Depois de uma enchente, como ficam as fotografias da primeira vez que alguém da família usou uma beca, da juventude da avó e dos sorrisos do inseparável grupo de amigos? O que resta dessas memórias que adornavam os cantos e os álbuns em extinção?
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Seja como consequência de eventos climáticos extremos ou crimes socioambientais, novas ruínas nos são apresentadas. São tantos os fragmentos e danos a serem reparados que algumas sutilezas que faziam parte do cotidiano se perdem em meio à urgência do resgate do mínimo.
As fotos que guiavam a narrativa da própria história, em que se era protagonista, ficam marcadas pela ganância de empreendedores que burlam legislações e governos que negligenciam a urgência de adaptação e resiliência climática.
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Veja o que já enviamosDiante dos desastres – planejados por ações ou omissões – emergem da lama, das águas e das lágrimas, mobilizações guiadas pela empatia e solidariedade daqueles que lutam contra a produção do esquecimento. Nos Estados Unidos, após o furacão Katrina em 2005, voluntários criaram a Operação Foto Resgate (Operation Photo Rescue) cujo objetivo é “salvar o passado, uma imagem de cada vez”. Essa iniciativa já recuperou mais de 10.000 fotos em regiões atingidas.
No Brasil, mesmo não sendo palco de furacões e terremotos, ideias similares também buscaram resgatar o insubstituível. Em 2015, após o crime do rompimento da barragem de Fundão, em Mariana, moradores buscaram fotógrafos e donos de estúdio que pudessem recuperar negativos antigos para reconstruir álbuns de casamento destruídos pela lama. Em Petrópolis, após as inundações e deslizamentos de 2022, a Sociedade Petropolitana de Fotografia se voluntariou para tentar recuperar fotos que foram atingidas pela catástrofe, destacando que “nos empenharemos ao máximo, pois sabemos o quanto algumas fotos possuem valor afetivo inestimável”.
A mais recente iniciativa foi em 2023, no Vale do Taquari, região impactada por uma enchente conhecida como o maior “desastre natural” — ou melhor, desastre de gestão de risco de desastres — da história do Rio Grande do Sul. A fotógrafa Franciele Locatelli, além de apoiar, deu orientações em suas redes para restaurar as fotografias danificadas. Nesse mesmo cenário, a Divisão de Perícias do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região disponibilizou seus servidores para “um trabalho de restauração ou de reprodução de lembranças em papel, como desenhos, fotos, certificados, cartas e convites que molharam, ficaram embarrados ou até mesmo rasgados em razão da enchentes.”
Não se trata meramente de fotografias, mas sim de registros ancestrais. São heranças tangíveis, testemunhos que transcendem o mero instantâneo. Privar alguém do direito a essas memórias é uma violência que escapa à mensuração convencional da justiça. Assim como aqueles que foram afetados, as fotografias passam a existir em duas temporalidades distintas: a do momento em que foram registradas e a do instante em que foram danificadas, carregando consigo não apenas o passado, mas também as cicatrizes de uma interrupção indesejada no presente.
Inevitavelmente, o restaurador enfrenta uma batalha contra o esquecimento. Um esquecimento que vai além da individualidade daquele que lhe confiou a foto, pois essa lembrança, repleta de simbologia, pertence a toda a coletividade. Surge a indagação: quais registros conseguem resistir à precariedade imposta à América Latina?
E sim, é possível restaurar. No entanto, mais significativo do que restaurar é investir em prevenção e precaução contra eventos extremos, assegurando que o restauro seja realizado diante da necessidade do ritmo natural do envelhecimento e não como resposta a um susto traumático.