O Pampa gaúcho e sul-americano é frequentemente visto e descrito como um bioma pouco exuberante, porém, a paisagem campestre desse território é extremamente diversa. Como uma demonstração dessa riqueza ecológica, pesquisadores do grupo de pesquisa do Laboratório de Estudos em Vegetação Campestre, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), descobriram o metro quadrado com o maior número de plantas do Brasil no Pampa.
O espaço de campo nativo abriga 64 espécies e fica no município de Jaguarão, interior do Rio Grande do Sul.“ Surpreende quando falamos que essa parcela amostral tinha uma altura média de cinco centímetros”, aponta a bióloga e botânica Ana Porto, pós-doutoranda na UFRGS e líder da equipe que registrou a descoberta. Além dela, participaram o mestrando em Botânica Mateus Schenkel e o especialista em campo nativo Fábio Torchelsen.
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Ao todo, Ana e sua equipe percorreram cerca de 6 mil km do Pampa, incluindo áreas de outros quatro municípios: Santana da Boa Vista, São Gabriel, Quaraí e Lavras do Sul. Segundo a pesquisadora, a maioria dos campos nativos visitados possuem quantidade de espécies semelhantes à encontrada em Jaguarão, com metros quadrados que abrigam entre 30 a 50 plantas.
A pesquisa que levou à descoberta faz parte do PPBio Campos Sulinos, sigla do Programa de Pesquisa em Biodiversidade, promovido pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) e pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). A iniciativa é coordenada pelo professor Valério DePatta Pillar e tem a participação do também docente Gerhard Ernst Overbeck, ambos da UFRGS.
O trabalho do PPBio Campos Sulinos tem foco em mapear e mensurar características do Pampa, com objetivo de conhecer a biodiversidade e descrever os serviços ecossistêmicos do bioma. Para Ana Porto, a explicação é mais simples e menos funcionalista ou utilitária: trata-se de compreender os benefícios da natureza para as pessoas e a vida em geral. “Uma água de qualidade, ar puro e diversidade genética para que possamos ter uma matriz campestre de qualidade e que possibilite atividades sustentáveis, como a pecuária”.
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Veja o que já enviamosAlianças entre espécies
Uma das perguntas que talvez fique na mente de quem vê a imagem do metro quadrado de campo nativo (inclusive na deste repórter), é como um espaço tão reduzido pode abrigar 64 espécies diferentes? A resposta, esclarece Ana Porto, está nas alianças que as plantas estabelecem entre si e na sua inteligência, muitas vezes negligenciada pela humanidade.
Em outras palavras, pode se dizer que tudo depende de como e quando se observar. O levantamento feito por Ana, Mateus e Fábio foi realizado na primavera, justamente, por ser a época em que as flores aparecem, o que facilita a identificação e diferenciação das espécies. “Quando as plantas estão em flor, é mais fácil de identificar. E o que ficamos em dúvida, a gente coleta”, explica.
Por exemplo, na parcela recorde foram encontradas cinco espécies de Oxalis, gênero botânico do qual faz parte a planta popularmente conhecida por “azedinha”, comum em jardins e gramados. “E tem muitas espécies de capim (grama) nessa parcela. Inclusive, foi uma das famílias mais ricas encontrada durante essa amostragem – a família Poaceae”, acrescenta Ana Porto.
Outro fator importante citado pela pesquisadora da UFRGS foi a presença de duas espécies de Eryngium, também conhecidos como gravatás. “O gravatá possibilita com que plantas fiquem protegidas, seja embaixo ou próxima a ele, porque é uma planta que o gado não pasteja (come)”. Segundo a bióloga, a descoberta simbólica desse recorte de Pampa com 64 espécies serve como um “convite para olhar com mais atenção para essa matriz campestre”.
Os desafios e as ameaças ao Pampa
Em sua extensão e diversidade, o bioma Pampa abriga 12.503 espécies de plantas, animais, fungos e bactérias. Os dados são de levantamento publicado em 2023 com a participação de mais de 100 pesquisadores de 60 instituições e sob coordenação do professor Gerhard Overbeck. “É uma riqueza enorme que a gente tem aqui no nosso estado e que parece que a sociedade, em geral, não enxerga”, lamenta Ana Porto.
Pior do que não ser visto, os dados sobre a vegetação nativa apontam que o Pampa gaúcho tem sido destruído, principalmente, pelo avanço de monoculturas como a soja, o arroz e o eucalipto. Entre 1985 e 2022, 2,9 milhões de hectares de vegetação campestre foram perdidos, o que representa 32% do bioma, segundo dados do MapBiomas.
O esquecimento do Pampa também se reflete na legislação. Apenas em 2004 o bioma foi oficialmente reconhecido no Brasil e, somente cerca de 3% de sua área está protegida por unidades de conservação, conforme mostra o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC). Em termos proporcionais, o bioma é o menos protegido do território nacional.
Isso ajuda a explicar o fato da parcela recorde com 64 espécies ter sido encontrada em uma propriedade privada. Ana Porto revela que a pesquisa sobre o Pampa depende da colaboração de pecuaristas e fazendeiros. “O Pampa é esquecido pelas leis ambientais. A legislação ambiental atual não protege minimamente o bioma”, aponta. Segundo ela, a principal lacuna está nos regramentos do Estado do Rio Grande do Sul.
Cultura e natureza entrelaçados
Bióloga formada pela Universidade Federal do Rio Grande (Furg), Ana Porto fez mestrado e doutorado em Botânica pela UFRGS. Ao longo de suas “campereadas” pelo Pampa, ela conta ter se deparado com paisagens deslumbrantes. “Quando eu acesso esses lugares que tu tens Pampa a perder de vista, é muito forte e emblemático. Mesmo depois da primeira vez, fico sempre encantada com essa paisagem”, pontua a pesquisadora.
Para Ana, existe uma dificuldade em reconhecer a ligação entre a biodiversidade pampeana e as características da cultura gaúcha. “Aquele gaúcho pilchado numa plantação de soja não vai ter o mesmo valor cultural intrínseco do que numa matriz campestre preservada. Porque a nossa música, a nossa poesia, ela canta as riquezas desse campo preservado”. Esse movimento de (re)conhecimento é o que ela nomeia de consciência campestre.
Ao longo dos últimos anos, diferentes iniciativas têm trabalhado para incentivar a pecuária sustentável no Pampa. “A pecuária tem essa chance de ser uma atividade econômica e ecológica ao mesmo tempo, porque a diversidade campestre é mantida com o pastejo. Se tu tirar o gado e a pecuária e não colocar nenhum tipo de distúrbio nesse campo, ele vai perder diversidade”, elucida a bióloga. Isso significa que a biodiversidade precisa da interação com o gado e com os humanos, desde que de forma respeitosa.
A consciência ambiental e campestre, no caso do Pampa, passa por compreender a ligação indissociável entre natureza e cultura, a exemplo do que fazem os povos originários. Isso implica, conforme Ana Porto, em criar uma capacidade de “olhar para o campo nativo e conseguir entender que é uma matriz que além desses serviços ecossistêmicos, também provém cultura e identidade social”. Parte dessa forma de olhar aparece diversas em poesias e músicas gaúchas, como “Herdeiro da Pampa Pobre”, canção do “Gaúcho da Fronteira”.