“Eu não sou contra o dendê. Ele é usado em cosméticos, alimentos, coisas que a gente consome no dia a dia. Não vou ser hipócrita, mas o poder público precisa fazer alguma coisa. Não é possível que todos sejam cegos, surdos e mudos”. O relato da agricultora Jacilma Rodrigues da Costa, do quilombo Velho Expedito, em Concórdia do Pará (PA), expressa o cansaço de quem aguarda respostas para um problema que afeta sua comunidade há mais de dez anos.
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Desde que o monocultivo de dendê se espalhou pelo município, é cada vez mais difícil para os quilombolas manter hortas orgânicas. Ao mesmo tempo, peixes e animais de caça vêm sendo encontrados mortos em seus habitats, prejudicando a segurança alimentar das famílias. A suspeita dos moradores é que a causa central desses impactos seja o abuso de agrotóxicos pela empresa de biocombustíveis Brasil BioFuels (BBF), que possui quase 60 mil hectares de dendezais no Pará.
Esta reportagem é a terceira reportagem sobre o impacto dos agrotóxicos nas comunidades quilombolas. O foco é a dificuldade de responsabilização e comprovação do nexo causal entre o uso de pesticidas e os danos causados por essas substâncias. As duas primeiras matérias descreveram, respectivamente, efeitos sobre a saúde dos quilombolas e os desafios de permanência nos territórios.
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A saga dos pesquisadores
Associações entre problemas de saúde em comunidades tradicionais e abuso de agrotóxicos em fazendas vizinhas vêm sendo investigadas por pesquisadores de diferentes áreas na última década. Em 2014, a cientista social Maria Letícia de Alvarenga Carvalho, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), registrou “casos de epilepsia, convulsões, intoxicações no fígado e no sangue, alergias, irritação e inchaço nos olhos, dores no peito, problemas respiratórios e até mesmo câncer de próstata” no quilombo Saco Barreiro, em Pompéu (MG), a partir de relatos dos moradores.
Pesquisas como a de Carvalho chamam atenção para a gravidade do problema, subsidiando, por exemplo, a construção do Mapa de Conflitos da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Porém, como não se trata de um estudo em saúde humana, com análises laboratoriais, suas conclusões são insuficientes para confirmar a relação direta entre os efeitos relatados e os pesticidas aplicados no entorno da comunidade.
Dos territórios visitados pela reportagem, Santo Antônio, em Concórdia do Pará, foi o único a receber uma pesquisa científica atestando a presença de agrotóxicos no organismo dos quilombolas. O estudo, publicado em 2020 pelo Instituto Evandro Chagas (IEC), chegou a essa conclusão após analisar o sangue de 200 indivíduos.
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Veja o que já enviamos“A pesquisa em saúde humana é sempre mais complicada porque depende da aprovação de um comitê de ética. O desafio nesse caso foi que o município não autorizou a pesquisa, por meio de sua Secretaria de Saúde. Ela não deu anuência, não se comprometeu”, relata o médico e pesquisador Antonio Marcos Mota Miranda. A BBF é a maior empresa do município e gera mais de 5 mil empregos diretos no Pará.
A solução encontrada à época pelo IEC foi apresentar ao comitê de ética a anuência da Associação da Comunidade Remanescente de Quilombos Nova Esperança de Concórdia do Pará (Arquinec), que abrange Santo Antônio e outros três territórios.
A falta de verba para ciência também costuma dificultar a comprovação dos danos. “O deslocamento de uma equipe, para fazer um trabalho sério e relevante cientificamente, custa muito dinheiro. Para esta pesquisa, não conseguimos apoio do governo federal. Tivemos que buscar financiamento fora do país, por meio das fundações [alemãs] Heinrich Böll e Rosa Luxemburgo”, completa Miranda.
A conclusão do estudo, que “confirma exposição ambiental aos agrotóxicos organofosforados, utilizados na monocultura do dendê”, não garante a responsabilização da BBF ou de qualquer outra empresa pelos danos socioambientais na região. Afinal, a mesma pesquisa observa que o nível de comprometimento para o organismo dos indivíduos ainda é “imprevisível”.
Os organofosforados são um dos três grandes grupos de inseticidas usados na agricultura brasileira. O representante mais conhecido desse grupo é o glifosato, comercializado geralmente sob o nome de RoundUp e classificado como provavelmente cancerígeno pela Agência Internacional de Pesquisa em Câncer (Iarc).
Quebra-cabeças incompleto
A ciência caminha a passos mais lentos do que Jacilma Rodrigues da Costa e os quilombolas de Concórdia do Pará gostariam.
Promotora de Justiça Agrária da I Região do Ministério Público do Estado do Pará (MPPA), Ione Nakamura relata que o Fórum Estadual de Combate aos Impactos de Agrotóxicos estuda formas de garantir uma distância segura entre um plantio com pulverização terrestre de agrotóxicos e comunidades tradicionais ou equipamentos públicos, como escolas.
“Nossa intenção é emplacar uma legislação estadual que proteja essas populações”, observa. “Existe uma disputa no Poder Judiciário sobre os danos ambientais do dendê. Ainda não temos dados conclusivos para ajuizar ações sobre o impacto dos agrotóxicos, mas estamos no processo de levantamento de campo e coleta de dados”, informa a promotora.
Até outubro, o IEC deve divulgar os primeiros resultados sobre a possível presença de agrotóxicos na água na região de Concórdia do Pará.
O caminho até a responsabilização das fazendas ou empresas do agronegócio, no entanto, costuma ser mais longo. É comum que o Judiciário questione o “nexo causal”, ou seja, a comprovação científica de que o dano observado nos indivíduos foi causado por agrotóxicos. “É consenso na literatura o impacto dos agrotóxicos na estrutura hepática, no fígado; no sistema de excreção, nos rins; e nas glândulas endócrinas. Esses são os elementos laboratoriais ou bioquímicos que a gente utiliza”, ensina o médico Antonio Marcos Mota Miranda, pesquisador do IEC.
Um dos entraves, segundo ele, é que não se conhece os efeitos a médio e longo prazo de todas as substâncias em uso no país. Identificar o nexo causal, nesses casos, é como tentar montar um quebra-cabeças sem ter todas as peças à mão. “O Brasil vem inserindo no mercado muitas substâncias novas, que são modificações mais eficazes de outras que também foram aprovadas recentemente, sem termos uma avaliação embasada dos possíveis danos daquela que a originou”, lamenta Miranda.
Metade de todos os pesticidas vendidos no Brasil foi registrada no atual governo. Desde que Jair Bolsonaro (PL) tomou posse, em 2019, foram aprovados mais de 1,7 mil novos agrotóxicos. No final de 2021, o presidente assinou decreto permitindo que até substâncias que comprovadamente causam câncer, mutação genética e má formação fetal sejam liberadas, desde que se respeite um “limite seguro” de exposição no campo.
Em agosto de 2022, o imposto sobre a importação do glifosato, agrotóxico mais utilizado no Brasil, caiu de 9,6% para 3,8%. O Projeto de Lei 6.299/2002, apelidado por opositores de “PL do Veneno”, é a aposta da bancada ruralista para consolidar essa agenda de flexibilização e estímulo ao uso de agrotóxicos e impedir que o próximo governo revogue os decretos de Bolsonaro.
Conforme o PL, só será proibido o registro de novas substâncias caso “apresentem risco inaceitável para os seres humanos e para o meio ambiente”. O critério para definir o que é “aceitável” não está detalhado na proposta, o que coloca trabalhadores rurais e comunidades vizinhas a monocultivos em alerta.
“A gente faz uma agricultura tradicional, de baixo impacto, que produz alimentos. Já o agronegócio produz commodities, para alimentar animais, para exportar. É esse tipo de produção que o PL pretende beneficiar”, ressalta Kátia Penha, coordenadora da Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq). “Não é um projeto que está preocupado com a mesa dos brasileiros”.
Redução de danos
Em 2019, fiscalização solicitada pelo Ministério Público da Bahia (MPBA) visitou 13 propriedades rurais nos municípios de Jacobina, Campo Formoso e Morro do Chapéu. Três fazendeiros foram autuados por supressão vegetal de espécies nativas sem autorização, totalizando 46,5 hectares devastados.
O relatório da fiscalização apontou irregularidades relativas ao armazenamento de agrotóxicos, destinação das embalagens e uso de equipamento de proteção individual nas 13 fazendas. Em duas delas, foram encontrados agrotóxicos vencidos, condição que pode agravar os efeitos previstos na bula.
Autuações relacionadas ao descarte irregular e à data de vencimento dos produtos são formas de coibir danos socioambientais causados por agrotóxicos sem, necessariamente, comprovar o nexo causal com os sintomas relatados pelos moradores. A ação civil pública aberta pelo MPBA a partir daquela fiscalização está a cargo da promotora Luciana Khoury, substituta da Promotoria de Justiça Especializada em Meio Ambiente de âmbito regional com sede em Jacobina.
Em outra região da Bahia, com problemas semelhantes aos do quilombo Velame, Khoury obteve liminar histórica em 2021. Na ocasião, um fazendeiro do município de Abaré foi obrigado a respeitar a distância mínima de 500 metros para aplicação terrestre de agrotóxicos em relação ao perímetro urbano. As legislações federal e estadual só preveem um limite mínimo para os casos de pulverização aérea, mas a Justiça reconheceu os danos à saúde dos moradores do distrito de Ibó 3 e atendeu ao pedido do MPBA.
Dependência econômica
No caso de Abaré, a ação só prosperou porque mais de 200 moradores protocolaram abaixo-assinado relatando os problemas de saúde e denunciando a ação do fazendeiro. Nas três áreas quilombolas visitadas pela reportagem, e em maior proporção no quilombo Velame, moradores trabalham em fazendas vizinhas e evitam denunciar a contaminação por medo de represálias.
A dificuldade para obter depoimentos dos moradores mostrou-se ainda maior no quilombo Chumbo, vizinho ao monocultivo de soja em Poconé (MT). Nesse caso, a visita da reportagem, prevista para o mês de julho, foi cancelada sob recomendação de lideranças locais, devido à escalada de conflitos com latifundiários.
No quilombo Saco Barreiro, em Minas Gerais, dois moradores trabalham para a empresa Agropéu, que pulveriza agrotóxicos nos canaviais vizinhos à comunidade. “Não me submeteria a isso, mas entendo que está difícil conseguir emprego”, admite Vanilson Rodrigues, presidente do Sindicato de Trabalhadores Rurais de Pompéu e nascido na área quilombola. “São pessoas que têm pouco estudo, que não têm maldade. A nossa preocupação é a empresa entrar na cabeça deles e acabar atrapalhando a organização da comunidade”.
Wilton de Almeida, presidente da associação de moradores de Saco Barreiro, conta que tentou voltar a estudar em uma turma de Educação de Jovens e Adultos (EJA), mas não conseguiu permanecer. “O ônibus me pegava às 19h30. A aula terminava depois das 23h, e eu chegava em casa de madrugada. Não tinha jeito. Quando é 19h30, já estou dormindo, porque aqui a gente acorda cedo”, explica.
Outro fator comum entre as regiões é a dependência econômica do agronegócio. Mais de um terço do Produto Interno Bruto (PIB) de Concórdia do Pará e de Pompéu advém, respectivamente, dos cultivos de dendê e cana de açúcar. Em Morro do Chapéu, lavouras de cebola e tomate respondem por metade dos rendimentos da produção agrícola municipal.
“A gente não pode diminuir a relevância dos empregos que vêm sendo gerados por essa crescente dos plantios de cebola. As pessoas estão mais tranquilas porque sabem que vão ganhar seu dinheirinho na roça, passaram a ter uma condição de vida melhor”, afirma a Associação Comunitária dos Agricultores Remanescentes de Quilombo do Velame, em resposta coletiva à reportagem. “Por outro lado, a gente se expõe muito. Não só quem inala o veneno indiretamente, mas quem trabalha e tem contato direto. É complicado assumir uma postura radical. O caminho é o diálogo, seguir as leis, organizar os trabalhadores para usar equipamentos de proteção e minimizar os impactos”.
Aceitável para quem?
Cada município brasileiro é obrigado a analisar semestralmente a presença de 40 agrotóxicos na água consumida pelos cidadãos. Doutora em Saúde Pública com ênfase em Toxicologia e Saúde, Karen Friedrich considera esse monitoramento insuficiente. “Todos os demais agrotóxicos, fora desses 40, podem estar presentes em qualquer quantidade, porque não há um limite definido”, observa. “E não adianta coletar uma vez por ano, porque há variações em relação a chuvas, à época das safras. Precisaria de uma periodicidade e de um acompanhamento maior”, arremata a especialista, que integra o Grupo de Trabalho (GT) Saúde e Ambiente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco).
Vanilson Rodrigues, sindicalista e quilombola em Pompéu (MG), desconfia do resultado dos exames realizados em 2021 na água do córrego que abastece a comunidade Saco Barreiro. Na ocasião, a análise laboratorial investigou a presença de 15 pesticidas, e nenhum estava acima dos níveis permitidos pelo Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama). “Queria ver se botassem essa mesma quantidade de veneno na água dos donos da empresa, para ver se eles aceitam. Aí, eu acreditaria que é uma quantidade aceitável”, questiona.
Bernardo Beirão, coordenador de Análises Ambientais do Instituto Guaicuy, que solicitou a análise da água de Saco Barreiro, reconhece que a exposição contínua aos agrotóxicos, mesmo dentro dos limites permitidos, “aumenta o risco e complexifica a situação”. “Em Saco Barreiro, percebemos uma variação grande dos níveis de contaminantes conforme a época em que ocorre o monitoramento, e não temos condições de monitorar com a frequência que gostaríamos”, lamenta.
Reféns de informações pouco confiáveis e sem respaldo estatal para permanecer nos territórios, quilombolas das três regiões resistem silenciosamente enquanto aguardam condições mais favoráveis para dialogar com os poderes político e econômico.
Diácono da comunidade Santo Antônio, em Concórdia do Pará, Benilson Mendonça sublinha que a insistência no discurso de que o agronegócio é o único modelo viável de produção de alimentos reforça o preconceito contra os povos tradicionais. Para ele, a relação ancestral dos quilombolas com a terra é o que permite sonhar com dias melhores. “Quem pensa só no lucro enxerga a gente como parte de um retrocesso, porque tudo que fazemos aqui é voltado para a preservação, para manutenção das condições do ar, da água, do solo. Para eles, nós estamos com a cabeça no passado, mas na verdade estamos preocupados é com o futuro”, reflete. “No nosso caso, temos um território titulado, mas não estamos blindados dos efeitos de fora. Há muito tempo entendemos que a resistência coletiva é a única forma de continuarmos no território, mantendo as nossas tradições e a nossa cultura”, finaliza.
*Esta reportagem foi financiada por uma bolsa promovida pela Alter Conteúdo Relevante e pelo #Colabora, em parceria com a Fundação Heinrich Böll, para promover e aprofundar o debate sobre o uso de agrotóxicos e suas consequências.