Quando a Câmara dos Deputados aprovou, em fevereiro, a PEC (proposta de emenda constitucional) 39/2011, que extingue o instituto de terrenos de marinha (faixa territorial de 33 metros ao redor de cursos d’água e do mar), e transfere as propriedades aos seus ocupantes, sejam públicos ou privados, ambientalistas alertaram que a mudança atendia interesses da especulação imobiliária que desaguaria na privatização das praias. Não deu outra. A Câmara aprovou o regime de urgência para a tramitação – e pretende votar agora em maio – de projeto de lei que autoriza a União a demarcar “áreas de orlas e praias marítimas, estuarinas, lacustres e fluviais, que serão definidas como Zona Especial de Uso Turístico (ZETUR) para fins de exploração turística”.
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Apesar do evidente impacto ambiental, a autorização para funcionamento de hotéis, clubes e outros empreendimentos seria responsabilidade apenas do Ministério do Turismo. “Hoje, temos ciência, conhecimento e legislação mundial que mostram que não devemos retirar espaços e ambientes costeiros, pois eles nos protegem frente aos impactos das mudanças climáticas e nos dão inúmeros benefícios”, afirma o biólogo Ronaldo Christofoletti, professor e pesquisador do Instituto do Mar da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e integrante da Rede de Especialistas em Conservação da Natureza (RECN).
O PL 4444/2021 parece inofensivo pela sua descrição: “cria o Programa Nacional de Gestão Eficiente do Patrimônio Imobiliário Federal, altera a Lei nº 9.636, de 1998, e dá outras providências”. Foi apresentado no apagar das luzes do ano legislativo, 15 de dezembro, pelo deputado Isnaldo Bulhões (MDB/AL) e a maioria dos seus 17 artigos trata do patrimônio imobiliário da União, determinando recadastramento , identificação dos imóveis desocupados ou subutilizados, reintegração de posse de imóveis. No artigo 16, vem o jabuti da privatização das praias, com a criação da Zona Especial de Uso Turístico, na orla marítima e também de rios e lagoas.
Em 15 de fevereiro de 2022, duas semanas depois do início do ano legislativo, a Câmara aprovou (por 321 votos a 91) o requerimento de urgência para PL da privatização das praias. Parlamentares governistas esperam que ele seja colocado em votação no Plenário ainda este mês. “O PL 4444/2021 representa mais um risco à proteção ambiental, à segurança climática e de gerenciamento da costa brasileira, além de indicar uma tendência de redução do acesso da população às praias e orlas marítimas brasileiras”, alerta o deputado federal Nilto Tatto (PT/SP), integrante da Comissão de Meio Ambiente da Câmara e da Frente Parlamentar Ambientalista.
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Veja o que já enviamosTatto vê múltiplas ameaças no projeto. “A privatização das áreas de praias e orlas para fins de exploração turística, caso seja aprovada (e sabemos que nesta legislatura os inimigos do Meio Ambiente conseguem formar maioria, liderados pelo governo Bolsonaro) significará um perigo triplo: pela lógica ambiental, a submissão da gestão dos ecossistemas costeiros aos interesses econômicos da iniciativa privada e sua sanha por lucros; no viés social, um grave prejuízo ao acesso livre e irrestrito que as populações das cidades litorâneas e turistas têm às praias, transformando as areias públicas em ‘feudos’ de megabarracas, resorts e cassinos; e, por fim, no ângulo da economia, prejudicará a subsistência de milhares de comunidades pesqueiras que dependem do mar”, argumenta o parlamentar petista. “É mais um retrocesso que nós, parlamentares da Oposição ao governo Bolsonaro, consideramos parte de um “pacote da destruição”, uma série de proposições danosas ao Meio Ambiente que o governo federal tenta colocar em pauta até o fim do mandato do presidente da República”, acrescenta.
Com o regime de urgência, o PL deixa de passar pela análise das comissões temáticas e será votado direto no Plenário, com relator indicado pelo presidente da Câmara, o também alagoano Arthur Lira. O escolhido para fazer o relatório foi o deputado José Priante, da Frente Parlamentar Ruralista, o que só fez aumentar os temores sobre o projeto. “Ocupar as faixas de areia para fins de uso privado e turístico é uma ameaça a estes serviços, pois pode comprometer o complexo e delicado ecossistema costeiro”, critica Adayse Bossolani, secretária-executiva do Grupo de Trabalho para Uso e Conservação Marinha (GT-Mar), da Frente Parlamentar Ambientalista do Congresso Nacional.
O GT-Mar reúne deputados, senadores e membros da sociedade civil preocupados com a preservação da zona costeira e marinha e tem apoio Fundação Grupo Boticário, Instituto Linha D’Água, Instituto Costa Brasilis. “Diversos estudos alertam para o processo de erosão costeira que nossas praias vêm sofrendo, o que deverá se agravar com as previsões recentes de aumento do nível do mar e aumento da frequência de eventos extremos de ressacas do mar”, acrescenta Adayse Bossolani.
De acordo com o PL 4444/21, a Zetur “poderá perceber restrição de acesso a pessoas não autorizadas” e seu uso deve ficar limitado a “empreendimentos turísticos como hotéis, parques privados, clubes, marinas ou outras” que tenham autorização do Ministério do Turismo. “As atividades propostas no projeto podem excluir a passagem e o acesso das pessoas, levando a uma elitização do espaço costeiro, que por definição da Lei 7.661/88 e também da nossa Constituição é um dos espaços mais democráticos que temos”, afirma o biólogo e ecólogo Alexander Turra, professor titular do Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo (USP) e também membro da RECN. A Lei 7.661/88 instituiu o Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro e deixa claro que as praias são bens públicos de uso comum, sendo assegurado o livre acesso a elas e ao mar pela população.
Pela proposta do deputado Isnaldo Bulhões Jr, 10% da faixa de areia de cada município poderia ser delimitada como Zetur. Com seus 7,5 mil quilômetros de litoral, o Brasil poderia ter 750 quilômetros de áreas privatizadas na orla atlântica, área superior aos litorais de São Paulo (622 km) e Paraná (98 km) juntos. “Aprovar esse projeto de lei é um retrocesso enorme em relação a todas as questões de gerenciamento costeiro que já temos e a todas as discussões da mudança do clima”, alerta o professor Christofoletti, do Instituto do Mar.
De acordo com o livro Panorama da Erosão Costeira no Brasil, lançado em 2018, processos erosivos atingem entre 60% a 65% da linha de costa no Nordeste e no Norte do país. Nas regiões Sudeste e Sul, a erosão afeta aproximadamente 20% do litoral. Para Christofoletti, esses fatores tornam mais urgente a necessidade de ter um gerenciamento costeiro de forma integrada. “Quando a gente privatiza algumas partes e traz esse retalho na orla, dificulta a aplicação de outros instrumentos legais que auxiliam na gestão da costa”, afirma o pesquisador.