Para onde foram os alunos gaúchos atingidos pelas enchentes?

Para onde foram os alunos gaúchos atingidos pelas enchentes?

Em Roca Sales, 18% dos mil estudantes da rede municipal pediram transferência; falta de padronização de dados dificulta mapeamento da migração

Por Emilene Lopes | ODS 13ODS 4 • Publicada em 11 de dezembro de 2024 - 00:02 • Atualizada em 11 de dezembro de 2024 - 17:36

Depois de três mudanças em menos de um ano, a enchente de abril de 2024 foi a gota d’água para que Kauãn de Jesus Silveira, 14 anos, pedisse para morar com o pai em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. “Ele disse que não parava em colégio nenhum, que ia rodar de ano. A gente entendeu o lado dele de ir morar com o pai na Lomba do Pinheiro, que não tem perigo de enchente”, explica Cláudio Luis Pinheiro, padrasto de Kauãn.

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O adolescente vivia com a mãe, o irmão e o padrasto em Roca Sales, cidade de 10 mil habitantes localizada a 140km da capital gaúcha. Segundo o Mapa Único Plano Rio Grande (MUPRS), mais de 5 mil pessoas foram atingidas no local pelas enchentes deste ano. A família perdeu duas casas nas inundações de 2023 e, desde então, já passou pelos municípios de André da Rocha, Lajeado e Arroio do Meio em busca de emprego, moradia e educação. 

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A história da família de Kauãn é uma entre milhares que existem em Roca Sales. Pessoas que tiveram que recomeçar a vida em outra cidade após uma sequência de cheias devastadoras. A escola está entre as principais prioridades de quem está migrando. E os indicativos de migração aparecem nos pedidos de transferências: 18% dos mil estudantes da rede municipal de Roca Sales pediram transferência entre maio e setembro de 2024. Em 2023, a região também sofreu com outra inundação, mas as transferências no mesmo período ficaram em 12%.

Na tentativa de compreender esse fluxo migratório após as enchentes e verificar qual é o impacto da chegada de novos alunos nas cidades destino, a reportagem selecionou dez municípios fortemente atingidos pelo maior desastre ambiental do Rio Grande do Sul: Muçum, Roca Sales, Cruzeiro do Sul, São Sebastião do Caí, Igrejinha, Eldorado do Sul, Guaíba, Porto Alegre, Canoas e São Leopoldo.

A quantidade de transferências e os destinos dos estudantes entre maio e setembro de 2024 foram solicitados diretamente na secretaria de Educação de cada município. Para fins de comparação, também foram solicitadas as informações do mesmo período em 2023.

Neste mapa, você pode conhecer a localização, total de habitantes e o percentual de população atingida dessas cidades pela enchente de 2024.

Entre as cidades do levantamento, Roca Sales teve o maior número de transferências proporcionais ao número de matrículas. Em segundo lugar está Muçum, com 14% dos 443 dos estudantes da rede municipal transferidos em 2024. Abaixo, no gráfico, você pode conferir o levantamento completo. Os indicadores que estão em 0% significam que a cidade não disponibilizou os dados do período. 

Percentual de alunos transferidos em 10 cidades - O total é o número de matrículas conforme o Censo Escolar 2023. O percentual de 2023 e 2024 foi calculado com base neste número - Fonte: secretarias de educação de Muçum, Roca Sales, Cruzeiro do Sul, São Sebastião do Caí, Igrejinha, Eldorado do Sul, Guaíba, Porto Alegre, Canoas e São Leopoldo.
Percentual de alunos transferidos em 10 cidades – O total é o número de matrículas conforme o Censo Escolar 2023. O percentual de 2023 e 2024 foi calculado com base neste número – Fonte: secretarias de educação de Muçum, Roca Sales, Cruzeiro do Sul, São Sebastião do Caí, Igrejinha, Eldorado do Sul, Guaíba, Porto Alegre, Canoas e São Leopoldo.

Ainda segundo a pesquisa, São Leopoldo, Canoas e Guaíba foram as cidades que mais receberam transferências em 2024. Os números representam tanto os alunos que vieram de dentro quanto de fora do município. 

Destinos de alunos de redes municipais transferidos após as enchentes – O indicador “Outros” representa as transferências escolares que os municípios não souberam informar com precisão para onde foram. Fonte: secretarias de educação de Muçum, Roca Sales, Cruzeiro do Sul, São Sebastião do Caí, Igrejinha, Eldorado do Sul, Guaíba, Porto Alegre, Canoas e São Leopoldo.

Desastre ambiental expõe fragilidade de dados municipais

O Mapa Único Plano Rio Grande (MUPRS) aponta que 365 escolas municipais foram atingidas pelas enchentes. Esse número representa 7,5% do total de 4.864 escolas da rede municipal que existem no Estado.

Ao entrar em contato com as secretarias de Educação das cidades que participaram do levantamento para esta reportagem, ficou evidente a fragilidade e diferença no tratamento dos dados: algumas já tinham a quantidade e o destino de cada estudante transferido, em outras só sabiam informar as transferências que ocorreram dentro do próprio município. Há casos de dados e documentações perdidas nas enchentes. 

Somente duas cidades enviaram as informações de 2023 e 2024 completas: Guaíba e São Sebastião do Caí. Roca Sales, Igrejinha, Porto Alegre e São Leopoldo não conseguiram detalhar para quais cidades as transferências foram feitas nos dois anos, somente as que aconteceram dentro da própria rede municipal. Muçum, Eldorado do Sul e Canoas não têm dados de 2023.

Os irmãos Vicente e Melina na nova escola em Santa Cruz do Sul: transferência depois que a família perdeu a casa em Cruzeiro do Sul e a escola das crianças também sofreu estragos (Foto: Arquivo Pessoal)

A Secretaria de Educação de Cruzeiro do Sul não forneceu nenhum dado organizado em relação às transferências e destino dos mais de mil alunos da rede. A pasta encaminhou o contato de oito escolas para que a pesquisa fosse feita diretamente com as instituições de ensino. A maioria não registrou transferências ou foi atingida pelas enchentes, com exceção da Escola Municipal de Ensino Fundamental Jacob Sehn. “É muito raro ter alguma alguma transferência durante o ano letivo, mas nós ficamos mais de 80 dias sem aula presencial. A escola precisou ser totalmente reformada”, explica a diretora Leonice Janete Bohnenberger. Dos 388 alunos, 59 foram transferidos após o desastre de maio deixar a escola submersa.

Vicente Rabuske Mattes, de 11 anos, é um dos estudantes que deixaram a escola Jacob Sehn para recomeçar as aulas em outra cidade. Ele, os pais e a irmã mais nova perderam a casa em que moravam em Cruzeiro do Sul e mudaram para Santa Cruz do Sul, cidade que fica a 56 km de distância.  “O que nos trouxe para Santa Cruz foi a oportunidade das crianças estudarem numa escola muito boa e uma vaga de emprego na minha área”, conta Ana Paula Rabuske, mãe do Vicente e da Melina, caçula de 4 anos. Com a ajuda de voluntários do Grupo do Bem, os irmãos conseguiram uma bolsa de estudos na escola particular Educar-se. A mãe explica que a instituição de ensino acolheu bem e deu todo apoio aos filhos nessa fase de adaptação. 

“Não tem sido fácil, a vida em Cruzeiro era muito simples. Era tudo pertinho, todo mundo se conhecia, a gente morava perto da escola. Aqui é tudo mais longe e a gente não tem a mesma rede de apoio”, conta Ana Paula. Além da saudade dos amigos da antiga escola, existia um medo de não conseguir acompanhar o nível de aprendizado de uma rede particular, mas Ana Paula revela que, com o tempo, “as coisas estão se ajeitando”. 

Escola da rede municipal de Porto Alegre alagada pelas chuvas: alunos saindo e chegando na capital após as enchentes (Foto: Júlia Azevedo / Prefeitura de Porto Alegre)

Cenário estadual

Na rede estadual, conforme dados da Secretaria de Educação do Estado, 1.104 instituições de ensino tiveram a rotina escolar afetada de algum modo e cerca de 600 foram danificadas, impactando diretamente mais de 403 mil estudantes. Segundo dados obtidos via Lei de Acesso à Informação pela reportagem, entre maio e setembro de 2024, a rede estadual teve quase 45 mil transferências. O número é 28% maior do que os cerca de 35 mil alunos transferidos no mesmo período em 2023.

Em relação aos destinos desses estudantes que mudaram de escola, a secretaria só consegue detalhar para onde foram os que migraram dentro da própria rede: 30 mil alunos em 2024 e 19 mil em 2023. 

Segundo o relatório, entre maio e setembro de 2024, Porto Alegre foi a cidade que mais teve transferências: 7.107 alunos. 62% foram para dentro da própria rede em Porto Alegre, ou seja, provavelmente mudaram de bairros que alagaram. Caxias do Sul, Canoas e Santa Maria são as principais cidades para onde foram os porto-alegrenses que estudam em escolas estaduais.

No gráfico abaixo, é possível visualizar os destinos que mais receberam transferências de alunos na rede estadual.

Os destinos de alunos transferidos na rede estadual do Rio Grande do Sul – O indicador “Outros” é sobre as transferências para fora da rede estadual, que a Secretaria de Educação do Estado não consegue definir para qual rede de ensino ou cidade foram. Fonte: dados obtidos via Lei de Acesso à Informação

Quando questionada sobre a distribuição de uma verba extra ou a contratação de mais professores para auxiliar as escolas que receberam os alunos transferidos, a Secretaria de Educação do Estado informou que não houve repasses diretamente para essas instituições, somente um reajuste na verba para a merenda. Também respondeu que está sendo avaliado, junto aos municípios, a necessidade de construção de novas escolas estaduais em locais que receberam alunos após as enchentes. 

Até novembro, a pasta já destinou R$88,5 milhões para a recuperação de escolas atingidas pelas enchentes. Parte da verba foi direcionada para a compra de mobiliário escolar e o restante foi distribuído via o programa Agiliza, que permite que as equipes diretivas de cada escola gerenciem os recursos conforme a necessidade e a especificidade de suas instituições. 

Fundo de emergência e autonomia para as escolas

Qual é o impacto da migração escolar na infraestrutura e nas finanças das instituições de ensino? Para Mateus Saraiva, professor da Faculdade de Educação da UFRGS e especialista em Gestão e Política da Educação, essa é uma pergunta ainda a ser respondida. Mas ele já aponta alguns caminhos para pensar esta realidade que as enchentes trouxeram para muitas escolas.  

Primeiro é reconhecer a dificuldade dos gestores de adaptar o planejamento em casos de demanda extra. As grandes políticas educacionais, como o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) e o Programa Dinheiro Direto na Escola (PDDE), são organizadas com antecedência, a partir do número de alunos enviado por cada escola ao Censo Escolar. Quando acontece um aumento inesperado de transferências, a tendência é que falte recursos, porque a escola não vai receber o valor proporcional ao número de estudantes.

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Para lidar com essa realidade, Mateus destaca a importância de ter um fundo de reserva para que os gestores possam utilizar em casos de emergência, como as enchentes. Além disso, autonomia para que os diretores possam direcionar esses recursos para onde mais precisam. “Precisamos garantir que as escolas funcionem em sua plenitude e que quando acontecer uma intercorrência como essa, elas possam ter recursos e autonomia para agir”, afirma. 

O professor lembra que acolher um aluno na comunidade escolar e garantir seus direitos também passa por políticas educacionais de rede, ligadas à saúde, habitação e assistência social. 

Para acessar o relatório completo com os dados levantados pela reportagem clique aqui

*Pauta selecionada pelo 6º Edital de Jornalismo de Educação da Jeduca e da Fundação Itaú

Emilene Lopes

Emilene Lopes é jornalista gaúcha com foco em educação, meio ambiente e cultura. Atua como repórter freelancer e lidera o projeto de jornalismo local Retratos de Guaíba, dedicado a resgatar memórias e promover o diálogo sobre a identidade e cultura dos guaibenses. Vencedora do Prêmio Paulo Freire de Jornalismo 2022, na categoria Mídias Digitais, também produziu o documentário Histórias do Cine Gomes Jardim (2019)

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