Com a autoridade de quem passou oito anos no ministério do Meio Ambiente, dois como secretária executiva e seis como ministra, Izabella Teixeira lamenta a destruição produzida pelo governo Bolsonaro na área ambiental. Segundo ela, o plano do ex-ministro Ricardo Salles de “passar a boiada enquanto a mídia estivesse ocupada com a covid-19”, infelizmente, deu certo: “As pessoas não têm noção do tamanho do estrago. Imagine um Fusca 66 sendo atropelado por uma carreta. A área ambiental do governo sofreu perda total. Como dizem os jovens hoje: ‘deu pt’. O próximo governo vai ter que pegar o dinheiro do “seguro”, que nada mais é do que o dinheiro público, para começar tudo novamente”, lamenta.
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A ex-ministra, que teve participação relevante em eventos como o Acordo de Paris, em 2015; o Acordo da Biodiversidade em Nagoya, em 2010; e foi responsável pela aprovação do Código Florestal e do Cadastro Ambiental Rural (CAR), hoje trabalha como consultora ao redor do mundo. Nesta conversa com o #Colabora, de quase duas horas, interrompida brevemente pelo recenseador do IBGE, ela falou sobre democracia, agronegócio, crise climática e até picanha e caipirinha. Confira os melhores momentos:
#Colabora – O que mudou do ponto de vista ambiental no Brasil e no mundo desde a sua saída do ministério?
Izabella Teixeira – Obviamente, tivemos muitos retrocessos, mas tivemos alguns avanços também. O lado bom da história é que o meio ambiente ganhou mais importância na perspectiva econômica e houve um engajamento muito maior da sociedade em torno do tema. Temos os movimentos dos jovens indígenas, a questão das mulheres, e é muito interessante como essas agendas acabam se misturando. Ela ganhou novos contornos, especialmente após o Acordo de Paris.
Por outro lado, houve uma destruição sem precedentes das políticas ambientais construídas no Brasil desde o início da Nova República. Hoje, essa é uma agenda que deixa o Brasil menor internacionalmente, por conta dos níveis de desmatamento, da proximidade com o crime. Porque não e só uma questão de destruir o que estava pronto, é que não há competência para colocar nada novo no lugar. Esse governo é muito incompetente nas suas propostas.
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Veja o que já enviamos#Colabora – Ou seja, o plano do ex-ministro Ricardo Salles, de “passar a boiada e mudar as regras enquanto a mídia estivesse ocupada com a covid-29”, deu certo?
Izabella Teixeira – Deu certo sim, infelizmente. E as pessoas não têm ainda a dimensão do tamanho do estrago. O desmatamento na Amazônia é só a ponta do iceberg. O Bolsonaro causou dois grandes maus para a área ambiental. O primeiro foi essa agenda do retrocesso, expressa nos recordes de desmatamento e no fim dos espaços da sociedade civil, que foram liquidados. O segundo é a visão completamente equivocada sobre soberania e o papel do Brasil no debate internacional. Ele tira o Brasil da perspectiva contemporânea da agenda ambiental. Na época do Acordo de Paris o desmatamento representava 15% das emissões brasileiras, hoje representa mais de 40%. Essa é a dimensão do retrocesso. Enquanto isso, nesse mesmo período, houve uma aceleração mundial no debate e nas ações contra a crise climática. É inegável que a agenda climática hoje pauta o mundo. A disputa de poder no planeta passa por isso. E o Bolsonaro tira esse futuro da gente. Ele não impõe apenas uma agenda do passado, ele tira o futuro. O Brasil virou um ator secundário, marginal. Simplificando muito, é como se um Fusca 66 tivesse sido atropelado por uma carreta. A área ambiental do governo sofreu perda total. Como dizem os jovens hoje: “deu pt”. O próximo governo vai ter que pegar o dinheiro do “seguro”, que nada mais é do que o dinheiro público, para começar tudo novamente.
#Colabora – Na prática, o que isso representa? Qual o tamanho do desafio do futuro ministro do Meio Ambiente?
Izabella Teixeira – Isso vai depender muito de como o novo governo vai tratar as questões ambientais e as questões climáticas. Na minha época a gente tratava isso tudo junto, hoje já existe uma tendência para separar a política ambiental da questão climática. Teremos um ministério do Meio Ambiente e da Amazônia Legal? Como ficará a questão indígena? Como ficam o Código Florestal e o Cadastro Ambiental Rural? Tudo isso precisa ser resolvido porque foi muito desarrumado. Um dos maiores desafios do novo ministro é enfrentar a questão do uso da terra no Brasil, os impactos na segurança hídrica, os impactos na segurança climática etc. Precisamos ter soluções baseadas na natureza. Vai ser preciso rever todos os modelos de gestão. O novo ministro deve ter como meta, sem dúvida, entregar o desmatamento zero nas áreas federais, terras indígenas e zonas de fronteira. A Amazônia não pode mais ser vista como algo à parte, ela precisa se integrar com o Brasil.
#Colabora – Você não acha que essa discussão ambiental ainda é muito elitista? Como explicar para a Dona Maria, por exemplo, que um aumento de 2ºC na temperatura do planeta é algo gravíssimo?
Izabella Teixeira – Vamos imaginar que essa nossa Dona Maria seja uma moradora do Vidigal. Ela sente e sabe que o mundo está mudando. A pandemia foi um ótimo gatilho para isso. Ela está vendo as chuvas mais frequentes, sabe que quando chove intensamente os seus parentes e amigos correm risco de morrer. O frio está mais frequente… “Isso é a tal da mudança climática, doutora”, eu já ouvi isso na rua. A crise climática está no dia a dia das pessoas, não é só a Amazônia. Essa é uma primeira coisa. A segunda é o custo de vida. A inflação dos alimentos associada ao clima é cada vez mais presente. E isso a Dona Maria e o seu Antônio entendem claramente. E aí é preciso explicar que ela tem alternativas com a agricultura urbana. Na Ásia, por exemplo, isso é mais do que uma tendência, é uma realidade. E a terceira questão, muito clara, é a da saúde. Quando chove menos e a poluição está mais presente, os filhos ficam mais doentes. A mulher, principalmente, entende isso rapidamente. Se o filho tem febre de 38 graus ela sabe que é grave. O planeta está com febre. Ou seja, são três pilares: o risco de cheias, chuvas fortes e desabamentos; o impacto no preço da comida e a saúde dos filhos e parentes. E isso vale para o Vidigal e para o Leblon. Se a turma do Leblon acha que está livre dos efeitos da crise climática está muito enganada. O inverno no Leblon é quase glacial, mas será muito mais úmido também.
#Colabora – Na recente entrevista para o Jornal Nacional, o ex-presidente Lula disse que parte do agronegócio não vota nele por conta do combate ao desmatamento. O agronegócio e o meio ambiente não deveriam andar juntos?
Izabella Teixeira – O agronegócio enquanto business, mercado, tem várias clivagens, várias ramificações. Tem uma parte que entende que o meio ambiente é um ativo para os próximos 40 anos e tem uma outra parte, que o Bolsonaro capturou, que cria uma falsa disputa entre meio ambiente e agricultura. Quando, na verdade, eles são e precisam ser convergentes. Na minha época de ministra essa divergência ficou muito clara na discussão do Código Florestal. A agricultura, na verdade, nunca cumpriu o Código Florestal. Isso passa também por toda essa disputa em torno dos agrotóxicos. Mas, apesar disso, é preciso olhar para o agronegócio com as suas muitas diferenças. A moratória da soja é um exemplo de sucesso e continua sendo até hoje. O que não significa que todos os produtores de soja tenham uma postura correta em relação ao meio ambiente. Não têm. Por outro lado, a área ambiental sempre teve muita desconfiança da agricultura e, muitas vezes, dificulta os acordos e as aproximações. Na discussão do Código Florestal, quem rompeu o acordo político costurado no Congresso foram os ambientalistas. O que foi um erro. Ou seja, além da fragmentação do agronegócio nós temos as fragmentações entre os ambientalistas, os chamados 50 tons de verde. No fundo, essas divergências acabam sendo uma enorme perda de tempo e de espaço no mercado e na geopolítica internacional.
#Colabora – Por falar em divergências, como é possível garantir a picanha e a cervejinha do brasileiro, que o Lula tanto promete, sem desmatar a Amazônia?
Izabella Teixeira – Essa é uma pergunta ótima. Vamos lá, 75% da carne produzida no Brasil são consumidas pelos brasileiros. E, de toda a produção de carne do Brasil, 35% estão na Amazônia. Ou seja, é perfeitamente possível e desejável que o nosso churrasco e a nossa caipirinha tenham selos de rastreabilidade. Precisa ficar claro, para todos, que a picanha que eu consumo não tem origem em áreas desmatadas, a cana de açúcar da cachaça também não, e que o limão vem de uma produção orgânica da agricultura familiar. Imagina que legal poder dizer que a minha caipirinha é de baixo carbono. Veja como as pessoas tiram fotografias erradas. Eu deveria estar lutando pela rastreabilidade para valorizar o meu produto. E não pensar que é algo negativo. É possível mostrar que grande parte dos produtores não só não está desmatando como já recuperou as áreas degradadas. Eu gostaria de chegar no mercado e comprar a carne com o selo “Sem Desmatamento”. Alguém pode perguntar: De onde você é? Eu sou do Brasil que tem a Amazônia, eu sou do país que tem churrasco sem desmatamento, sem trabalho escravo e caipirinha de baixo carbono. Não tem marketing melhor no século XXI.
#Colabora – Aquele grupo de ex-ministros do meio ambiente que se juntou para criticar as políticas do governo Bolsonaro continua existindo? Vocês se encontram?
Izabella Teixeira – Existe sim. Temos um grupo no WhatsApp onde a gente fala muito sobre desmatamento, sobre o cenário internacional. Há uma grande preocupação de qualificar esse diálogo com os outros países e uma preocupação maior ainda com o Congresso. Nós achamos que o parlamento brasileiro precisa aprender a conversar melhor com os parlamentares estrangeiros e vice-versa. Eu falei sobre isso com o presidente do Senado.
#Colabora – E o que acontece se o Bolsonaro for reeleito?
Izabella Teixeira – O que você espera que eu responda? Se o Bolsonaro for eleito acho que a gente desembarca do mundo. Acabou. Mas o pior é a erosão da democracia. O governo Bolsonaro não é um governo conservador, é um governo de extrema-direita, que não tem nenhum interesse na agenda ambiental. O Brasil pode continuar vendendo para a China, para a Índia, por mais 4 ou 5 anos, mas os prejuízos, no médio e longo prazo, serão enormes. E quem vai pagar essa conta é o povo brasileiro. O Brasil estará condenado a ser um exportador de commodities no modelo dos anos 1990 em pleno século XXI.
#Colabora – E se o Lula for eleito? Alguma chance de você voltar a ser ministra?
Izabella Teixeira – Não tenho nenhum interesse nisso, acho que o momento é da nova geração. Mas antes disso, o Lula tem que ganhar a eleição. Estou pronta para ajudar no que for preciso, o trabalho de reconstrução será descomunal, mas chegou a hora da nova geração. A área ambiental hoje virou algo muito chique. O meio ambiente atualmente tem muito mais a ver com poder político e poder econômico. Não é mais só abraçar árvore. Nós precisamos aprender a explicar para a Dona Maria e para o seu Antônio que o mundo mudou, que tem muito mais a ver com gestão de risco. E a pandemia e o desmatamento nos ajudam muito nessa discussão. A minha geração vibra com o Caetano fazendo shows aos 80 anos, com razão. Mas tem também o prêmio que a Anitta acabou de ganhar, foi lindo. Eu fico olhando e não entendo nada, mas acho simplesmente genial. Voltando à imagem do carro que sofreu perda total, o “novo carro” da área ambiental terá direção hidráulica, câmbio automático e muito mais tecnologia. Por isso precisa de um novo motorista. E eu espero que ele ou ela tenha sucesso e nos ajude a conseguir um churrasco certificado, sem desmatamento, e uma caipirinha de baixo carbono.