(Alexandre Gaspari*) – Sem qualquer pudor, o Senado aprovou na semana passada o PL da Devastação (2.159/2021), conhecido como a “mãe de todas as boiadas”, que já saiu ruim da Câmara dos Deputados e foi piorado pelos senadores. O presidente da casa, Davi Alcolumbre (União Brasil-AP), ávido por encher o litoral de seu estado de plataformas para explorar combustíveis fósseis, inseriu uma emenda que cria um “licenciamento express” para projetos “estratégicos”.
Na prática, é “abrir a porteira” para o petróleo na foz do Amazonas e em outras regiões de altíssima sensibilidade ambiental, como outras bacias da Margem Equatorial e até mesmo no coração da Floresta Amazônica. E também para outros projetos de grande impacto ambiental, como o asfaltamento da BR-319, rodovia que liga Manaus a Porto Velho, e a Ferrogrão, ferrovia que pretende atravessar trechos da Amazônia e ameaça Terras Indígenas para levar grãos, principalmente soja, do Centro-Oeste para o Norte.
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Veja o que já enviamosMenos de uma semana depois, a ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva, foi brutalmente atacada na Comissão de Infraestrutura (CI) do mesmo Senado, em um verdadeiro espetáculo de misoginia e intolerância que vai contra a função primeira do Congresso Nacional de ser o locus por excelência do diálogo entre diferentes setores em prol do bem comum. Marina foi convidada para ir à CI tratar da criação de Unidades de Conservação no Amapá.
Mas o objetivo real na comissão, além de gerar cortes misóginos para as redes sociais que permitam manter vivos os ataques a ela no esgoto das redes sociais, era outro: acusá-la de “atrasar o desenvolvimento” pela suposta demora do IBAMA em autorizar a Petrobras a perfurar um poço no bloco FZA-M-59, na foz, bem como pelo não-asfaltamento da BR-319. Em tempo: dos 46 integrantes da comissão, entre titulares e suplentes, apenas cinco são mulheres. Há 38 homens, e três posições vagas.
Marina tomou a única decisão sensata possível diante das sucessivas tentativas de silenciamento e de humilhação pública à qual estava sendo submetida: deixou a sessão após novo ataque do senador Plinio Valério (PSDB-AM), que em março tinha dito ser difícil escutá-la por seis horas sem ter “vontade de enforcá-la”. Antes, ouviu do presidente da CI, Senador Marcos Rogério (PL-RO), que ela devia “se por no seu lugar”.
E mais: foi acusada pelo senador Omar Aziz (PSD-AM), da base do governo do qual a ministra faz parte, que era sua culpa os senadores aprovarem um PL que devastará o que Marina luta há 40 anos para preservar e recuperar: o meio ambiente e o clima. Tudo isso diante do silêncio constrangedor de membros do partido do presidente da República, que esperaram a situação beirar o insustentável para verbalizar apoio à ministra.
Para azar dos senadores, Marina também tem ampla experiência política. Foi vereadora em Rio Branco, capital do Acre, seu estado natal, onde também foi deputada estadual. Foi senadora. E eleita deputada federal nas eleições de 2022. Por isso foi à CI sabendo que encontraria questionamentos que iam além da proposta de novas UCs no Amapá.
A ministra levou dados mostrando que o IBAMA, em quase dois anos e meio, emitiu mais licenças ambientais do que no governo Bolsonaro, apesar do esvaziamento do órgão. E que boa parte dessas autorizações foi dada à Petrobras. Confirmando que o convite da CI não visava esclarecimentos – a comissão sequer estava interessada nas novas áreas de conservação –, mas sim pressão política para liberar a exploração de petróleo na foz do Amazonas, os senadores olhavam apenas para a licença que o IBAMA não deu por cumprir a legislação e exigir da petroleira informações e ações para garantir a segurança da operação.
Mais uma vez, Marina disse que o órgão “não facilita nem dificulta”, apenas cumpre a lei. E retomando o tema que originou o convite, Marina lembrou que a criação de UCs no Amapá não afetava o projeto da Petrobras.
Quanto à BR-319, a ministra repetiu que a rodovia atravessa uma região de altíssima sensibilidade ambiental, e por isso o governo criou um grupo de trabalho para elaborar estudos e verificar os impactos do asfaltamento – impactos que já ocorrem e destroem a floresta mesmo sem asfalto. Mas foi ainda mais contundente quando questionou Aziz por que a pavimentação não saiu do papel nos 15 anos que ela ficou fora do governo, de 2008 a 2022. Inclusive no governo destruidor de Bolsonaro.
O comportamento dos senadores da República foi lamentável em várias camadas. É chocante ver políticos eleitos para representar os melhores interesses do povo adotarem um comportamento machista, misógino e truculento perante uma mulher, pois mulheres representam mais da metade do eleitorado brasileiro. É igualmente absurdo tamanho desrespeito por uma ministra de Estado, em uma evidente afronta ao Poder Executivo.
É um desrespeito aos eleitores brasileiros usar uma comissão do Senado como palco para pressão política e não para troca de informações, diálogo e entendimentos em favor do bem comum dos brasileiros. O que aconteceu no dia 27 de maio de 2025 mostra que ou eles não leram a Constituição que juraram defender, ou não entendem vários artigos dela.
O que o comportamento dos senadores mostrou é que não há justificativa técnica ou dados capazes de parar quem está comprometido com interesses próprios ou de grandes grupos econômicos. E as últimas semanas mostraram que os lobbies dos combustíveis fósseis, do agronegócio, das obras monumentais que enriquecem empreiteiras à custa de grandes impactos sociais, ambientais e climáticos, estão cada vez mais fortes no Congresso. Incluindo o Senado, até então considerado um “regulador” da sanha destruidora que costuma dominar a Câmara.
O fato é que Câmara e Senado se auto-intitulam “a casa do povo”, mas empurram “boiadas” goela abaixo da população, com impactos devastadores e prejuízos enormes, principalmente para os mais pobres, aumentando ainda mais as desigualdades sociais no país. Chuvas extremas, inundações, deslizamentos, secas, ondas de calor e incêndios são uma realidade cada vez mais frequente, no Brasil e no mundo, por causa das mudanças climáticas, que têm na queima de combustíveis fósseis sua principal causa.
Mas, para os senadores, não importam as tragédias climáticas, e sim os ganhos financeiros e políticos. Se for com muita misoginia e racismo, melhor ainda.
PS 1: Não são só integrantes da CI que estão totalmente desalinhados aos valores e desafios da sociedade brasileira no século 21. Questionado sobre o ataque covarde à Marina Silva, o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, disse que não iria se manifestar. Até o momento da postagem deste texto, nenhum pedido de desculpas à ministra havia sido emitido. Nenhum membro da comissão sofreu qualquer consequência por seus atos. Mais que um espetáculo de truculência e misoginia, o que a sessão expôs foi a nova cara do Senado brasileiro.
PS 2: Onde estava o governo do qual Marina Silva faz parte e pelo qual é usada como vitrine ambiental e climática no exterior, ainda mais em ano de COP no Brasil, quando ela foi vítima de ataques covardes no Senado? Notas de repúdio nas redes sociais são importantes, mas insuficientes. Ainda mais quando uma ala significativa do governo Lula defende com unhas e dentes a exploração de petróleo na foz do Amazonas, o asfaltamento da BR-319, a implantação da Ferrogrão e a expansão do agronegócio sobre a Amazônia e o Cerrado, minando os esforços do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA) no combate ao desmatamento e à crise climática.
*Alexandre Gaspari é jornalista no Instituto ClimaInfo; formado em Comunicação Social – Jornalismo pela UFF (Universidade Federal Fluminense), especializou na cobertura do setor de energia. Tem mestrado e doutorado em Ciências Sociais e MBA em Derivativos e Informações Econômico-Financeiras