Mães solo são principais vítimas de lei que proíbe pesca comercial no Mato Grosso

Elas representam um terço dos pescadores artesanais e coordenam um quinto das colônias no estado; categoria protesta contra restrições

Por Adriana Amâncio | ODS 12 • Publicada em 27 de outubro de 2023 - 09:12 • Atualizada em 21 de novembro de 2023 - 08:50

Protesto de pescadores às margens do Rio Paraguai contra lei que proíbe pesca em Mato Grosso: mães solo são as mais afetadas na categoria (Foto: Arquivo Pessoal)

Divorciada, há mais de 20 anos, a pescadora Olinda de Alcântara Barbosa, de 57 anos, que mora no bairro Jardim das Oliveiras, município de Cárceres, no Mato Grosso, sustenta a sua casa, a da mãe, idosa, e a da filha e do neto, de apenas oito anos. A renda para todas essas obrigações vem da pesca, único ofício que desempenha desde os 12 anos. “Eu chego no rio às 7h e só saio às 18h30. Muita gente se admira como sou trabalhadora”, afirma, orgulhosa.

A filha da pescadora tem 24 anos, é casada, mas, neste momento, o marido está afastado do trabalho devido a um problema de saúde. Olinda, ligada à Colônia Z- 2 na Bacia do Paraguai, conta que, diariamente, pesca o peixe e leva direto para panela, para servir de alimento para a mãe e a filha. Dependendo do dia, o lucro da pesca pode ficar entre R$ 60 e R$ 100. Com esse dinheiro, ajuda a comprar os medicamentos para a mãe e paga as contas de água e luz da filha. “Se a pesca for mesmo proibida, não sei o que vou fazer. Desde que anunciaram essa lei, tem sido muito sofrido pra gente”, desespera-se.

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Olinda é uma das muitas mães solo que têm na pesca a única fonte de sustento no estado. A presidente da Federação de Pescadores de Mato Grosso, Elza Basto, informa que, na pesca artesanal, elas representam cerca de 30%. As mães solo também estão na gestão de um quinto das 20 colônias do estado. “Tem mulheres que tiram o peixe do rio e levam direto para panela, preparam e botam na boca dos filhos”, explica.

Essas mulheres passam o dia pescando, retornam para a casa, realizam outra jornada no cuidado com a casa e os filhos. Isso acontece por oito meses da estação da pesca, tudo ditado pelo ritmo das águas. Os adolescentes assume o papel de retirar o peixe e trazer para o almoço, aprendendo a prover o alimento desde cedo. Essa lei provoca uma ruptura no modo de vida dessas ribeirinhas

Luciana Ferraz
Bióloga e pesquisadora do Instituto Caracol

Com a entrada em vigor da Lei 12.197/23, que proíbe o transporte do pescado por um período de cinco anos, essa prática para as refeições (levar o peixe direto do rio para o fogão, comum entre muitas pescadoras, estaria proibida. “A lei incide sobre a pesca profissional e sobre a pesca de subsistência. Quem pesca e precisa transportar para comercializar ou pesca e leva o peixe para casa para se alimentar, estará proibido”, explica Claumir Muniz,  professor do Programa de Pós Graduação em Ciências Ambientais da Universidade do Estado do Mato Grosso (Unemat).

Vivendo basicamente com os R$ 600 do Bolsa Família, a pescadora Valquiria Amorim, de 33 anos, conta com o rio para alimentar a si e a filha Amanda Alves Amorim, de 11 anos. Elas moram no bairro 24 de Dezembro, no município de Várzea Grande, banhado pela bacia do Alto Paraguai. “Eu chego no rio às 4h30 da madrugada e de volta, às 10h, já trago peixe para o café da manhã. Depois volto e pesco mais para as outras refeições. A gente come peixe três vezes ao dia. Sem poder pescar, com o dinheiro que eu ganho, não vai dar para comer carne. O jeito é correr pra faxina”, desabafa.

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Valquíria ganha entre R$ 50 e R$ 100, dependendo do tanto de trabalho em cada faxina. “Mas não é seguro [a renda], nem sempre tem faxina”, observa. O pai do filha da pescadora não possui renda regular, ajuda Amanda com R$ 50 ou R$ 100, mas apenas quando aparece um bico, tipo de serviço informal.

A mudança passa a valer a partir do dia 1 de janeiro de 2024. O Movimento Democrático Brasileiro (MDB) entrou com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) contra a lei no STF, com pedido de medida cautelar para suspender seus efeitos. O documento argumenta que a lei “fere a dignidade da pessoa humana, a liberdade do exercício profissional e o pleno exercício dos direitos culturais”, além de alegar ser competência da União legislar sobre normas gerais sobre pesca.

Organizações de defesa dos direitos dos ribeirinhos vão solicitar a habilitação como amicus curiae (expressão em latim utilizada para designar o terceiro que ingressa no processo com a função de fornecer subsídios ao órgão julgador)junto ao Supremo para poder participar do processo. As instituições já estão reunindo informações para subsidiar o Judiciário na análise sobre a constitucionalidade da lei. O relator da ADI no STF, ministro André Mendonça, pediu informações ao governo estadual e à Assembleia Legislativa antes de dar seu voto e levar a ação ao plenário.

Os barramentos feitos por barragens no curso dos rios impedem a reprodução dos peixes. Os estoques também são impactados pelo mau uso do solo, que provoca o assoreamento [acúmulo de área da margem no leito do rio] e também pela utilização dos agrotóxicos nas áreas de planalto

Claumir Muniz
Professor da Unemat

O governo do Mato Grosso oferece uma renda de R$ 1.320 para os pescadores, como compensação para a proibição. O valor, segundo as próprias pescadoras, está bem abaixo do que costumam lucrar com a pesca artesanal e também não é suficiente para manter o sustento das suas famílias. De acordo com a bióloga Luciana Ferraz, doutora em Ecologia e pesquisadora do Instituto Caracol, a renda é válida apenas para pescadores ligados às colônias. “Os pescadores indígenas, que vivem em seus territórios, serão excluídos desta renda”, frisa.

A lei foi aprovada sob a justificativa da necessidade de manter os estoques pesqueiros que estão muito baixos. O professor Claumir, que acompanha esses estoques no estado, afirma que os seus estudos apontam que “ainda há suporte para a pesca”. Segundo ele, de fato, o Pantanal vem perdendo água e teve a quantidade de peixes reduzida, mas por razões que não envolvem a pesca artesanal. “Os barramentos feitos por barragens no curso dos rios impedem a reprodução dos peixes. Os estoques também são impactados pelo mau uso do solo, que provoca o assoreamento [acúmulo de área da margem no leito do rio] e também pela utilização dos agrotóxicos nas áreas de planalto, em tempos de chuva. Essas substâncias são carreadas para o leito do rio, levando a morte de vários alevinos [peixes recém nascidos]”, explica.

A pescadora Olinda Barbosa sustenta três casas com seu ofício: “Se a pesca for mesmo proibida, não sei o que vou fazer. Desde que anunciaram essa lei, tem sido muito sofrido pra gente” (Foto: Arquivo Pessoal)
A pescadora Olinda Barbosa sustenta três casas com seu ofício: “Se a pesca for mesmo proibida, não sei o que vou fazer. Desde que anunciaram essa lei, tem sido muito sofrido pra gente” (Foto: Arquivo Pessoal)

Luciana Ferraz considera a moratória da pesca uma medida drástica. “Não há estudos suficientes que mostrem que os estoques estão em baixa. Há medidas que podem viabilizar essa pesca tais como o ordenamento pesqueiro, ou seja, definir territórios de pesca, o manejo da pesca”, orienta.

A pesquisadora também observa que a proibição da pesca interfere no modo de vida das ribeirinhas. “Essas mulheres passam o dia pescando, retornam para a casa, realizam outra jornada no cuidado com a casa e os filhos. Isso acontece por oito meses da estação da pesca, tudo ditado pelo ritmo das águas. Os adolescentes assume o papel de retirar o peixe e trazer para o almoço, aprendendo a prover o alimento desde cedo. Essa lei provoca uma ruptura no modo de vida dessas ribeirinhas”, frisa.

Presidente da Colônia de Pescadores Z16, no município de Sinop, banhado pela Bacia Amazonas, Julita Duleba destaca que a lei já está trazendo impactos na vida dos pescadores. “Tem pescador dando entrada nos documentos para se aposentar”, informa. Ela lembra que “a piracema, período de reprodução dos peixes, começou em dois de outubro, então, a pesca já está proibida”, pontua.

Julita reforça o impacto das hidrelétricas na oferta dos peixes. “Aqui não falta peixe. Mas vale ressaltar, sempre abaixo das usinas hidrelétricas, das grandes, são quatro! Eles costumam se acumular para baixo delas, porque não conseguem subir [para se reproduzir]”, explica. Para que os peixes pudessem subir para se reproduzir, “seria necessário que as barragens fossem construídas com um desvio para favorecer o deslocamento dos peixes”, conclui Julita.

Procurado, através da Secretaria de Comunicação (Secom) para comentar os dados sobre os estoques pesqueiros e as iniciativas para manejo da pesca, o Governo do Mato Grosso não deu resposta até o fechamento desta reportagem.

Adriana Amâncio

Jornalista, nordestina do Recife. Tem experiência na cobertura de pautas investigativas, nas áreas de Direitos Humanos, segurança alimentar, meio ambiente e gênero. Foi assessora de comunicação de parlamentares na Câmara Municipal do Recife e na Assembleia Legislativa de Pernambuco. Foi assessora da Articulação Semiárido Brasileiro (ASA) e, como freelancer, contribuiu com veículos como O Joio e O Trigo, Gênero e Número, Marco Zero Conteúdo e The Brazilian Report.

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