse em participar do FitoPampa surgiu pela possibilidade de reduzir o uso de insumos e remédios químicos para combater o carrapato nos animais.
Temos a esperança de que esse projeto venha também para alavancar o desenvolvimento da nossa região
Ao comentar sobre o projeto, Claudia conta que já foi chamada de “louca” por ter a intenção de plantar carqueja. Porém, ela pondera esse rótulo com os riscos que envolvem a utilização de produtos químicos no seu cotidiano. “Vou diminuir o uso no meu gado e automaticamente não vou estar sendo exposta ao produto químico. Quem nunca foi dosar um gado e respingou nas mãos?”, reflete.
Outro ponto considerado pela criadora de animais de Candiota é a própria redução dos gastos com os venenos, o que liberaria recursos para outros investimentos na propriedade. “Eu quero industrializar e sair no final com o óleo pronto”, complementa Claudia, sobre as perspectivas com o futuro da iniciativa.
A primeira fase do FitoPampa envolveu justamente oficinas de capacitação com produtores e assentados, com a intenção de apresentar o projeto e suas possibilidades. Para isso, o projeto estabeleceu parcerias com a Coperforte (Cooperativa Regional dos Assentados da Fronteira Oeste), a Rede de Sementes Agroecológicas Bionatur (cooperativa responsável pela maior produção de sementes agroecológicas da América Latina) e a Cootap (Cooperativa dos Trabalhadores Assentados da Região de Porto Alegre).
De acordo com Adriana Trevisan, atualmente o projeto envolve 20 produtores rurais de diferentes localidades no Estado, como Carla e Claudia Schmidt ). Através dos recursos recebidos, a iniciativa financia o plantio de 1 hectare de terra com carqueja ou capim-limão. O projeto também conta com apoio da RedesFito, vinculada à Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).
Como surgiu o FitoPampa?
Desde a graduação em Agronomia, Adriana Trevisan já possui interesse pela biodiversidade brasileira e suas potencialidades. “Quando eu chego no no Rio Grande do Sul, especialmente na região da Campanha, começo a perceber que existem espécies que são muito negligenciadas”, conta a professora da Unidade de Santana do Livramento, da UERGS.
A partir desse interesse surgiu o Ecos do Pampa, com objetivo de mapear as propriedades químicas das plantas nativas do bioma. Adriana revela que inicialmente a busca era por características que levassem à produção de fitomedicamentos, ou seja, remédios de origem vegetal. A pesquisa, porém, revelou outras possibilidades na produção de bioinsumos.
“Essas plantas que estão há séculos aqui, então já traduzem a química do que existe de problemas sanitários que são desse território. Faz todo o sentido, usarmos as plantas do lugar como estímulo, imitando a natureza para trazer as químicas que naturalmente fazem essa defesa”, aponta a coordenadora do FitoPampa e doutora em Engenharia Ambiental.
A inscrição no edital do Finep foi realizada em 2021, mesmo ano em que foi aprovado, porém, não havia verba disponível. Assim, as atividades só começaram em 2024. Adriana pondera que a extração do óleo não é um processo fácil e nem apresenta grande rendimento, em termos da quantidade de plantas necessárias. Por isso a parceria com uma empresa especializada em nanotecnologia para potencializar os resultados da extração dos óleos essenciais.
Transição ecológica e resiliência
Para Carla Schmidt, além dos benefícios do ponto de vista da produção, a expectativa é de que o projeto ajude a enfrentar as carências socioeconômicas do Pampa. “Temos a esperança de que esse projeto venha também para alavancar o desenvolvimento da nossa região”, afirma a produtora de sementes agroecológicas e hortaliças.
Adriana Trevisan destaca que a busca por produtores assentados se deu devido ao fato de serem “sujeitos que entendem que é possível fazer a transição agroecológica”. Conforme a professora, esse reconhecimento dos riscos de contaminação de solos pelos produtores também ajuda a vencer as barreiras de adesão à iniciativa.
A coordenadora do FitoPampa acrescenta que a conservação e valorização de plantas nativas aumenta a resiliência dos ecossistemas, seja pela utilização de uma cultura perene no lugar de culturas anuais (como a soja e o milho), como pelo estímulo à diversidade. “Além de tudo isso, ainda tenho acúmulo de carbono tanto acima quanto abaixo do solo. Então, diversidade e resiliência climática tem uma relação direta”.