‘Danos são inúmeros e, muitos, irreversíveis’

A paia de Itapuama, no litoral Sul de Pernambuco, foi uma das mais atingidas. Mais de 1.300 toneladas de óleo já foram retiradas nos últimos oito dias. Foto Michelly Lira

Recifes de coral abrigam uma em cada quatro espécies marinhas e correm altos riscos no mar do Nordeste afetado por vazamento de petróleo

Por Elizabeth Oliveira | ODS 14 • Publicada em 26 de outubro de 2019 - 14:47 • Atualizada em 28 de outubro de 2019 - 11:49

A paia de Itapuama, no litoral Sul de Pernambuco, foi uma das mais atingidas. Mais de 1.300 toneladas de óleo já foram retiradas nos últimos oito dias. Foto Michelly Lira
A paia de Itapuama, no litoral Sul de Pernambuco, foi uma das mais atingidas. Mais de 1.300 toneladas de óleo já foram retiradas nos últimos oito dias. Foto Michelly Lira
A paia de Itapuama, no litoral Sul de Pernambuco, foi uma das mais atingidas. Mais de 1.300 toneladas de óleo já foram retiradas nos últimos oito dias. Foto Michelly Lira

Os impactos do derramamento de petróleo que já afetou 233 localidades de 88 municípios dos nove estados do Nordeste, em mais de 50 dias, são de difícil mensuração e podem perdurar por décadas, causando danos à natureza, “muitos irreversíveis”, além de grandes prejuízos socioeconômicos. A pesca, segmento que depende da saúde ambiental dos recifes de coral, tende a ser fortemente afetada pelos riscos que esses e outros ecossistemas estão correndo. Essas e outras reflexões fazem parte da entrevista concedida ao Projeto #Colabora pela professora Fernanda Duarte Amaral, do Departamento de Biologia da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), onde coordena o Laboratório de Ambientes Recifais (LAR).

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#Colabora – Quais foram as áreas mais afetadas em Pernambuco?

Fernanda Amaral – Quase todas as praias do litoral Sul foram atingidas. As maiores manchas foram registradas nas praias de Tamandaré, Muro Alto, Cupe, Suape, Paiva, Itapuama, Pedra do Xaréu, Barra da Jangada, Janga e, ontem (dia 24), o óleo chegou à Ilha de Itamaracá (Norte do estado). Mais de 1.300 toneladas de óleo já foram retiradas nos últimos oito dias. E, uma das entidades que vêm se destacando pelos esforços em reduzir o impacto do desastre é a “Salve Maracaípe”, que atua no nosso litoral.

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Cientistas das mais diversas áreas do conhecimento deveriam ter sido convocados para uma Comissão Emergencial de enfrentamento da tragédia. O governo liderar o enfrentamento, independentemente das responsabilizações. Identificar o responsável é relevante, mas o enfrentamento do problema foi tratado com pouco engajamento. A população nordestina foi autônoma, brava e se organizou, mesmo sob um enorme risco e, muitas vezes, totalmente desprotegida

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#Colabora – Quais são os principais impactos causados à natureza?

Fernanda Amaral – Os recifes de coral do Nordeste, que pesquisamos, além dos manguezais e dos demais ecossistemas marinhos (verdadeiro pulmão do mundo) e muitas formas de vida que habitam nesses ambientes, ao redor deles, ou, ainda, que dependem deles, se contaminam, com uma grande possibilidade de morte para muitos desses seres vivos. Esse óleo é extremamente danoso para a fauna e a flora marinhas. Isso inclui desde os organismos microscópicos, que constituem a base da cadeia alimentar (fitoplâncton e zooplâncton), até os grandes animais e ainda, as algas, entre outros.

Fernanda Amaral, pesquisadora de biodiversidade marinha na Federal Rural de Pernambuco. Foto Arquivo Pessoal

#Colabora – Quais são as preocupações com os envolvidos na limpeza das praias?

Fernanda Amaral – A população nordestina, sempre guerreira, se dispôs voluntariamente e, algumas vezes, de forma inadvertida, entrou em contato direto com esse óleo removido. Os populares raramente dispõem de equipamentos de proteção individual (EPIs), como luvas grossas, botas, óculos, máscaras e sacos. Algumas pessoas foram hospitalizadas com reações a esse contato, um dia após terem atuado em ações de limpeza em algumas praias. Em São José da Coroa Grande, no litoral Sul de Pernambuco, foram registrados casos hospitalares com sintomas como dores de cabeça, enjoos, vômitos, erupções e pontos vermelhos na pele.

#Colabora – Outros problemas foram observados no litoral pernambucano?

Fernanda Amaral – Um colega do nosso Departamento de Biologia da UFRPE, Mauro de Melo Junior, alertou sobre a falta de materiais de contenção em alguns estuários pernambucanos, como o estuário do Rio Sirinhaém. E os estuários, assim como os recifes e os manguezais, são bastante relevantes como berçários de vida

#Colabora – Como a estrutura dos corais pode ser comprometida?

Fernanda Amaral – Os danos relativos à natureza são inúmeros e, muitos deles, irreversíveis. Os recifes de coral têm os corais como os principais construtores da sua estrutura. Esses animais possuem esqueleto externo e discos orais (bocas) rodeados por tentáculos. Suas bocas podem vir a ser obstruídas pelo óleo e as microalgas, com as quais fazem uma simbiose importantíssima, serão severamente afetadas pelo bloqueio da luz solar, necessária para realizar a fotossíntese e produzir oxigênio.

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Pernambuco é o Estado, Recife é a Capital

Pernambuco é a Rocha Viva, o Recife de Coral

Recife é a Cidade e não há outra igual

Pernambuco é a Pedra, Imortal, Imortal.

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#Colabora – Que danos aos corais podem impactar as atividades socioeconômicas?

Fernanda Amaral – Os recifes fornecem abrigo para uma em cada quatro espécies marinhas, tendo importância para as atividades de pesca e, também, para a manutenção da cadeia alimentar. Além disso, essa mesma estrutura física protege a costa contra a ação das ondas. Esses ecossistemas estão no nosso planeta, há milhões de anos, e estão sofrendo pela nossa ação, há poucas centenas de anos.

#Colabora – Que outros aspectos podem ser destacados nessa interface?

Fernanda Amaral – O óleo nos manguezais prejudica a respiração das árvores e todas as espécies de animais que usam esse ecossistema como berçário. Outro importante sistema, bastante prejudicado com o vazamento do petróleo, é o de praias arenosas que também abrigam uma grande diversidade de organismos (da microfauna à macrofauna) adaptados para a vida entre os grãos de sedimento. Os danos foram evidentes a esses ambientes.

#Colabora – Quais são os desafios relacionados às estimativas dos danos causados?

Fernanda Amaral – Em muitas das áreas atingidas ainda não havia sido realizado levantamento anterior da fauna e da flora e, assim, não temos como estimar o impacto. Para o professor Mauro, anteriormente mencionado, e para diversos outros especialistas brasileiros, o impacto do óleo, apesar de ainda não ter sido calculado, pode estar entre os maiores, se não o maior já visto. Ele pontuou que, além disso, muito se fala na megafauna, em tartarugas marinhas e peixes, mas estão se esquecendo da microfauna. O desaparecimento desses seres pode trazer impactos gigantescos em longo prazo para toda a vida marinha.

#Colabora – E os principais desafios para o monitoramento dos impactos?

Fernanda Amaral – Os desafios e as dificuldades financeiras são inúmeros e os impactos, incalculáveis. O monitoramento dessas regiões atingidas precisará ser realizado por muitos anos, com análises constantes, para garantir que o imenso prejuízo à biodiversidade seja, de alguma forma, atenuado e, ainda, que a população possa frequentar uma zona desintoxicada. É importante também que estejamos atentos aos riscos da alimentação com frutos do mar, por efeito da biomagnificação (aumento na concentração de um contaminante a cada nível da cadeia alimentar).

Os voluntários raramente dispõem de equipamentos de proteção individual (EPIs), como luvas grossas, botas, óculos, máscaras e sacos. Foto Michelly Lira

#Colabora – Que outros aspectos deverão ser monitorados?

Fernanda Amaral – As pessoas também estão sujeitas a entrar em contato direto com os contaminantes que permanecerem na areia ou durante o banho de mar ou, até mesmo, inalando os gases liberados por eles. Segundo alertado pelo doutorando em Engenharia Química da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Rodrigo Amaral Coutinho Bartolomeu, derramamento de petróleo em alto mar coloca em risco diversas formas de vida, uma vez que algumas dessas moléculas são tóxicas e carcinogênicas. Estudos realizados em áreas afetadas por derramamentos apontam que a degradação natural destes compostos pode levar décadas para acontecer em sua totalidade.

#Colabora – Como pretende contribuir para estudos futuros sobre o tema?

Fernanda Amaral – Como coordenadora do LAR, eu queria muito ter participado das ações de limpeza das praias pernambucanas, mas estou, atualmente, realizando Pós-Doutorado, na Universidade de Cornell (Ithaca, NY/EUA).  Pretendo, assim que voltar à UFRPE, em agosto de 2020, estabelecer uma linha de pesquisa de monitoramento da saúde dos corais do litoral Sul do nosso estado e pesquisar a morfologia, a genética e os impactos causados por esse desastre.

#Colabora – Há lições aprendidas com essa crise?

Fernanda Amaral – Lamentavelmente, uma lição que esse desastre ambiental deixa para a sociedade brasileira é a de precisamos atuar preventivamente. Mas acontecendo algo assim, as ações devem ser emergenciais e devidamente coordenadas. Nesse episódio podia ter sido acionado pelo Governo Federal e pelo Ministério do Meio Ambiente (MMA), o Plano Nacional de Contingência para Incidentes de Poluição por Óleo em Águas sob Jurisdição Nacional, elaborado, em 2009, pelo MMA, pela Marinha e por 11 Universidades federais.

Área de corais em Tamandaré, um paraíso ameaçado. Foto Fernanda Amaral

#Colabora – O que mais faltou?

Fernanda Amaral – Certamente, cientistas das mais diversas áreas do conhecimento deveriam ter sido convocados para uma Comissão Emergencial de enfrentamento da tragédia. Assim, teria sido fundamental, o governo liderar o enfrentamento, independentemente das responsabilizações. Identificar o responsável é relevante, mas o enfrentamento do problema foi tratado com pouco engajamento. A população nordestina foi autônoma, brava e se organizou, mesmo sob um enorme risco e, muitas vezes, totalmente desprotegida.

#Colabora – O que dizer à sociedade diante da complexidade desse caso?

Fernanda Amaral – Pernambuco, o nome do nosso estado, deriva do tupi-guarani “paranambuco” que significa “pedras furadas” e, para outros autores, “mar que arrebenta”, ou seja, Pernambuco também significa Recife.

Com uma mensagem de resistência para os que estão enfrentando os efeitos da tragédia, a pesquisadora envia um pequeno poema, de sua autoria, inspirado nos ecossistemas que têm estado no centro dos seus estudos científicos há mais de 30 anos e, também, na bravura dos seus conterrâneos.

Pernambuco é o Estado, Recife é a Capital

Pernambuco é a Rocha Viva, o Recife de Coral

Recife é a Cidade e não há outra igual                       

Pernambuco é a Pedra, Imortal, Imortal. 

(Fernanda Amaral)

Elizabeth Oliveira

Jornalista apaixonada por temas socioambientais. Fez doutorado pelo Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento (PPED), vinculado ao Instituto de Economia da UFRJ, e mestrado em Ecologia Social pelo Programa EICOS, do Instituto de Psicologia da UFRJ. Foi repórter do Jornal do Commercio do Rio de Janeiro e colabora com veículos especializados, além de atuar como consultora e pesquisadora.

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