ODS 1
O teste do textão lacrador
Os incríveis efeitos de uma volta no quarteirão sobre a epidemia de certezas
Você abre o Facebook, a revista, o jornal e lá está ele, farol da inteligência no século XXl: o textão lacrador. Não tem problema no mundo que não possa ser explicado ou solucionado por um textão lacrador. Graças a ele as situações mais complexas, aquelas com mais nuances do que pôr de sol na Polinésia, conseguem ter a resposta espremida numa tela de computador ou numa coluna impressa.
O que antigamente precisaria de anos de estudo, dezenas de livros, mestrados, doutorados etc, o textão lacrador encaixa em meia duzia de parágrafos e naquela forma tão simples que serve tanto para crianças de oito anos como para sequelados de oitenta: um herói, que normalmente é o umbigo do autor ou quem pensa como ele e um vilão, que é qualquer pessoa que pensa diferente.
[g1_quote author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”solid” template=”01″]Entre na padaria. O dono, que está preocupado com o aumento da farinha e a diminuição da clientela, o que ele pensa? E a atendente, que ganha salário mínimo e está com o aluguel atrasado? Na loja ao lado, aquele cliente negro que está sendo vigiado de perto pelo segurança, concorda? E o outro cliente, branco, que acha que as cotas para o filho do cliente negro vão tirar a vaga do filho dele na universidade? Eles vão prestar atenção ao seu textão lacrador?
Gostando do conteúdo? Nossas notícias também podem chegar no seu e-mail.
Veja o que já enviamosPara evitar essa epidemia de ideias geniais para toda e qualquer questão, o candidato a professor de Deus deveria passar por um teste antes de postá-lo: a volta no quarteirão antes do parágrafo inicial. Funcionaria como o psicotécnico para a carteira de motorista.
Sabe aquele ideia brilhante que seus amigos aplaudiram? Aquele posicionamento fundamental que sua mãe adorou? Aquele insight iluminado que o espelho amou de paixão?
Saia da tela e pegue o elevador até o térreo. Olhe para o porteiro. O que ele acha da sua solução? Será que ele concorda? Vai melhorar ou piorar a vida dele? E o vizinho do 601, o general da reserva? Ele entende o seu posicionamento? O professor universitário do 302, fã do Lula, o que acha do insight? E o vizinho da cobertura, o que troca de carro todo ano e é fã do Dória? Ele aprova? Sim? Não? Talvez?
Vá para a rua.
O mendigo da esquina. O seu texto, o seu textão lacrador, ele vai mudar a vida desse mendigo? Vai tirá-lo da rua? Ele ao menos vai ficar sabendo da sua ideia brilhante? E a senhora que mora em frente e está dando esmola pra ele? Ela concorda? Discorda?
Entre na padaria. O dono, que está preocupado com o aumento da farinha e a diminuição da clientela, o que ele pensa? E a atendente, que ganha salário mínimo e está com o aluguel atrasado? Na loja ao lado, aquele cliente negro que está sendo vigiado de perto pelo segurança, concorda? E o outro cliente, branco, que acha que as cotas para o filho do cliente negro vão tirar a vaga do filho dele na universidade? Eles vão prestar atenção ao seu textão lacrador?
Continue andando
Aqueles dois amigos de meia idade que moram juntos mas que não saem do armário para não ter problemas, o que acham? E o casal de moças com cabelo azul andando de mãos dadas? E o casal que tapa os olhos dos filhos quando elas passam? Todos eles vão dar like?
O velhinho da outra esquina, um dos primeiros moradores da rua, o que dirá do que você quer escrever? E o neto dele? E o lixeiro que está passando agora, varrendo toda sujeira que as pessoas tem preguiça de jogar na lata? Pensou neles ao escrever? Eles vão pensar no que você escreveu?
Deu a volta no quarteirão? Pensou em cada pessoa que você encontrou?
Agora faça uma conta, por baixo mesmo, de quantos quarteirões têm na sua cidade.
Pode voltar para a tela do computador.
Relacionadas
Leo Aversa fotografa profissionalmente desde 1988, tendo ganho alguns prêmios e perdido vários outros. É formado em jornalismo pela ECO/UFRJ mas não faz ideia de onde guardou o diploma. Sua especialidade em fotografia é o retrato, onde pode exercer seu particular talento como domador de leões e encantador de serpentes, mas também gosta de fotografar viagens, especialmente lugares exóticos e perigosos como Somália, Coreia do Norte e Beto Carrero World. É tricolor, hipocondríaco e pai do Martín.