O teste do textão lacrador

Os incríveis efeitos de uma volta no quarteirão sobre a epidemia de certezas

Por Leo Aversa | ODS 12ODS 9 • Publicada em 22 de dezembro de 2017 - 09:04 • Atualizada em 22 de dezembro de 2017 - 12:30

Para evitar a epidemia de ideias geniais para toda e qualquer questão, o candidato a professor deveria passar por um teste antes de postá-lo: a volta no quarteirão. Foto Eugenio Marongiu / Cultura Creative
Para evitar a epidemia de ideias geniais para toda e qualquer questão, o candidato a professor deveria passar por um teste antes de postá-lo: a volta no quarteirão. Foto Eugenio Marongiu / Cultura Creative
Para evitar a epidemia de ideias geniais para toda e qualquer questão, o candidato a professor deveria passar por um teste antes de postá-lo: a volta no quarteirão. Foto Eugenio Marongiu / Cultura Creative

Você abre o Facebook, a revista, o jornal e lá está ele, farol da inteligência no século XXl: o textão lacrador. Não tem problema no mundo que não possa ser explicado ou solucionado por um textão lacrador. Graças a ele as situações mais complexas, aquelas com mais nuances do que pôr de sol na Polinésia, conseguem ter a resposta espremida numa tela de computador ou numa coluna impressa.

O que antigamente precisaria de anos de estudo, dezenas de livros, mestrados, doutorados etc, o textão lacrador encaixa em meia duzia de parágrafos e naquela forma tão simples que serve tanto para crianças de oito anos como para sequelados de oitenta: um herói, que normalmente é o umbigo do autor ou quem pensa como ele e um vilão, que é qualquer pessoa que pensa diferente.

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Entre na padaria. O dono, que está preocupado com o aumento da farinha e a diminuição da clientela, o que ele pensa? E a atendente, que ganha salário mínimo e está com o aluguel atrasado? Na loja ao lado, aquele cliente negro que está sendo vigiado de perto pelo segurança, concorda? E o outro cliente, branco, que acha que as cotas para o filho do cliente negro vão tirar a vaga do filho dele na universidade? Eles vão prestar atenção ao seu textão lacrador?

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Para evitar essa epidemia de ideias geniais para toda e qualquer questão, o candidato a professor de Deus deveria passar por um teste antes de postá-lo: a volta no quarteirão antes do parágrafo inicial. Funcionaria como o psicotécnico para a carteira de motorista.

Sabe aquele ideia brilhante que seus amigos aplaudiram? Aquele posicionamento fundamental que sua mãe adorou? Aquele insight iluminado que o espelho amou de paixão?

Saia da tela e pegue o elevador até o térreo. Olhe para o porteiro. O que ele acha da sua solução? Será que ele concorda? Vai melhorar ou piorar a vida dele? E o vizinho do 601, o general da reserva? Ele entende o seu posicionamento? O professor universitário do 302, fã do Lula, o que acha do insight? E o vizinho da cobertura, o que troca de carro todo ano e é fã do Dória? Ele aprova? Sim? Não? Talvez?

Vá para a rua.

O mendigo da esquina. O seu texto, o seu textão lacrador, ele vai mudar a vida desse mendigo? Vai tirá-lo da rua? Ele ao menos vai ficar sabendo da sua ideia brilhante? E a senhora que mora em frente e está dando esmola pra ele? Ela concorda? Discorda?

Entre na padaria. O dono, que está preocupado com o aumento da farinha e a diminuição da clientela, o que ele pensa? E a atendente, que ganha salário mínimo e está com o aluguel atrasado? Na loja ao lado, aquele cliente negro que está sendo vigiado de perto pelo segurança, concorda? E o outro cliente, branco, que acha que as cotas para o filho do cliente negro vão tirar a vaga do filho dele na universidade? Eles vão prestar atenção ao seu textão lacrador?

Continue andando

Aqueles dois amigos de meia idade que moram juntos mas que não saem do armário para não ter problemas, o que acham? E o casal de moças com cabelo azul andando de mãos dadas? E o casal que tapa os olhos dos filhos quando elas passam? Todos eles vão dar like?

O velhinho da outra esquina, um dos primeiros moradores da rua, o que dirá do que você quer escrever? E o neto dele? E o lixeiro que está passando agora, varrendo toda sujeira que as pessoas tem preguiça de jogar na lata? Pensou neles ao escrever? Eles vão pensar no que você escreveu?

Deu a volta no quarteirão? Pensou em cada pessoa que você encontrou?

Agora faça uma conta, por baixo mesmo, de quantos quarteirões têm na sua cidade.

Pode voltar para a tela do computador.

Leo Aversa

Leo Aversa fotografa profissionalmente desde 1988, tendo ganho alguns prêmios e perdido vários outros. É formado em jornalismo pela ECO/UFRJ mas não faz ideia de onde guardou o diploma. Sua especialidade em fotografia é o retrato, onde pode exercer seu particular talento como domador de leões e encantador de serpentes, mas também gosta de fotografar viagens, especialmente lugares exóticos e perigosos como Somália, Coreia do Norte e Beto Carrero World. É tricolor, hipocondríaco e pai do Martín.

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