O mundo está à beira de um aquecimento global catastrófico. O relatório síntese do Painel Intergovernamental das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (IPCC), divulgado no dia 20 de março de 2023, apontou que a comunidade internacional, provavelmente, em breve, superará a meta climática mais ambiciosa do Acordo de Paris de limitar o aquecimento a 1,5 graus Celsius acima das temperaturas pré-industriais.
A crise climática é uma ameaça existencial à humanidade e precisa ser controlada. Para desarmar essa bomba-relógio é preciso reduzir as emissões de gases de efeito estufa e interromper o aumento da concentração de CO2 na atmosfera, que é a mais alta em pelo menos 2 milhões de anos. O relatório do IPCC diz que há apenas um caminho estreito (e diminuindo rapidamente) para evitar a catástrofe climática. Esse caminho requer a redução das emissões em 50% até 2030 e zero emissões líquidas até 2050. Mas, até o momento, estamos indo na direção oposta.
As emissões totais de CO2 são impulsionadas por quatro fatores fundamentais, descritos na conhecida fórmula, “Identidade Kaya”, que é uma equação que expressa a relação entre as emissões de gases de efeito estufa (GEE) e as variáveis macroeconômicas que influenciam as emissões. A equação é dada por:
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- CO2 é a quantidade total de emissões de dióxido de carbono;
- População é a quantidade de habitantes do país ou região;
- PIB é o produto interno bruto, uma medida que agrega toda a produção de bens e serviços;
- PIB/População é a renda per capita;
- Energia/PIB é a intensidade energética, ou seja, a quantidade de energia consumida por unidade de produção;
- CO2/Energia é a intensidade de emissão de CO2, ou seja, a quantidade de dióxido de carbono emitida por unidade de energia consumida.
Tudo isto resumido na figura abaixo do site Our World in Data:
Portanto, segundo a “Identidade Kaya”, existem 4 fatores que influenciam nas emissões de CO2, entre eles o tamanho da população, a afluência da economia (renda per capita) e os outros dois ligados à tecnologia (a intensidade energética e a intensidade de carbono).
Nos países desenvolvidos, aquelas nações de alta renda e alto Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), o principal motor das emissões de CO2 é o nível de afluência, representado pelo alto nível de consumo. É claro que a população também importa nos países ricos, mas a influência da economia tem mais peso, como é o caso dos Estados Unidos da América (EUA), que é o terceiro país mais populoso do mundo, o segundo emissor corrente de CO2 e o primeiro emissor em termos de emissões históricas. Os países mais ricos geralmente possuem maior capacidade tecnológica, o que garante menor intensidade energética e de emissões de carbono.
Mas no caso da China o peso da população é mais significativo, já que o “gigante asiático” tem o segundo maior PIB global (em dólares correntes) e era o país mais populoso do mundo até 2022. A China passou a liderar as emissões correntes de CO2 no começo dos anos 2000 e ampliou a diferença em relação aos EUA na medida em que a economia chinesa crescia aceleradamente e aumentava o nível de afluência de seus habitantes. Os estudos indicam que até meados do atual século a China vai passar os EUA também em termos de emissões históricas (WP, 01/03/2023).
A Índia é outro caso relevante, pois passou a ser a nação mais populosa do mundo a partir de 2023 e, mesmo sendo um país de baixa renda, tem uma economia em rápida expansão. No século passado, as emissões indianas eram muito baixas e estavam atrás de países como Alemanha e Reino Unido. Mas com a continuidade do crescimento demográfico e econômico a Índia já ultrapassou as emissões correntes, não só de alguns países, mas de toda a União Europeia e pode ultrapassar as emissões correntes dos EUA nos próximos 20 anos.
Infelizmente, os tabus religiosos e ideológicos tendem a negar o peso da população sobre a degradação ambiental e climática. Sem dúvida, o consumo conspícuo é um vetor mais significativo para o agravamento do aquecimento global, mas isto não justifica relegar para as calendas gregas o reconhecimento da contribuição da população para as emissões. Portanto, não dá para separar as interligações do consumo global e da população global. População e consumo são como os dois lados de uma mesma moeda, como explicou o economista ecológico Herman Daly (2018):
“O impacto ambiental é o produto do número de pessoas vezes o uso de recursos per capita. Em outras palavras, você tem dois números multiplicados um pelo outro – qual é o mais importante? Se você mantiver uma constante e deixar a outra variar, você ainda está multiplicando. Não faz sentido dizer que apenas um número é importante. No entanto, ainda é muito comumente dito. Suponho que faria algum sentido se pudéssemos nos diferenciar histórica e geograficamente – para determinar em que ponto da história, ou em que país, qual fator merecia maior atenção. Nesse sentido, eu diria que, certamente, para os Estados Unidos, o consumo per capita é o fator crucial – mas ainda estamos multiplicando pela população, então não podemos esquecer a população”.
Sem dúvida, as emissões de gases de efeito estufa aumentaram em decorrência do crescimento demográfico e econômico dos últimos 250 anos, quando a economia global cresceu 135 vezes, a população mundial cresceu 9,2 vezes e a renda per capita cresceu 15 vezes. Portanto, a economia cresceu de maneira muito mais veloz do que a população. Nos atuais países desenvolvidos o período de maior crescimento foi nos séculos XIX e XX e nos países em desenvolvimento (nações de renda baixa e média) o maior crescimento tem ocorrido nas últimas décadas. Evidentemente, estas diferentes dinâmicas afetam o ritmo das emissões de carbono.
O gráfico abaixo mostra as emissões de carbono, entre 1850 e 2021, dos países desenvolvidos, representados pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e dos países em desenvolvimento (todos os demais países do mundo). Os 36 países ricos da OCDE são: Alemanha, Austrália, Áustria, Bélgica, Canadá, Chile, Coreia do Sul, Dinamarca, Eslováquia, Eslovênia, Espanha, Estados Unidos, Estônia, Finlândia, França, Grécia, Holanda, Hungria, Islândia, Irlanda, Israel, Itália, Japão, Letônia, Lituânia, Luxemburgo, México, Nova Zelândia, Noruega, Polônia, Portugal, Reino Unido, República Checa, Suécia, Suíça e Turquia. No conjunto, possuem, uma população de cerca de 1,4 bilhão de habitantes. Por outro lado, os países em desenvolvimento agregam uma população de cerca de 6,6 bilhões de habitantes.
Todos os valores do gráfico estão em milhões de toneladas de carbono (GtC) por ano (para obter os valores em milhões de toneladas de CO2 por ano, os valores devem ser multiplicados por 3.664). Na segunda metade do século XIX, a média anual das emissões de carbono dos países desenvolvidos foi de 0,21 GtC e a média das emissões dos países em desenvolvimento foi de somente 0,005. Ou seja, os países desenvolvido emitiram 40 vezes mais do que os países em desenvolvimento entre 1850 e 1900.
Na primeira metade do século XX, a média anual das emissões de carbono dos países desenvolvidos foi de 0,899 GtC e a média das emissões dos países em desenvolvimento foi de 0,115 GtC. Ou seja, a diferença entre os países desenvolvidos e os países em desenvolvimento ficou em 7,8 vezes entre 1901 a 1950.
Na segunda metade do século XX, a média anual das emissões de carbono dos países desenvolvidos foi de 2,61 GtC e a média das emissões dos países em desenvolvimento foi de 1,72 GtC. Isto quer dizer que a diferença entre os países desenvolvidos e os países em desenvolvimento caiu para 1,5 vezes entre 1951 e 2000.
Nas duas primeiras décadas do século XXI, a média anual das emissões de carbono dos países desenvolvidos foi de 3,56 GtC e a média das emissões dos países em desenvolvimento foi de somente 5,14 GtC. Ou seja, os países em desenvolvimento ultrapassaram os países desenvolvidos nas emissões anuais de carbono (Tamburino et. al, 2023).
Indubitavelmente, o quadro mudou e os países em desenvolvimento passaram a emitir mais do que os países desenvolvidos, pois o crescimento demográfico e econômico dos primeiros tem sido maior do que o crescimento dos segundos, desde os anos de 1980, quando a China e a Índia, assim como outros países de renda baixa e média, passaram a ter um maior crescimento do PIB.
Segundo o prêmio Nobel de economia, Michael Spence (2012), por milhares de anos, antes de 1750, o crescimento econômico era insignificante em todo o mundo. Mas este quadro começou a mudar com a Revolução Industrial e Energética e os níveis de renda per capita começaram a aumentar consistentemente. Durante o século XIX, o padrão se espalhou rapidamente para a Europa continental e depois para os Estados Unidos, Canadá, Austrália e Nova Zelândia e houve um processo de divergência da renda, isto é, alguns poucos países ficaram muito mais ricos do que o resto do mundo.
Porém, após a Segunda Guerra Mundial, o modelo começou a mudar, embora no início fosse difícil perceber que era realmente uma megatendência. Os países do mundo em desenvolvimento começaram a crescer de forma consistente e avançaram no processo de convergência da renda. É o que Michael Spence chama de nova convergência.
O mesmo processo é analisado no relatório “World Inequality report 2022”, estudo liderado pelo economista Thomas Piketty, que indicou que a desigualdade diminuiu dentro dos países e aumentou entre os países no período 1820 a 1980. Porém, nas últimas quatro décadas a situação se inverteu e a desigualdade passou a aumentar dentro dos países e a diminuir entre os países.
O resultado deste processo de convergência econômica é que as emissões de carbono dos países em desenvolvimento superaram as emissões dos países desenvolvidos. Olhando para o passado, os países ricos são responsáveis pela maior parte das emissões históricas. Mas no presente, os países em desenvolvimento (de renda baixa e média) já superaram os países ricos nas emissões correntes. E olhando para o futuro, se pode vislumbrar que os países em desenvolvimento serão, em breve, responsáveis pela maior quantidade das emissões acumuladas ou históricas, mesmo tendo menores emissões per capita.
O gráfico abaixo mostra a evolução das emissões acumuladas (ou históricas) do países desenvolvidos e dos países em desenvolvimento de 1850 a 2021 e uma projeção até 2040. Na segunda metade do século XIX, quase todas as emissões de carbono estavam concentradas nos países desenvolvidos. Em 1900, as emissões históricas dos países desenvolvidos estavam em 10,7 GtC e dos países em desenvolvimento em 0,268 GtC (40 vezes menos). Em 1950, as emissões históricas passaram para 55,7 GtC nos países desenvolvidos e para 6,0 GtC nos países em desenvolvimento (diferença de 9 vezes). Em 2021, os números já eram 261 GtC contra 200 GtC (uma diferença de somente 1,3 vezes).
Portanto, a diferença nas emissões históricas entre os países da OCDE e não OCDE está se reduzindo rapidamente e, fazendo uma projeção com base na manutenção dos níveis de emissão de 2021, os países em desenvolvimento devem superar os países desenvolvidos até 2040.
Os países em desenvolvimento possuem emissões per capita bem abaixo das emissões per capita dos países ricos da OCDE, mas, como visto na “Identidade Kaya”, as emissões totais dependem não só da renda per capita, mas também do tamanho da população, além dos avanços tecnológicos. Assim, os países desenvolvidos conseguiram reduzir em 10% as emissões de carbono entre 2011 e 2021, enquanto os países em desenvolvimento aumentaram as emissões em 20% no período.
Os acordos internacionais estabeleceram o princípio das “responsabilidades comuns, porém diferenciadas”. Desta forma, os países ricos e desenvolvidos precisam investir em tecnologia para aumentar a eficiência energética reduzir a intensidade de carbono por unidade do PIB, além de ajudar as demais nações do mundo. Já os países em desenvolvimento, que anseiam reduzir a pobreza e a fome, necessitam combater as desigualdades sociais, aprofundar a transição demográfica e promover um desenvolvimento sustentável com descarbonização da economia.
O fato é que as emissões de carbono continuam aumentando, a dependência dos combustíveis fósseis permanece quase intocável, o que torna cada vez mais difícil deter o aquecimento global e colocar em prática os limites estabelecidos no Acordo de Paris. Os países ricos da OCDE, embora sejam responsáveis pelas maiores emissões históricas, estão diminuindo lentamente as emissões correntes, embora precisem acelerar a queda para atingir a meta de carbono zero. Já os países em desenvolvimento (fora da OCDE) enfrentam o desafio de reduzir a pobreza, mas sem agravar ainda mais a crise climática e ambiental.
No longo prazo, é impossível manter a ideia convencional de que o crescimento econômico é sempre desejável e necessário, pois o crescimento contínuo é insustentável em um planeta finito e com recursos limitados. Em vez disso, o mundo precisa planejar uma economia pós-crescimento, buscando a prosperidade com justiça social, sem aumento continuado da produção de bens e serviços e com redução significativa da degradação ambiental e das emissões de gases de efeito estufa.
Referências:
ALVES, JED. Crescimento demoeconômico no Antropoceno e negacionismo demográfico, Liinc em Revista, RJ, v. 18, n. 1, maio 2022 https://revista.ibict.br/liinc/article/view/5942/5595
Harry Stevens. The United States has caused the most global warming. When will China pass it?, The Washington Post, 01/03/2023 https://www.washingtonpost.com/climate-environment/interactive/2023/global-warming-carbon-emissions-china-us/
HERMAN DALY. Ecologies of Scale, Interview by Benjamin Kunkel. New Left Review 109, Jan-Feb 2018 https://newleftreview.org/II/109/herman-daly-benjamin-kunkel-ecologies-of-scale
TAMBURINO, L. et al. An Analysis of Three Decades of Increasing Carbon Emissions: The Weight of the P Factor, Sustainability, 2023
https://www.mdpi.com/2071-1050/15/4/3245
Spence, Michael. The Next Convergence: The Future of Economic Growth in a Multispeed World, Farrar, Straus and Giroux, 2012
CHANCEL, L. PIKETTY, T. et al. World Inequality report 2022, World Inequality Lab, 2022