Deu na prestigiada revista “Science”. Cientistas da conservação reconheceram que os sistemas de conhecimento indígenas e ocidentais podem, e devem, trabalhar em conjunto para enfrentar as questões de sustentabilidade. É a primeira vez que um artigo assinado por cientistas indígenas brasileiros e não indígenas é publicado na revista científica: um reconhecimento da necessidade de construir pontes e levar em consideração os sabores dos povos originários, que, durante mais de 12 mil anos, vêm acumulando um profundo conhecimento ecológico da dinâmica da floresta e contribuiu para manter a Amazônia viva e em pé. Numa tradução literal, o título do artigo é “Indigenizando a ciência da conservação para uma Amazônia Sustentável” (do inglês “Indigenizing conservation science for a sustainable Amazon”).
O artigo é categórico: “A ciência ocidental tem um histórico de apropriação e supressão do conhecimento indígena”. Só que, nas últimas décadas, a realidade vem se impondo, o que tem levado a “um aumento repentino na reavaliação das relações entre comunidades científicas indígenas e ocidentais em todo o mundo”. O artigo foi escrito a muitas mãos: 14 cientistas, sendo cinco deles pesquisadores dos povos Tuyuka, Tukano, Bará, Baniwa e Sateré-Mawé. Todos do grupo já estiveram ou estão vinculados ao projeto Brazil Lab, da Universidade de Princeton.
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“Nossos saberes não foram elaborados na academia, nas universidades, nos laboratórios. Nosso conhecimento é fruto da nossa vivência no dia-a-dia, nas aldeias, nas festas, nas viagens…”, comenta Justino Sarmento Rezende, um dos cientistas indígenas que assinam a publicação. “Esse artigo é uma forma de dar voz a quem não tem voz e mostrar ao mundo que não basta deixar a floresta em pé. É preciso manter vivas as pessoas que vivem na floresta, para que nosso conhecimento não morra”.
Do povo Tuyuka, Rezende nasceu na aldeia Onça-igarapé, distrito de Pari-Cachoeira, município de São Gabriel da Cachoeira (AM). Ele é bolsista, pesquisador e pós-doutorando no Projeto Patrimônio e Territorialidade: percepções passadas, presentes e futuras entre os Tacana, Tsimane e Waiwai, na Universidade Federal do Amazonas. (Ufam).
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Veja o que já enviamosOs autores do artigo defendem a necessidade de construção de pontes que liguem as comunidades científicas aos povos indígenas, estabelecendo, assim, uma colaboração transdisciplinar e intercultural. “Nós sugerimos caminhos alternativos para abrir espaços de diálogos entre as estratégias de conservação e restauração baseadas na ciência e os conhecimentos e as práticas dos povos indígenas”, sustenta o artigo, acrescentando que “cada vez mais, cientistas da conservação estão reconhecendo que os sistemas de conhecimento indígenas e ocidentais podem trabalhar em conjunto para enfrentar as questões de sustentabilidade”.
Não foi fácil convencer os editores da Science da pertinência do artigo. Foram dois anos de negociações com um dos editores da revista, Brad Wible, até que a publicação fosse autorizada. Nesse período, uma conversa entre o editor-chefe da revista, H. Holden Thorp, e a cientista e indígena americana Yvette Running Horse Collin, do povo Oglala Lakota, foi fundamental para influenciar positivamente a publicação do artigo. Em setembro último, Thorp assinou o editorial da revista e o tema era a colaboração científica entre o ocidente e os povos indígenas.
Pesquisadora de pós-doutorado do Programa de Pós-Graduação em Ecologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Carolina Levis, é uma das cientistas não indígenas que assina o artigo. Segundo Rezende, ela foi peça-chave para a finalização e tradução do artigo. “Carol é de uma paciência infinita e, quando a gente ameaçava desistir, ela dizia que a Ciência depende do nosso conhecimento”. Bióloga, Levis faz parte da Rede de Diálogos entre Ecologias Indígenas e Ecologias da Academia, do Instituto Serrapilheira.
“A sociedade ocidental precisa parar de olhar o conhecimento indígena como expressão de religiosidade, de crença”, analisa Levis, comentando que esse preconceito leva a uma não validação do conhecimento científico dos povos indígenas. Segundo o artigo, evidências científicas demonstram que os territórios indígenas conservam pelo menos um terço de todos os ecossistemas terrestres “naturais” restantes. E ainda previnem a degradação e o desmatamento e oferecem proteção expandida para espécies de primatas ameaçadas.
Como a maior e mais preservada floresta tropical do planeta, a Amazônia é um terreno altamente fértil para “um diálogo frutífero entre ciências ocidentais e indígenas”, ainda segundo o artigo. Aos fatos: a Amazônia armazena entre 150 bilhões e 200 bilhões de toneladas de carbono em seu solo e vegetação e abriga mais de 410 povos indígenas distintos, que detêm direitos territoriais sobre 27% da região. “É, portanto, um profundo conhecimento ecológico da dinâmica da floresta e contribuíram para mantê-la viva durante mais de 12 mil anos”, acrescenta Levis.
“Apesar destes esforços científicos, ainda prevalece uma visão antropocêntrica e utilitarista da natureza nas sociedades de todo o mundo, pressionando os ecossistemas nativos para se tornarem terras agrícolas, pastagens e zonas industriais, consideradas fundamentais para o desenvolvimento econômico”, acrescenta Levis, comentando um dos trechos do artigo.