Nos dois primeiros anos do Governo Bolsonaro, as emissões de gases de efeito estufa aumentaram 122% na Amazônia, resultado do aumento desenfreado do desmatamento da floresta. O dado alarmante faz parte de artigo prestes a ser publicado na Revista Nature e foi revelado por sua primeira autora, a pesquisadora Luciana Gatti, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), no lançamento da proposta de protocolo ao TCA (Tratado de Cooperação da Amazônia), elaborado por organizações da sociedade civil com o objetivo de evitar que a Amazônia atinja o ponto de não-retorno. “Estamos muito perto do limite. O desmatamento está matando a floresta”, afirma a cientista.
Leu essa? Amazônia e Cerrado: em junho, maior número de queimadas desde 2007
A proposta de protocolo já foi entregue ao governo brasileiro e à OTCA (Organização para o Tratado de Cooperação da Amazônia) como contribuição para Cúpula da Amazônia que reunirá, em Belém, chefes de estado de oito países amazônicos na semana que vem – a partir desta sexta, 04/08, começam os debates do evento com a participação de representantes de governos e de organizações da sociedade civil. “Nossa expectativa é ajudar a fazer as discussões dentro do tratado estabelecerem metas concretas, um objetivo a partir do qual os países possam cooperar”, afirmou JP Amaral, gerente de meio ambiente e clima do Instituto Alana, uma das mais de 60 organizações da sociedade civil que assinam a proposta de protocolo, durante o lançamento virtual do documento no canal do Observatório do Clima no YouTube.
Em 2021, Luciana Gatti fez parte de um grupo de pesquisadores do Inpe mostrou, após coletar nove anos de dados, que algumas regiões da Amazônia brasileira já emitem mais gás carbônico para a atmosfera do que capturam, revertendo o papel do ecossistema de sorvedouro para ao menos uma parte do carbono extra lançado pelos seres humanos no ar. “A Amazônia é a nossa proteção contra o colapso climático em curso”, afirmou a cientista. “As mudanças climáticas estão muito mais aceleradas do que os modelos preveem. Esse processo de destruição acelerada da Floresta Amazônica, por exemplo, não está nos modelos”, acrescentou.
Gostando do conteúdo? Nossas notícias também podem chegar no seu e-mail.
Veja o que já enviamosA pesquisadora do Inpe destacou ainda no evento que o aumento de 122% constatado pela pesquisa mais recente foi resultado do avanço de desenfreado do desmatamento no Governo Bolsonaro. “O lado oeste da Amazônia, que era mais preservado, desmatado em média apenas 11%, foi atacado com Bolsonaro. O Amacro – Acre, Rondônia e o sul do Amazonas – quer reproduzir o Matopiba. É um absurdo. O pessoal está desmatando igual um bando de formiga saúva. E está matando a nossa condição de sobrevivência – de chuva, climática, agrícola. O nosso prejuízo é muito maior que o lucro desse ogronegócio”, desabafou.
Luciana Gatti, que estuda a Amazônia há mais de 20 anos, enfatizou que o clima no bioma já está mudando: em 2020, a estação chuvosa registrou 23% menos chuva do que o normal. “Estamos vendo o desmatamento matar a Amazônia de duas maneiras: a direta, pela derrubada sistemática das árvores; a indireta, porque, com menos floresta, estamos perdendo chuva e aumentando a temperatura – o que mata as espécies de árvores típicas de floresta tropical úmida, as grandes árvores que jogam um monte de vapor de água para a atmosfera”, alertou a cientista. “O ogronegócio que desmata a Amazônia vai destruir o agronegócio no resto do país porque vai provocar – já está provocando – a redução da chuva e a multiplicação dos eventos extremos”.
A pesquisadora do Inpe lembrou ainda, no nordeste da Amazônia, onde a área desmatada passa de 30%, a floresta já emite mais gases de efeito estufa do que é capaz de capturar – na região do Pará onde estão Santarém e Belterra, o desmatamento chega a 70%. “A Floresta Nacional do Tapajós está ilhada, cercada por plantações de soja ou milho e fazendas de gado. A diferença de temperatura é tão grande que mudou o regime de chuvas: estão ocorrendo chuvas fortes e intensas, com muito vento, e as árvores mais altos estão caindo”, contou Luciana Gatti. “A Amazônia está virando soja, milho, bife e madeira”, afirmou.
No evento virtual, a cientista listou os números da devastação nos dois primeiros anos do governo Bolsonaro e do “primeiro-ministro do desmatamento Ricardo Salles”: a exportação da madeira bruta aumentou 700%; a área plantada de soja na Amazônia aumentou 70%; a de milho 60%; o rebanho bovino cresceu na Amazõnia e diminuiu no resto do país. E pediu urgência aos presidentes reunidos na Cúpula da Amazônia. “Zerar o desmatamento em 2030, como está sendo falado, pode não ser suficiente. Temos que compensar o caos do Bolsonaro e recuperar a floresta perdida. É preciso decretar estado de emergência na Amazônia e parar de desmatar imediatamente. Estamos caminhando cada vez mais rápido para o colapso climático”, enfatizou Luciana Gatti.
Cúpula da Amazônia
Estudos e alertas como os repetidos pela cientista do Inpe apontam para a crescente probabilidade de o bioma amazônico alcançar o ponto de não retorno, o que poderia ocorrer com um desmatamento total na casa de 20% a 25% da área da floresta. Hoje a Pan Amazônia já perdeu 15% de sua cobertura vegetal original; no Brasil, que detém 60% da área do bioma, a perda é calculada em 20%.
A ideia de negociar um protocolo dentro do TCA foi aventada pela ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, em maio num seminário no Itamaraty. Ambientalistas acharam-na boa e transformaram-na numa minuta de texto de negociação. “Como forma de implementação, entende-se que um acordo multilateral que impeça o atingimento do ponto de não-retorno da floresta amazônica deve incluir: I. Um compromisso para eliminar o desmatamento até 2030; II. O reconhecimento de todos os territórios indígenas e quilombolas e o fortalecimento de seus direitos; III. A expansão das áreas protegidas; e IV. Medidas efetivas de combate aos ilícitos ambientais, tais como o garimpo ilegal e a contaminação por mercúrio”, estabelece a proposta.
O objetivo, caso a proposta seja acolhida, é ter o instrumento pronto para adoção em dois anos. “Nós temos a expectativa, a partir das conversas com o governo, que a Cúpula da Amazônia seja o começo de um processo contínuo, com um mecanismo de participação e governança mais eficaz, com a presença da sociedade civil”, afirmou JP Amaral. “Nós já estamos vendo o efeito das mudanças climáticas, inclusive na Amazônia, afetando exatamente a saúde e o sustento das populações mais vulneráveis. Por isso, o protocolo tem uma ênfase socioambiental”, acrescentou.
O documento lançado nesta quarta-feira é uma das várias propostas da sociedade civil para a Cúpula da Amazônia. Em maio, as redes Fospa (Fórum Social Pan-Amazônico), Repam (Rede Eclesial Pan-Amazônica) e a AMA (Assembleia Mundial para a Amazônia) publicaram um conjunto de seis documentos para a cúpula, abordando desde o combate ao desmatamento com vistas a evitar o ponto de não-retorno até os direitos indígenas e o combate ao garimpo predatório.
O GT Infraestrutura e outras quatro redes, incluindo o Observatório do Clima, entregaram aos governos em Letícia, no começo do mês, uma proposta sobre infraestrutura sustentável para subsidiar o debate na cúpula. A Coalizão Clima, Crianças e Adolescentes junto com organizações da defesa dos direitos das crianças e adolescentes entregaram uma carta para todos os países da Pan-Amazônia com propostas para proteção específica das infâncias que são os mais vulneráveis aos impactos socioambientais, em especial as crianças indígenas.