Partículas das queimadas vindas das regiões Centro-Oeste e Norte interagindo com nuvens trazidas por frente fria vinda do Sul: foi esta a combinação que provocou o escurecimento do céu na cidade de São Paulo e a água da chuva acinzentada observada em seguida em partes da Região Metropolitana da capital paulista, garantem pesquisadores que analisam os fenômenos ocorridos na segunda-feira, através de sistemas de monitoramento de poluentes atmosféricos.
Ainda no domingo, uma intensa pluma de material particulado com mais de 3 mil metros de altitude foi detectada por uma equipe do Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen) por meio do sistema Lidar, do Centro de Lasers e Aplicações (CLA). Posteriormente, com auxílio de imagens de satélites da Nasa – a agência espacial norte-americana – e de um modelo que prevê a trajetória percorrida por massas de ar, os pesquisadores concluíram se tratar de partículas provenientes de queimadas ocorridas nas regiões Centro-Oeste e Norte, entre Paraguai e Mato Grosso, abrangendo trechos da Bolívia, Mato Grosso do Sul e Rondônia.
LEIA MAIS: Desmatamento faz Brasil perder R$ 300 milhões em 10 dias
Gostando do conteúdo? Nossas notícias também podem chegar no seu e-mail.
Veja o que já enviamosLEIA MAIS: Grilagem e desmatamento deixam Amazônia em chamas
“O sistema Lidar ilumina o céu e as partículas presentes na atmosfera refletem a luz, que captamos com um telescópio. Ao analisar esse sinal, conseguimos identificar o tipo de partícula e a distância da superfície em que ela se encontra”, explicou o físico Eduardo Landulfo, do Ipen, que vem desenvolvendo o Lidar – acrônimo para Light Detection and Ranging (detecção de luz e medida de distância) – desde 1998 por meio de projetos financiados pela Fapesp. O sistema é um radar de laser que permite o sensoriamento remoto ativo da atmosfera para a detecção de poluentes. Segundo o pesquisador, a pluma de poluição começou a pairar sobre a Região Metropolitana de São Paulo entre 16h e 17h de domingo – resultado de queimadas que ocorreram muito provavelmente de quatro a sete dias antes na Amazônia.
[g1_quote author_name=”Saulo Ribeiro de Freitas” author_description=”Pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Os ventos convergiram e fizeram o rio de fumaça se curvar em direção à região Sudeste. Além da fuligem, outros poluentes presentes na atmosfera – como monóxido de carbono, dióxido de carbono, ozônio, óxido nitroso e metano – interagiram com as nuvens trazidas pela frente fria e potencializaram a formação de smog (termo em inglês que representa a mistura entre fumaça e neblina)
[/g1_quote]O pesquisador Saulo Ribeiro de Freitas, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), explicou que a massa de ar poluído gerada pelas queimadas na Amazônia geralmente é empurrada a 5 mil metros de altitude por ventos que sopram do Atlântico para o Pacífico (de leste para oeste), até esbarrar na Cordilheira dos Andes. A fumaça começa então a se acumular sobre o leste do Amazonas, Acre, Venezuela, Colômbia e Paraguai – até que o chamado sistema anticiclone, com ventos que circulam a 3 mil metros de altitude no sentido anti-horário, começa a transportar a massa poluída na direção sul, margeando os Andes.
“O que ocorreu no início desta semana foi a convergência dessa massa de ar poluído que vinha do norte com uma frente fria vinda do sul. Os ventos convergiram e fizeram o rio de fumaça se curvar em direção à região Sudeste. Além da fuligem, outros poluentes presentes na atmosfera – como monóxido de carbono, dióxido de carbono, ozônio, óxido nitroso e metano – interagiram com as nuvens trazidas pela frente fria e potencializaram a formação de smog (termo em inglês que representa a mistura entre fumaça e neblina)”, disse.
[g1_quote author_name=”Paulo Artaxo” author_description=”Professor de Física da USP e doutor em Física Atmosférica” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Essa chuva não faz mal para as pessoas. Apenas caiu de uma nuvem com alta influência de queimadas
[/g1_quote]O transporte atmosférico de emissões de queimadas sobre a América do Sul vem sendo monitorado no Centro de Previsão de Tempo e Estudos Climáticos (CPTEC) do Inpe desde 2003, por meio do sistema CATT-BRAMS (Coupled Aerosol and Tracer Transport model to the Brazilian developments on the Regional Atmospheric Modelling System). “Trata-se de um produto pioneiro que faz previsão para até três dias da qualidade do ar e que tem sido adotado em vários centros do mundo, entre eles, o National Oceanic and Atmospheric Administration (NOAA), dos Estados Unidos”, acrescentou Freitas que desenvolveu o sistema em colaboração com Karla Longo e Luiz Flávio Rodrigues, ambos também cientistas do Inpe, e apoio da Fapesp. As previsões da qualidade do ar feitas no CPTEC podem ser consultadas diariamente pelo site do Inpe.
Nas imagens obtidas pelo modelo BRAMS, é possível ver que, no dia 16 de agosto, o “rio de fumaça” descia no sentido sul, atingindo Porto Alegre (RS) e parte da Argentina. Aos poucos, vai sendo desviado para o Sudeste e, no dia 20 de agosto, já cobria boa parte do Estado de São Paulo.
De acordo com Paulo Artaxo, professor do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP), doutor em Física Atmosférica e integrante do IPCC (Intergovernmental Panel on Climate Change, Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas), durante sua trajetória rumo à região Sudeste, a pluma das queimadas interagiu com o vapor d’água na atmosfera, alterando as propriedades das nuvens. “As partículas funcionam como núcleo de condensação da água. Assim, gotículas de chuva menores são formadas, mas em grande quantidade e isso faz com que uma maior parte da radiação solar seja refletida de volta para o espaço, a ponto de escurecer o solo, como aconteceu no último domingo”, disse.
Segundo Saulo Freitas, a chuva de cor acinzentada também foi resultado dessa interação da fuligem com as nuvens. “A fumaça entranhou nas gotículas de chuva, sendo depois depositada na superfície da cidade de São Paulo”, disse. Trata-se de um fenômeno esperado do ponto de vista da química atmosférica, confirmou Artaxo, e não deve causar alarde. “Essa chuva não faz mal para as pessoas. Apenas caiu de uma nuvem com alta influência de queimadas”, acrescentou.
[g1_quote author_name=”Eduardo Landulfo” author_description=”Pesquisador do Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Para ter causado todos esses efeitos observados nos últimos dias, deve ter sido uma quantidade de fumaça muito grande. Ainda não sabemos distinguir se é um fogo provocado ou acidental, que também é comum no período da seca
[/g1_quote]Análises feitas com uma amostra da água turva colhida na Zona Leste da capital pela bióloga Marta Marcondes, professora da Universidade Municipal de São Caetano (USCS), revelaram uma quantidade de sulfetos 10 vezes maior que a média normalmente observada em águas pluviais. “Essas substâncias normalmente estão relacionadas com a queima de biomassa e de combustíveis fósseis. Também chamou a atenção a grande quantidade de material particulado que ficou presa no filtro e a turbidez sete vezes maior que o normal”, explicou a bióloga.
Pesquisadores do Instituto de Química da USP identificaram na água da chuva a presença de reteno, substância proveniente da queima de biomassa e considerada um marcador de queimadas. O estudo foi coordenado pela professora Pérola de Castro Vasconcellos. A boa notícia para os moradores de São Paulo, segundo os especialistas, é que, como a pluma de poluição estava a mais de 3 mil metros da superfície, não chegou a comprometer a qualidade do ar na capital paulista. De fato, monitores da Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb) indicaram boas condições na última semana. “As cidades mais próximas da região onde ocorrem as queimadas, como Cuiabá, Manaus e Porto Velho, são as que mais sofrem com a degradação da qualidade do ar”, frisou Saulo Freitas.
[g1_quote author_name=”Cientistas do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia” author_description=”em nota técnica sobre as queimadas” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]A Amazônia está queimando mais em 2019 e o período seco, por si só, não explica este aumento. Os 10 municípios amazônicos que mais registraram focos de incêndios foram também os que tiveram maiores taxas de desmatamento
[/g1_quote]Tanto o pesquisador do Inpe quanto Eduardo Landulfo, do Ipen, afirmam que a chegada das emissões de queimadas na Região Sudeste é relativamente comum no período de seca, entre julho e setembro. “Mas para ter causado todos esses efeitos observados nos últimos dias deve ter sido uma quantidade de fumaça muito grande. Ainda não sabemos distinguir se é um fogo provocado ou acidental, que também é comum no período da seca”, afirmou Landulfo.
Em nota técnica divulgada no dia 20 de agosto, porém, cientistas do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM) afirmaram que “Amazônia está queimando mais em 2019 e o período seco, por si só, não explica este aumento”. Segundo o texto, o número de focos de incêndios para a maioria dos estados já é o maior dos últimos quatro anos – até 14 de agosto eram 32.728 focos registrados, número 60% superior à média dos três anos anteriores. A estiagem, por outro lado, está mais branda. Tal fato, afirma a nota, indica que “o desmatamento possa ser um fator de impulsionamento às chamas”. “Os 10 municípios amazônicos que mais registraram focos de incêndios foram também os que tiveram maiores taxas de desmatamento”, diz o texto. Os pesquisadores se basearam em dados do Sistema de Alerta de Desmatamento (SAD) do Imazon, do sistema de detecção de focos de calor do satélite AQUA, da Nasa, e dados de precipitação do CHIRPS (Climate Hazards Group Infrared Precipitation and Station Data).
Dados do Sistema Deter, do Inpe, que emite alertas diários de áreas desmatadas para ajudar na fiscalização, indicam que o desmatamento na Amazônia cresceu 50% em 2019. Julho foi o pior mês da série histórica, com 2.254 quilômetros quadrados (km²) de alertas – alta de 278% em relação a julho do ano passado. De agosto de 2018 a julho de 2019, o Deter apontou 6.833 km² desmatados, contra 4.572 km² no ano passado (agosto de 2017 a julho de 2018). A taxa oficial da destruição será dada no fim do ano pelo sistema Prodes, também do Inpe.
Karina Toledo/Agência Fapesp