Uma história da intolerância em dez imagens

Da Idade Moderna aos atentados de Paris, as diversas formas e sutilezas do fundamentalismo

Por Adriana Barsotti | ArtigoODS 12 • Publicada em 15 de novembro de 2015 - 10:00 • Atualizada em 16 de abril de 2017 - 15:34

Prédio da prefeitura de Atenas iluminado em solidariedade às vítimas dos atentados em Paris

1 – Manchetes dos jornais franceses

Capa do jornal francês L`Équipe no dia 14/11/2015
Capa do jornal francês L`Équipe no dia 14/11/2015

“Horror”, “A guerra em plena Paris”, “Carnificina em Paris” foram algumas das manchetes dos jornais franceses de ontem, no dia seguinte aos ataques terroristas que deixaram 129 mortos na capital francesa. Nossa reação é de espanto e não poderia ser diferente. O ressurgimento de movimentos separatistas e fundamentalistas, como o Estado Islâmico, que assumiu a autoria pelos atentados, não estava previsto no script da nossa sociedade moderna, construída a partir dos ideais do Iluminismo e da Revolução Francesa. Nas imagens da tragédia transmitidas pelo mundo todo pela TV e pela internet, nenhum resquício do racionalismo do “Século das Luzes”. Nada de liberdade, igualdade e fraternidade.

2 – A Guerra Fria e os projetos totalizantes

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Muro de Berlim

O capitalismo, sistema econômico dominante que se estabeleceu a partir da ascensão da burguesia no início da Idade Moderna, sempre pretendeu ser global, totalizante, não local ou particular. Assim como o comunismo, a alternativa ao capitalismo que alimentou utopias no século XX. O marxismo, tal qual o liberalismo hoje predominante, era um projeto de poder universal, acima das nações ou de particularidades. Que o diga a Guerra Fria, que dividiu o mundo em dois polos opostos. Diferenças foram apagadas sob a força dos dois regimes. Mas ambos os projetos de poder falharam. Suas sequelas estão espalhadas e agora nos aterrorizam. Literalmente.

3 – Black é cool

Moda rastafári

Movimentos separatistas e fundamentalistas surgem como uma reação à globalização, reforçando tradições e regionalismos. À primeira vista, parece que tudo deu certo na aldeia global. “Se quisermos provar as cozinhas exóticas de outras culturas em um único lugar, devemos ir comer em Manhattan, Paris ou Londres, e não em Calcutá ou em Nova Delhi”, observa o sociólogo Stuart Hall no livro “A identidade cultural na pós-modernidade”. Os mesmos sabores de hambúrgueres são customizados pelo Mc Donald´s em diferentes países do Oriente e do Ocidente, sob os nomes de Mc Arabia, Mc Oriental, Mc Turco, Greek Mac e Mc Kebab. Costumes locais são incorporados e respeitados nos ingredientes destes sanduíches, mas consumidos no melhor estilo fast food exportado pela multinacional. O estilo black – com o rastafári e os turbantes – deixa de ser característico de grupos étnicos específicos e é homogeneizado, despolitizado e transformado em bem de consumo cool.

4 – Os “não-lugares”

Shopping em Londres

Nossas identidades, antes firmadas a partir de laços geográficos, hoje são moldadas pelo mercado de consumo global. Os hábitos culturais contemporâneos orbitam muito mais em torno das mensagens que recebemos pela TV e pela internet do que da nossa relação com o território. Vínculos invisíveis com os meios de comunicação que nos conectam ao resto do planeta, encurtando as distâncias, substituem os vínculos territoriais. Nas grandes metrópoles, a vida social está migrando cada vez mais dos centros históricos para os shoppings, ou seja, dos espaços historicizados para os desterritorializados, constata o antropólogo mexicano Néstor Canclini no livro “Consumidores e cidadãos”. Shoppings, aeroportos, quartos de hotéis e cadeias de supermercado são iguais em qualquer canto do mundo, transformando-se em “não lugares”, como o antropólogo Marc Augé os definiu. Nesses não-lugares, cartões de crédito e passaportes é que definem nossa identidade.

5 – As migrações

Refugiado tenta entrar na Europa

Estaríamos então fadados a viver cada vez mais num mundo sem fronteiras e homogêneo que solapa as identidades nacionais e locais? Hall acredita que esse pensamento é simplista. Em reação ao movimento de globalização, identidades locais se reforçam numa posição defensiva. E isso tem acontecido tanto por parte dos grandes centros de poder, que exportam a cultura global, quanto pelas minorias que se sentem ameaçadas. Para escapar da pobreza, fome, guerras civis e de regimes opressores, pessoas menos favorecidas de todo o planeta migraram, e continuam migrando, para os países-símbolo da globalização, acreditando na mensagem do capitalismo global.

6 – O fundamentalismo europeu

Patrulha na barreira entre Hungria e Sérvia

E o que essas minorias têm encontrado quando chegam a esses países? O “parquinho de diversões” fechado. Imagens de TV transmitem cenas de resistência e intolerância. É ao que se assiste em países europeus como a Hungria, que está construindo um muro de quatro metros de altura que deverá prolongar-se pelos 175 quilômetros da fronteira com a Sérvia, para conter o fluxo de refugiados. “No Reino Unido, a atitude defensiva produziu uma “inglesidade” reformada, um “inglesismo” mesquinho e agressivo e um recuo ao absolutismo étnico, numa tentativa de escorar a nação e reconstruir uma identidade una”, constata Hall.

7 – Salman Rushdie, o homem “traduzido”

Salman Rushdie

Em resposta ao racismo cultural e à exclusão, comunidades excluídas têm seguido dois caminhos, aponta o sociólogo: a busca pela identificação com suas origens, contribuindo para a construção de fortes contra-etnias (como exemplo, Hall cita a juventude afro-caribenha, com a exaltação de sua origem e herança africana) ou o tradicionalismo cultural, a ortodoxia religiosa e o separatismo defendidos por setores mais extremistas da comunidade islâmica. O primeiro caminho seria o da “tradução”, conforme aponta outro sociólogo, Kevin Robins. O segundo seria o da “tradição”. As comunidades que são “traduzidas” são aquelas que retomam seus valores de origem, convivendo lado a lado com a cultura globalizada, cientes dos contextos históricos e políticos em que vivem. Essas pessoas retêm fortes vínculos com seus lugares de origem, mas não mantêm uma ilusão de retorno ao passado. Elas negociam com as novas culturas em que estão inseridas sem serem assimiladas por elas. Tornam-se “culturas híbridas”, conforme conceitua Hall. Para ele, Salman Rushdie, autor de “Versos satânicos”, livro que pôs a cabeça do escritor a prêmio no Irã, é um exemplo disso. Na obra, ele escreve sobre o profeta Maomé e o Islã, porém com a consciência de “homem traduzido e exilado” (vivendo na Inglaterra).

8 – Os movimentos separatistas no leste europeu

Fila para votar no referendo que decidiria o destino da Ucrânia

Já as comunidades que perseguem a “tradição” acreditam que podem recuperar uma essência perdida. Como exemplos, Hall cita o ressurgimento do nacionalismo na Europa Oriental e o crescimento do fundamentalismo. Com o colapso da antiga União Soviética, movimentos separatistas alimentados tanto por ideias de pureza racial quanto de ortodoxia religiosa recrudesceram, como na Estônia, Lituânia e, mais recentemente, na Ucrânia. Mas os movimentos mais emblemáticos nesta direção são de islâmicos fundamentalistas, que buscam criar estados religiosos alinhados com as leis do Alcorão.

9 – Reza Pahlavi e o fundamentalismo no Irã

Reza Pahlavi

Analistas se dividem ao analisar o fenômeno, expõe Hall. Alguns enxergam nesses movimentos uma reação à globalização, calcada em valores ocidentais. Exemplo disso seria o fundamentalismo iraniano, uma resposta direta ao Xá Reza Pahlavi, que tentou adotar modelos e valores ocidentais naquele país nos anos 1970, com o apoio dos EUA e Reino Unido. Com sua queda, em 1979, foi estabelecida no Irã uma república islâmica teocrática.

10 – Grupos extremistas

Soldados do Estado Islâmico

Outros analistas acreditam que o fundamentalismo se relaciona ao fato de países que o abraçam terem sido deixados fora da globalização (o fundamentalismo é mais forte nos estados islâmicos mais pobres). Há ainda aqueles que atribuem tal ortodoxia ao fracasso dos estados islâmicos de construírem líderes modernos e partidos seculares, ou seja, estados laicos. “Em condições de extrema pobreza e relativo subdesenvolvimento econômico, a restauração da fé islâmica é uma poderosa força política e ideológica mobilizadora e unificadora”, pontua Hall. Sim, foi só à primeira vista que a globalização deu certo. Suas feridas estão por trás das cenas de horror em Paris.

 

 

Adriana Barsotti

É jornalista com experiência nas redações de O Estado de S.Paulo, IstoÉ e O Globo, onde ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo com a série de reportagens “A história secreta da Guerrilha do Araguaia”. Pelo #Colabora, foi vencedora do Prêmio Vladimir Herzog, em 2019, na categoria multimídia, com a série "Sem Direitos: o rosto da exclusão social no Brasil", em um pool jornalístico com a Amazônia Real e a Ponte Jornalismo. Professora Adjunta do Instituto de Arte e Comunicação Social (Iacs), na Universidade Federal Fluminense (UFF), é autora dos livros “Jornalista em mutação: do cão de guarda ao mobilizador de audiência” e "Uma história da primeira página: do grito no papel ao silêncio no jornalismo em rede". É colaboradora no #Colabora e acredita (muito!) no futuro da profissão.

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