A crise climática não é iminente, trata-se já de um fato. Inúmeras ocorrências ao redor do mundo, relacionadas a chuvas de alto impacto, secas rigorosas, entre outros grandes eventos climáticos, corroboram com essa afirmação. No Brasil, as últimas ocorrências de fortes chuvas evidenciaram que as mudanças climáticas não se tratam somente de uma ameaça, mas uma realidade atual. O desastre ambiental em curso no Rio Grande do Sul, já atingiu mais de 400 municípios, afetando pelo menos 2 milhões de pessoas e causando mais de uma centena de óbitos. O estado de chuvas intensas e contínuas deixaram os municípios atingidos um mar de destruição, caos e desalento.
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Há pouco tempo, outros eventos extremos recentes deixaram rastros de destruição com tempestades contínuas e intensas e posteriores deslizamentos de terras, no litoral norte de São Paulo em 2023, em Petrópolis (RJ) e Pernambuco em 2022 e Bahia em 2021. Esses cenários foram marcados por deslizamentos drásticos de terra, em encostas, pós chuvas com grande volume de águas, arrastando casas, inundaram vias, produzindo caos, mortes e pessoas desabrigadas.
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Veja o que já enviamosEventos climáticos como secas intensas (em 2023, o norte do país registrou uma de suas piores secas), enchentes, vendavais, incêndios florestais, dentre outros, serão cada vez mais frequentes, segundo especialistas do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden). A emergência climática é uma realidade a qual ninguém estará imune, importa, no entanto, ressaltar que as populações mais vulneráveis aos seus efeitos são as pessoas pobres, periféricas, com menos acesso a moradias adequadas em locais seguros e/ou com parcas condições de refazerem as suas casas e estrutura material pós tragédia. Esse enorme contingente está mais à mercê dos efeitos dramáticos da crise ambiental.
Por isso, há alguns anos, ambientalistas e especialistas críticos ao acirramento das desigualdades sociais que a crise ambiental produz, passaram a se utilizar o conceito de Justiça Ambiental, um ideal em oposição às situações de injustiça ambiental, em que os efeitos das crises impactam de forma tremendamente desigual às pessoas já, historicamente, mais vulneráveis.
Populações vulnerabilizadas
Vivemos em um mundo marcado por profundas desigualdades sociais, onde uma parte da população vive em situação de pobreza ou miserabilidade. No Brasil, em 2021, 29,4% da população estava compreendida na linha da pobreza, o rendimento médio domiciliar per capita de 2021 foi de R$ 1.353,00, de acordo com o IBGE, um recurso insuficiente considerando o custo de vida no país. Por outro lado, o Brasil figura entre os dez países com maior PIB do mundo, ocupando a nona posição, segundo o FMI. Isso indica que desenvolvimento econômico, no sistema capitalista, não significa ausência da miserabilidade e redução de desigualdades. O crescimento econômico dos países não implica em uma divisão mais igualitária dos recursos ou na melhoria das condições de vida da população como um todo.
O crescimento econômico baseado em relações de exploração, tanto da natureza quanto das pessoas, representa degradação ambiental e a vulnerabilização de variados grupos sociais e povos ao redor do planeta, que perecem em circunstâncias de pobreza. São as populações mais empobrecidas que estão, hoje, em situação de enorme vulnerabilidade diante da exploração pelo sistema econômico e que sofrem ou sofrerão primeiro os efeitos da crise climática e ambiental.
A crise climática está colocada a nível planetário. No entanto, há populações em inquestionável situação de vulnerabilidades socioeconômicas, que já sofrem o peso da marginalização, pobreza e profundas carências, especialmente no acesso aos serviços públicos básicos, e que penam em moradias inseguras, residindo em regiões insalubres ou áridas. Não bastasse a situação de injustiça social e marginalização, essas populações ainda terão que lidar com mais um pacote de ameaças à sua existência, os efeitos da crise climática.
O tratamento da crise ambiental e climática precisa estar relacionado ao princípio da justiça ambiental, visto que, embora a crise seja global, as populações mais ameaçadas são as periféricas, as pessoas negras, povos originários, mulheres e as populações de baixa renda.
O conceito de justiça ambiental surgiu no âmbito de movimentos negros nos Estados Unidos, em meados dos anos 1980, que protestavam contra os danos ambientais sofridos por suas comunidades, desproporcionalmente afetadas em comparação com as regiões de maioria branca. À época, o sociólogo Robert Bullard realizou um estudo na cidade de Houston, no Texas, e chegou à conclusão de que a maior parte dos aterros sanitários da cidade se localizavam em bairros de maioria negra. Não se tratava de uma casualidade. Tanto Bullard como pesquisadores de outras partes dos EUA, que passaram a analisar circunstâncias semelhantes em suas regiões, chegaram à conclusão que as comunidades negras estadunidenses estavam muito mais suscetíveis à proximidade de depósitos de resíduos, inclusive, tóxicos.
“O racismo institucional continua a afetar as decisões políticas relacionadas à poluição e outras formas de degradação ambiental. A política de poluição e limpeza muitas vezes atribui prioridades mais altas às comunidades que possuem maior influência política. As comunidades negras, que geralmente não têm uma longa história de liderança no movimento ambiental, frequentemente se veem em uma posição de impotência. Isso resultou em seus constituintes recebendo baixa prioridade, ou nenhuma prioridade, na tomada de decisões ambientais locais” (BULLARD, 1986)
Nesse contexto efervescente em que se começou a refletir e denunciar a forma como a poluição impactava os grupos minorizados nos Estados Unidos, surge também a expressão Racismo Ambiental, criada por Benjamin Chavis, líder e ativista em defesa dos direitos civis. Para Chavis, o motivo pelo qual as agências governamentais atuavam em relação ao despejo de resíduos tóxicos nas imediações de comunidades negras deve-se ao racismo. O conceito de Racismo Ambiental diz respeito à exposição de grupos minorizados à poluição e aos riscos de contaminação por conta da proximidade com aterros sanitários, lixões e regiões de produção industrial e extrativista. No caso do Brasil, os grupos mais suscetíveis são as pessoas negras, indígenas e os povos tradicionais de uma forma geral, pois somos uma sociedade onde as relações sociais estão profundamente estruturadas pelo racismo.
O Racismo Ambiental é um conceito que não se restringe a vulnerabilidade frente a crise ambiental, o conceito também pode ser aplicado quando analisamos as condições de ‘precariedade ambiental’ em que vivem determinados grupos sociais. No país temos cerca de 31,7% de domicílios sem esgotamento sanitário (IBGE, Censo de 2022) e 15,6% não possuem o seu lixo coletado diretamente (IBGE, 2019). No Brasil há 12 milhões de pessoas residindo em terrenos irregulares, em áreas carentes de serviços públicos essenciais, segundo informação do quarto balanço do Censo 2022. Essas condições de precariedade às quais parcelas significativas da população estão sujeitas aprofundam a sua situação de vulnerabilidade diante da crise climática e ambiental.
Como estamos e para onde vamos
Os seres humanos constroem e reconstroem o mundo que os cerca, sendo capazes, como nenhum outro animal, de produzir culturas e modos de viver. A produção e manutenção das sociedades humanas sempre gera algum impacto nos ecossistemas do planeta, e os ecossistemas, por sua vez, em sua condição de resiliência frente a interferências externas, são capazes de se recompor. A depender do nível de extração de ‘recursos’ naturais, a regeneração transcorre de forma equilibrada. Exemplo disso são os povos tradicionais que produzem seu sustento e existência com baixo impacto ao meio ambiente natural.
No entanto, o firmamento do capitalismo como modo de produção à nível global imprimiu um ritmo intenso à extração de recursos naturais, produzindo, geração após geração, modos de vida e impactando no meio ambiente natural do planeta de uma forma que os ecossistemas não conseguem se autorregenerar de forma equilibrada. Especialmente, os últimos dois séculos foram marcados por um nível extremo de interferência de seres humanos no meio ambiente natural, a partir do modo de produção capitalista, com seu caráter extrativista e exploratório, baseado, em grande parte, na queima de combustíveis fósseis e na tríade extração, circulação e descarte.
Esse modo de produção explora os recursos naturais como se fossem infinitos, gerando um impacto irremediável na biosfera planetária e culminando com o cenário atual de crise climática. Embora não seja uma unanimidade, alguns estudiosos se referem ao conceito de Antropoceno – criado por Paul Crutzen e Eugene Stoermer no início dos anos 2000 – para designar a atual era geológica do planeta, em que a interferência de seres humanos na biosfera é de tal ordem que o impacto sobre a biosfera altera significativamente o seu equilíbrio.
A potência do capitalismo não se exaure como modo de produção, também forja uma cultura única, específica e expressiva onde quer que se assenta como sistema. Essa cultura baseada no consumo, no individualismo e em uma concepção de evolução é, ao mesmo tempo criação do capitalismo e força motriz do mesmo. Nesse contexto, o consumir para a manutenção da vida – ato inerente à condição humana – cede lugar a cultura do consumo, estimulada através da criação de necessidades pelo mercado.
“Portanto, se o capitalismo é um modo de produção de valor que requer necessidades sociais renovadas de mercadorias para que o ciclo de expansão do capital se perpetue, ele também precisa ser entendido como um modo de produção de mundo, um mundo que deve ser colonizado pela lógica da mercadoria. A história da produção desse mundo começa com a formação de uma cultura de consumo que ressignificou o campo das ilusões sociais desde, pelo menos, meados do século XIX. Cultura de consumo é, portanto, todo um modo de vida que foi se colando ao e ressignificando o uso dos objetos de uma época, seus valores e suas ilusões”. (FONTENELLE, 2014).
A cultura de consumo, o individualismo e o descolamento entre a humanidade e a natureza são características tão arraigadas nas sociedades contemporâneas, de forma geral, que parece a muitos não haver outra forma possível de vida senão sob a égide do capitalismo e dos modos de viver das sociedades urbano-industriais.
Considerando a teoria da Sociedade de Risco, abordada pelo sociólogo Ulrich Beck, podemos afirmar que as mudanças climáticas e a crise ambiental associada às profundas desigualdades sociais criam um contexto de extrema insegurança, tendo como resultado a ampliação de riscos a níveis local e global. O mundo como conhecemos, incluindo todas as espécies, está sob enorme risco. Especialistas vêm alertando há décadas e hoje já há certo consenso entre as nações para o fato de que os modos de viver dos povos associados ao modo de produção capitalista (que produz e reproduz os modos de viver) estão devastando o meio ambiente natural que sustenta todas as formas de vida.
A crise ambiental não se restringe à emergência climática. A interferência humana, para a produção de seus modos de viver, impacta solos, atmosfera e águas, a partir da exploração intensa e sem critérios dos recursos naturais, com vistas a corresponder à produção de bens materiais. Inclui a mineração e os acidentes de escapamento de rejeitos da produção da mineração ou energia nuclear. Abrange o descarte inadequado de enorme volume de bens materiais produzidos com materiais que não conseguem ser reabsorvidos pelo ecossistema natural, desde a sacola plástica de mercado aos hardwares de computadores. Envolve a exploração dos solos para a produção de commodities, assim como a utilização de defensivos agrícolas nas plantações, que prejudicam os solos e os cursos d’água. Inclui também o descarte de rejeitos químicos nas águas, dentre outros danos.
Esse cenário impõe a toda à humanidade a necessidade urgente de repensar esse modo de produção extrativista, altamente poluente e que produz e reproduz as desigualdades entre os povos, entre os países e entre as classes. Para lidar com a crise será preciso uma atuação imediata dos governos, mercados e sociedade. É preciso repensar a lógica da produção sem limites e, ao mesmo tempo, transformar as formas de produção utilizando fontes de energia menos poluentes, repensar as cidades, distribuir as riquezas. Terá de ser um pacto global, envolvendo governos, sociedade civil, corporações, entre outros atores relevantes.
Para assegurar as condições de vida humana e de outros seres vivos no planeta, caberá uma mudança radical de paradigma, a nível econômico, social e cultural. Será necessário assumir novos modos de viver em consonância com o fato do ser humano ser indissociável do meio ambiente natural, sem o qual não é possível a sua existência.
Assim, é fundamental que as emissões de gases à atmosfera sejam sensivelmente reduzidas para que possamos estacionar o aumento da temperatura global. O que se sabe é que os danos já causados não são reversíveis, ou seja, a temperatura média sofrerá aumento de, pelo menos, 1,5 graus, o que, por si só, já representa um tremendo impacto ambiental.
Dado que a temperatura do planeta já está em desequilíbrio, independentemente dos esforços para a contenção das emissões de gases, os governos, a nível mundial, precisarão assumir dois compromissos importantes. O primeiro deles se refere à uma ampla articulação consistente junto às indústrias e grandes corporações visando a transição energética, que viabilize fontes de energia renováveis, menos poluentes, para viabilizar a sua produção.
O outro compromisso importante que os países e seus poderes públicos precisarão assumir diz respeito à mitigação dos danos. Aqui me refiro a duas dimensões de danos. A primeira diz respeito aos danos resultantes dos desastres climáticos, uma realidade já em curso. A segunda dimensão se refere ao fato de que o planeta está mais quente e com mais desafios ambientais do que há décadas atrás, um estado de coisas que gerará movimentos migratórios motivados pela escassez de recursos. Esse segundo caso requererá dos países políticas públicas e ações que cuidem das pessoas, especialmente das populações de baixa renda.
Não podemos nos furtar de pensar na urgência de demandar do poder público políticas e ações que cuidem das pessoas e que reduzam significativamente os impactos das mudanças climáticas para as populações mais vulneráveis. Minimizar os impactos se dá primordialmente a partir de medidas de mitigação e redução de danos.