Barreiras da pobreza aumentam perigos do calor para a saúde mental

Pesquisa indica que pacientes com esses transtornos têm 15% mais chances de ir parar em uma emergência; risco aumenta entre os mais pobres

Por Deborah Freire | ODS 13ODS 3 • Publicada em 4 de junho de 2025 - 09:34 • Atualizada em 5 de junho de 2025 - 09:37

Jéssica Lima com o filho Kássio em casa num dia de calor extremo em Maceió: pobreza agrava os riscos das altas temperaturas para pacientes com transtorno de saúde mental (Foto: Jonathan Lins)

O sol brilha entre poucas nuvens em Maceió, capital de Alagoas, em um abril quente e seco. A temporada de chuvas atrasou. O ano se encaminha para ser um dos mais quentes da história. E na casa de 15 metros quadrados, na parte mais baixa da Grota, comunidade onde mora, Jéssica Lima não encontra maneiras de amenizar o mal-estar do filho Kassio, de sete anos, com o calor.

Ele possui o transtorno do déficit de atenção com hiperatividade (TDAH), segundo avaliaram as profissionais que o acompanham no Centro de Atenção Psicossocial Infantojuvenil (Capsi). Em geral, tem um comportamento que oscila entre a inquietação e a falta de interesse pelo ambiente ao seu redor.

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Naquela quinta-feira, ele passou a manhã deitado no sofá, junto aos três irmãos, em frente à TV, sem quase reagir ao abafado da sala, coberta com telhas de fibrocimento, que fazem todos suarem.

A mãe tenta controlar a temperatura do menino com banho, mas a água sai quente. Ela teme que o calor provoque nele um quadro que começou a aparecer recentemente, de arritmias. Essa alteração nos batimentos cardíacos pode também ter relação com o estimulante receitado no posto de saúde para tratar o TDAH, mas ainda não foi investigada.

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Jéssica foi orientada a procurar um cardiologista para o filho, antes que enfrente uma situação mais grave, de emergência. Mas buscar atendimento médico é difícil. Com quem deixar as outras crianças?

E, sozinha, ela tenta, de forma precária, driblar um problema que começa a aparecer nas pesquisas científicas: a pobreza é um fator que agrava os riscos do calor para pacientes com transtorno de saúde mental.

Um estudo pioneiro feito no Brasil entre 2017 e 2021 mostrou que pacientes com esses transtornos têm 15% mais chances de ir parar em uma emergência após um dia de calor extremo. O risco perdura por pelo menos uma semana após a exposição.

Se o paciente tiver renda mais baixa, as chances aumentam. Segundo a pesquisa, os pacientes do SUS tiveram um índice de atendimento de emergência 7,5% maior do que os do setor privado após exposição ao calor.

O calor age de forma complexa e através de diversos mecanismos nos pacientes de saúde mental. De forma geral, o calor e a luminosidade podem levar a um desequilíbrio hormonal e de neurotransmissores

Julia Feriato Corvetto
Médica e pesquisadora

A explicação está nos obstáculos enfrentados pelos mais pobres, segundo a médica e pesquisadora Julia Feriato Corvetto, doutoranda no Instituto Heidelberg de Saúde Global, na Alemanha, e autora do artigo “Consultas de emergência privadas vs. públicas para saúde mental devido ao calor: uma avaliação socioeconômica indireta da vulnerabilidade ao calor e acesso à saúde, em Curitiba”, publicado ano passado.

As barreiras da pobreza vão desde a precariedade das moradias à dificuldade de transporte para buscar atendimento e à falta de informação, e são potencializadas durante os períodos de calor extremo.

“Ainda são necessários outros estudos, mas baseado na literatura, eu diria que os pacientes do SUS são provavelmente, via de regra, mais vulneráveis ao calor, enquanto os pacientes do setor privado podem ter acesso a mais meios de adaptação, por exemplo, ar condicionado, melhor meio de transporte. O IBGE mostra que o perfil do paciente do SUS, em comparação ao do setor privado, é de menor renda e nível educacional, e não-branco. E geralmente, renda menor é um importante fator que aumenta a vulnerabilidade ao calor do indivíduo”, explica.

Jéssica Lima com o filho Kássio que sofre de TDAH: calor agrava transtorno mas falta atenção médica adequada (Foto: Jonathan Lins)
Jéssica Lima com o filho Kássio que sofre de TDAH: calor agrava transtorno mas falta atenção médica adequada (Foto: Jonathan Lins)

Por que o calor é um risco para a saúde mental?

As mudanças climáticas, que fazem com que os dias sejam mais quentes ano a ano, têm efeitos cada vez mais severos sobre a saúde da população. Quando se trata de pacientes com transtornos mentais, os efeitos são mais perigosos e podem levar a quadros graves e situações de emergência.

A médica e pesquisadora Julia Corvetto explica que as altas temperaturas podem intensificar doenças crônicas como a esquizofrenia, o transtorno bipolar, os transtornos de ansiedade, e também levar mais rapidamente às chamadas “doenças relacionadas ao calor”, como a insolação. O estudo identificou também um aumento de 85% nas tentativas de suicídio após a exposição às altas temperaturas.

Além disso, o uso de algumas medicações, não só as psiquiátricas, pode afetar a regulação da temperatura corporal, e por isso demanda uma observação contínua em períodos de calor extremo por parte dos profissionais de saúde, pacientes e familiares.

Algumas doenças específicas, como a esquizofrenia, também podem reduzir a capacidade de dissipação de calor, elevando a possibilidade de hipertermia, o que pode gerar riscos à vida do paciente.

É preciso reposicionar o tópico ‘mudanças climáticas’ como um tema de saúde pública, redirecionando mais fundos para medidas de adaptação, o que nada mais é do que prevenção em saúde pública. Estamos prevenindo que aquelas consequências já irreversíveis das mudanças climáticas atinjam a população

Julia Feriato Corvetto
Médica e pesquisadora

E ainda há transtornos de saúde mental que podem afetar a capacidade cognitiva do indivíduo, ou seja, o paciente não sabe agir de forma efetiva para se proteger do calor. “O calor age de forma complexa e através de diversos mecanismos nos pacientes de saúde mental. De forma geral, o calor e a luminosidade podem levar a um desequilíbrio hormonal e de neurotransmissores. Em caso de aumento dos níveis de serotonina ou de cortisol, por exemplo, alguns sintomas agudos de doenças como transtorno bipolar e transtornos de ansiedade podem aparecer, o que chamamos de exacerbação da doença”, detalha.

Até o aumento de tentativas de suicídio foi relacionado com esse desequilíbrio. Julia Corvetto aponta que os pacientes com transtornos podem ser mais sensíveis a fatores estressores, que nesse caso seria o calor. “Esse excesso de estresse seria parcialmente responsável pelo aparecimento de sintomatologia das doenças”, explica.

A médica e pesquisadora Julia Feriato Corvetto em seminário na Alemanha: mudanças climáticas devem ser tema de saúde pública (Foto: Arquivo Pessoal)
A médica e pesquisadora Julia Feriato Corvetto em seminário na Alemanha: mudanças climáticas devem ser tema de saúde pública (Foto: Arquivo Pessoal)

Ministério da Saúde não apresenta estratégias de adaptação

Em 2003, quando a Europa passou por uma onda de calor responsável pela morte, de acordo com estimativas, de 70 mil pessoas, a França implantou um sistema de alerta para avisar à população quando as temperaturas irão subir. Na TV, na Internet, no rádio, as pessoas são informadas sobre como agir nesses períodos quentes, com dicas como “evite bebidas alcoólicas” ou “beba mais água”, por exemplo.

É um modelo como esse que a pesquisadora Julia Corvetto defende que o Brasil adote entre as estratégias de adaptação ao clima. Além disso, ela reforça a importância de ampliar os recursos investidos na área e de qualificar os profissionais de saúde e as famílias de pacientes de grupos de risco para lidarem com a situação.

Em março deste ano, representantes do Ministério da Saúde participaram de um encontro com a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) onde foi discutido o Plano de Ação sobre Clima e Saúde. O documento está em construção, mas só deve ser apresentado em novembro durante a 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP30), em Belém.

A reportagem questionou se o ministério tem ou planeja criar algum programa ou ação que se enquadre nas sugestões da pesquisadora ou outra medida voltada para o cuidado com a saúde mental em períodos de muito calor, mas não recebeu resposta.

“É preciso reposicionar o tópico ‘mudanças climáticas’ como um tema de saúde pública, redirecionando mais fundos para medidas de adaptação, o que nada mais é do que prevenção em saúde pública. Estamos prevenindo que aquelas consequências já irreversíveis das mudanças climáticas atinjam a população – ou, se atingirem, que as comunidades estejam munidas com ferramentas que aumentem sua resiliência para lidar com os eventos climáticos”, cobrou a médica.

Deborah Freire

Jornalista por formação com o desejo e compromisso de informar com verdade, responsabilidade e empatia. Acredita no jornalismo como ferramenta de transformação e inclusão social. Atuou em redações no estado de Alagoas, sua terra natal, e tem colaborado com reportagens para veículos como Estadão, Istoé e Portal Terra.

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