
Quando o Arsenal anunciou um patrocínio de Ruanda estimado em 30 milhões de libras (cerca de R$ 145 milhões) para a temporada 2018-19 e mais outras duas, muita gente se espantou. Afinal, como pode um dos países mais pobres do mundo, encravado na África Central, patrocinar um dos clubes mais ricos da milionária Premier League inglesa? O Visit Rwanda escrito na manga esquerda da camisa do Arsenal é apenas o lado mais visível de uma ousada jogada de marketing. Nos últimos anos, o montanhoso país africano tem apostado alto na promoção turística do país.
O time de Londres não foi escolhido por acaso. Presidente do país desde o ano 2000, Paul Kagame é torcedor declarado do Arsenal, o que só faz aumentar as críticas ao patrocínio por parte de quem vê um presidente autocrata investindo o dinheiro de um país pobre em uma paixão pessoal em vez de em infraestrutura para a população. Já a torcida a favor avalia que a aposta pode dar certo e reverter em dividendos locais. É a defesa dos representantes do governo de Ruanda, que esperam um aumento no número de visitantes internacionais atraídos principalmente pela possibilidade de ver de perto os gorilas-das-montanhas.
[g1_quote author_name=” Clare Akamanki” author_description=”diretora executiva do Rwanda Development Board” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Nosso objetivo é não permanecer um país pobre. Estamos fazendo a escolha de não recebermos ajuda internacional para sempre”, defendeu Clare Akamanki,
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Veja o que já enviamosRuanda é a terra dos hutis e dos tutsis, protagonistas do maior genocídio da história recente, em 1994, no qual quase um milhão de pessoas morreram. Vários documentários e filmes mostram episódios da sangrenta guerra civil. O massacre está também em uma série recente de oito episódios da BBC, “Black earth rising”, lançada mundialmente pela Netflix no final de janeiro. O filme mais famoso ainda é o premiado “Hotel Ruanda”, de 2004, dirigido por Terry George. Vinte e cinco anos depois da tragédia, o Hôtel des Milles Collines, abrigo para mais de mil refugiados durante o genocídio e inspiração para o filme, é um dos estabelecimentos de luxo de Kigali. A capital é considerada uma das mais seguras da África. Ainda assim, Ruanda parece um destino turístico improvável, com quase 40% da população de 12 milhões de habitantes vivendo abaixo da linha de pobreza, segundo as Nações Unidas.
A porcentagem de pobreza extrema vem caindo ao longo deste século. O governo diz que Ruanda investe em promoção e infraestrutura turística para reforçar esta curva descendente e deixar no passado a imagem chocante do genocídio. Alguns países, entre eles o Reino Unido, ainda apoiam Ruanda financeiramente, o que ajudou a aumentar a polêmica causada pelo patrocínio ao Arsenal. O Departamento para o Desenvolvimento Internacional britânico veio a público esclarecer que Ruanda presta contas do dinheiro que recebe anualmente e que é usado em programas específicos de educação e infraestrutura.
Dados do Rwanda Development Board (RDB), órgão do governo responsável pelo turismo, mostram que esta é hoje a principal fonte de receita externa do país, gerando US$ 480 milhões em 2017. O objetivo é dobrar o valor até 2024. O governo diz que é este dinheiro que está sendo investido na promoção turística do país, incluindo o patrocínio ao Arsenal.
“Nosso objetivo é não permanecer um país pobre. Estamos fazendo a escolha de não recebermos ajuda internacional para sempre”, defendeu Clare Akamanki, diretora executiva do RDB à BBC. “A renda per capita nos últimos 15 anos passou de US$ 200 para US$ 700. Temos que ser pró-ativos na maneira como vamos nos apresentar ao mundo”.
Turismo pode não ser a primeira coisa que vem à mente quando se pensa em Ruanda, mas tem atraído ao país um tipo muito específico de viajante. É o turista de alto padrão, que pode pagar US$ 1.500 (cerca de R$ 6 mil) para ter a oportunidade de chegar perto de um gorila-das-montanhas. Muitos moradores da região trabalham com o ecoturismo. O alto custo das trilhas e da hospedagem no Volcanoes National Park é uma aposta na rentável atividade de menor impacto ambiental e de valorização das comunidades locais.
De espécie ameaçada os gorilas-das-montanhas passaram a ser o símbolo do renascimento de Ruanda. Os mais velhos talvez se lembrem do filme “A montanha dos gorilas” (1988), de Michael Apted, no qual Sigourney Weaver faz o papel da antropóloga americana Dian Fossey (1932-1985). É destes primatas que estamos falando. A população aumentou nos últimos anos. Hoje há cerca de mil gorilas-das-montanhas vivendo nas Montanhas Virunga, tríplice fronteira de Ruanda, Uganda e República Democrática do Congo, que podem ser vistos em trilhas a partir dos três países. Ruanda se firma como a melhor experiência turística para o mercado de luxo, e a mais sustentável. Visitantes são reunidos em grupos de no máximo oito pessoas (e somente 80 pessoas por dia são admitidas nas trilhas) para fazer o percurso montanhoso. Ainda que a caminhada possa durar um dia inteiro, uma vez que se encontre uma das famílias de gorilas da região o tempo de permanência no local é limitado a uma hora.
Novos hotéis de luxo investem em exclusividade
Para se promover, o país aposta no macro, como o patrocínio do Arsenal, que torna Ruanda um nome familiar para que nem sabe identificar o país no mapa, e também no micro. Em dezembro passado, por exemplo, Ruanda foi um dos principais patrocinadores da maior feira de viagens de luxo do mundo, a ILTM (International Luxury Travel Market) Cannes. Durante uma semana mais de cinco mil pessoas de cem diferentes países, entre expositores, operadores de turismo e jornalistas, andaram pelo Palais de Festival (o mesmo endereço do Festival de Cinema de Cannes) com um crachá com o nome do Visit Rwanda em destaque.
Claudine Rubagumya, da área de marketing do turismo do RDB, abriu a série de conferências de imprensa (onde a maioria dos nomes era de representantes de grupos de hotelaria de luxo):
“Temos quatro parques nacionais. Leões e rinocerontes foram reintroduzidos no país. Além dos gorilas-das-montanhas e de outros primatas, Ruanda voltou a ser endereço dos Big Five (búfalo, elefante, leão, leopardo e rinoceronte, os cinco animais mais difíceis de serem encontrados), que podem ser vistos em safáris no Akagera National Park”, destacou.
Hotéis de luxo são parte importante deste novo cenário de Ruanda e do projeto do país para atrair mais visitantes de alta renda. Hoje o site do Visit Rwanda lista uma dezena de acomodações luxuosas, nos parques nacionais e na capital. Neste início de ano, um novo hotel de Kigali ganhou o reconhecimento de “best game-changer”, algo como “o hotel que muda o jogo”, da revista americana Jetsetter, voltada para viagens de luxo. É o Retreat by Heaven, propriedade independente de um casal de americanos expatriados. Inaugurado em meados de 2018, o hotel boutique tem apenas 11 quartos e uma equipe dedicada a organizar programas de imersão cultural. O jogo começou a ficar mais sério há menos de dois anos, quando foi inaugurado o Bisate Lodge, da Wilderness Safaris. Esta é uma das principais empresas de ecoturismo da África, e suas ações ambientais e sociais podem ser conferidas no seu site.
O Bisate fica no Volcanoes National Park, contribui para o reflorestamento local, usa energia solar e tem apenas seis suítes de 90 metros quadrados cada. Na alta temporada (a estação seca, de junho a setembro), diárias com refeições custam US$ 1.654 por pessoa em quarto duplo (mais a taxa de US$ 1.500 para ver os gorilas-das-montanhas). Entre maio e junho deste ano a Wilderness Safari abre seu segundo hotel no país, o Magashi, em Akagera, o parque dos Big Five na fronteira com a Tanzânia. O lodge não usará plástico e terá apenas seis acomodações.
Ano passado foi a vez do luxuoso One&Only Resorts, rede administrada por um grupo de Dubai com oito propriedades pelo mundo e outras a caminho, abrir seu primeiro hotel em Ruanda. O Nyungwe, com 22 quartos e diárias a partir de US$ 899, está instalado ao lado de plantações de chá neste outro parque nacional, com cachoeiras, chimpanzés e outros primatas. Para julho deste ano está previsto o segundo One&Only em Ruanda, o Gorilla’s Nest.
Na mesma região dos gorilas-das-montanhas, também no próximo semestre, deve ser aberto o Singita Kwitonda, outro lodge de luxo reconhecido pela preservação ambiental na África. A exclusividade continua sendo importante: o lodge terá apenas oito suítes e uma villa com quatro quartos, que estão sendo construídos por cerca de 200 trabalhadores das comunidades locais. Quando estiver pronto o lodge deve empregar outras 70 pessoas da região. Na alta temporada, as diárias começarão em US$ 1.750 por pessoa em quarto duplo.
Ainda é cedo para saber se os investimentos e a promoção turística vão de fato movimentar a economia e melhorar a vida da população local. Para quem acredita na importância econômica do turismo, é um dos casos mais interessantes para se acompanhar.
Outras curiosidades sobre Ruanda
Idioma: as línguas oficiais são inglês, francês e kinyarwanda.
Conexão: há sinal de telefone e redes de fibra ótica em quase todo o território.
Sacolas plásticas: não são permitidas no país.
Saúde: Nem pense em chegar perto de primatas se estiver resfriado. Você será barrado no parque. Para ver gorilas-das-montanhas, além de dinheiro, é necessário boa forma física. As trilhas montanhosas ficam entre 2.500 e 4 mil metros de altitude e podem durar horas.
Cores: Não vá ao Akagera National Park, o parque dos safáris, de azul. A cor atrai as moscas tsé-tsé nesta que é a área mais quente do país (temperaturas médias em torno de 30ºC).