Sol mais forte e menos chuva: indígenas relatam impactos da crise climática

Redução do nível dos rios e mudança do ciclo de chuvas provocam alterações nas rotinas das aldeias

Por Mariene Lino | ODS 13 • Publicada em 18 de janeiro de 2022 - 10:06 • Atualizada em 23 de janeiro de 2022 - 09:56

Mulher indígena prepara fios de tucum para artesanato: sol mais forte e mudança nos ciclos da chuva impactam aldeias com crise climática (Foto: Associação de Artesãs Indígenas de São Gabriel da Cachoeira)

Na abertura da Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas de 2021 (COP26), a ativista rondoniense Txai Suruí, de 24 anos, foi categórica ao expor os impactos do aquecimento global sobre comunidades indígenas por todo o país. A estudante de Direito foi a única pessoa brasileira a discursar no primeiro dia da conferência e se tornou um dos símbolos da presença indígena em Glasgow, na Escócia. A cidade foi palco de diversas manifestações organizadas por associações de povos indígenas brasileiros, que pleiteiam maior participação nos debates sobre as mudanças climáticas. Estas reivindicações não são infundadas: estas populações afirmam que são mais afetadas do que residentes de grandes cidades e áreas urbanas.

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O município de São Gabriel da Cachoeira (AM), na região do Alto Rio Negro, é a cidade com o maior número de indígenas no país, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Lá, os impactos do aumento da temperatura global são intensamente sentidos. Coordenadora da Associação Artesãos Indígenas (ASSAI) da cidade, Aparecida Batista relatou os efeitos mais imediatos derivados do “sol mais forte”, nas suas palavras. “O sol é muito diferente, queima muito. A chuva também vem em grande quantidade. Não é como antigamente, uma chuvinha ou um solzinho de leve. Vem uma chuva muito grossa, com relâmpagos que não costumávamos ver antes”, explica a coordenadora da associação.

Para confeccionar desde cestos até objetos decorativos, os indígenas da região usam fios de tucum, fibra vegetal derivada de uma palmeira de mesmo nome. Aparecida diz que a matéria-prima segue disponível para os artesãos, mas foi necessário alterar o regime de trabalho devido a algumas enfermidades que têm sintomas potencializados pela temperatura elevada.

“Hoje em dia os indígenas não podem mais trabalhar diariamente e o dia todo. Alguns vão muito cedo para voltar cedo, por causa do risco de ficar doente. O sol muito quente dá dor de cabeça, febre… e isso afeta muito as pessoas que estão na roça, onde se costuma trabalhar mais”, conta Aparecida Batista.

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Por terem organismos mais sensíveis, as crianças também ficam mais suscetíveis a manifestar sintomas agravados pela exposição ao sol. “Crianças gostam de ficar brincando no sol. Então, muitas vezes, ficam com febre. Acaba fazendo mal o sol tão forte. No caso da chuva, acabam pegando gripe e ficam mais fragilizadas”, detalhaa artesã.

Outro impacto relatado por povos indígenas é a alteração do ciclo da água nas aldeias. Rios, que antes não secavam, hoje têm partes com nível de água muito baixo. O mesmo acontece com córregos menores, também de serventia para moradores de comunidades indígenas.

Doutora em Estudos de Cultura Contemporânea pela Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT), a pedagoga Isabel Taukane passou grande parte da vida em Cuiabá (MT), mas vive há dois anos na Aldeia Abelhinha, na Terra Indígena Sangradouro, 200 quilômetros a leste da capital matogrossense. De etnia Bakairi, ela relata que o Rio Teles Pires, que banha o estado do Centro-Oeste e o Pará, tem trechos secos devido à redução do volume de chuvas. “É muito preocupante. Córregos e riachos que, em outras épocas, não secavam, agora estão assim. A água não é suficiente; [os níveis dos] rios estão muito baixos, mesmo os grandes. O Teles Pires deságua no mar, por exemplo, e está nesta situação em alguns trechos”, conta.

Agricultura indígena sob ameaça: desmatamento e aquecimento causam redução do nível dos rios (Foto: FEI Amazonas/Divulgação)
Agricultura indígena sob ameaça: desmatamento e aquecimento causam redução do nível dos rios (Foto: FEI Amazonas/Divulgação)

Isabel ressalta que um dos fatores que explica a seca é o desmatamento de matas ciliares. A vegetação fica à beira de cursos d’água e impede que sedimentos caiam dentro deles, o que evita o assoreamento de rios e lagos. Porém, com o desflorestamento, muitos rios “morreram” e deixam de contribuir para a subsistência dos povos. “Para que o plantio aconteça, precisamos de água, desde pequenas áreas até monoculturas. E o que faz a água são as florestas, por meio da transpiração. As mudanças impactam todo um ciclo; é desastroso”, desabafa Isabel Taukane.

O poço artesiano é uma saída para driblar a crise, até certo ponto. Na Aldeia Abelhinha, o equipamento é movido a energia elétrica, e qualquer problema que prejudique o abastecimento faz com que dezenas de pessoas fiquem sem água. Mas Isabel conta que, perto do local, há um riacho que não secou. É nele que as pessoas tomam banho e recolhem água para cozinhar e regar a terra.

Os indígenas fazem uma ressalva: nem todos os rios têm água pura e, portanto, própria para consumo – e isso acontece, cada vez mais, afetando a rotina das aldeias. Daniel Munduruku, professor e autor de mais de 50 livros, ressalta o avanço do garimpo para a exploração de minerais, como o ouro, em leitos de rios. “O uso de toxinas dentro da água afeta progressiva e diretamente essas populações. Por conta disso, gerou-se muita necessidade de novos equipamentos e tecnologias para lidar com isso”, diz Munduruku, lembrando o uso descontrolado do mercúrio, que pode se acumular em grande quantidade nos peixes e nos humanos, provocando graves danos ao organismo.

Todas as situações relatadas por povos indígenas em meio às mudanças climáticas são consequências diretas ou indiretas da destruição do ambiente em larga escala – o chamado ecocídio. A campanha Stop Ecocide Foundation descreve o conceito como um “ato ilegal ou arbitrário cometido com o conhecimento de que há uma probabilidade substancial de danos ambientais graves e generalizados ou de longo prazo causados por ele”.

Aparecida é categórica: “Considero que o mercado dita e nós como cidadãos não temos muito o que fazer”. Na visão dela e de outros indígenas, como Munduruku, os índices crescentes de desmatamento refletem uma prática exploratória, cujos afetados mais intensamente são os povos nativos, afinal, eles dependem diretamente da natureza. “Os povos indígenas não têm mais território para reproduzir a sua cultura. Os rios estão poluídos, peixes e mananciais estão totalmente afetados… isso dificulta a própria reprodução da cultura. O que afeta a natureza atinge os filhos dela, os indígenas; afinal, eles dependem diretamente da floresta para sobreviver. É o desequilíbrio ambiental que está posto”, acrescenta Daniel Munduruku.

Para Aparecida, é preciso enfatizar o adjetivo “branco” ao se referir ao homem que atua na destruição de florestas, seja pelo desmatamento ou por outras ações, como o ato de soltar um balão. “Isso vem dos brancos, e muitas vezes é criminoso. Quando cai um balão, por exemplo, a gente já pensa ‘é do branco, né’, porque não são invenção e prática nossas. Também não queimamos hectares e hectares de mata; quem faz isso tem mais dinheiro, é outra sociedade”, desabafa.

Mariene Lino

Estudante de Jornalismo na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Como estagiária, passou pelos portais R7 e Metrópoles e pela Record TV Rio. Na emissora, atuou nos setores de produção local e apuração. É autora de três livros infantojuvenis independentes: "O som misterioso" (2011); "Conversas na geladeira" (2013); e "A amizade entre os animais" (2017). Tem interesse pelas áreas de segurança pública, cultura e meio ambiente. Acredita na transformação de vidas por meio da leitura. Adora chocolate.

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