A potência da periferia invade o mundo da moda

Documentário Favela é Moda, que estreia no Canal Curta!, acompanha trajetória de jovens modelos em agência nascida na Favela do Jacarezinho

Por Oscar Valporto | ODS 10ODS 12 • Publicada em 22 de janeiro de 2021 - 12:24 • Atualizada em 26 de janeiro de 2021 - 09:04

Júlio César Lima (à direita) e modelos da Jacaré é Moda: documentário no Canal Curta! mostra potência da periferia abrindo espaço no mundo fashion (Foto: Divulgação)

As primeiras cenas são de multidão: dezenas de aspirantes a modelo, com suas mães, parentes e amigos, participam de uma seleção na quadra de uma favela carioca. Depois, o documentário Favela é Moda torna-se intimista, com os relatos de alguns dos jovens escolhidos – quase todos negros, todos da periferia – enquanto acompanha seu treinamento na Jacaré é Moda, agência de modelos nascida na comunidade do Jacarezinho, uma favela plana na Zona Norte da Rio, com cerca de 40 mil moradores. São as histórias de adolescentes que chegaram até ali, enfrentando preconceitos e dificuldades que dão brilho ao filme, vencedor do Prêmio de Melhor Documentário pelo voto popular no Festival do Rio 2019 e de Melhor Longa Metragem do XIII Prêmio Pierre Verger.

Favela é Moda estreia no Canal Curta!, nesta sexta, dia 22 de janeiro, e passa a fazer parte da programação – o Curta! pode ser assistido nos canais 56 e 556 da Net e Claro TV, 75 da Oi TV e 664 da Vivo TV . Ainda no começo do documentário, o diretor Emílio Domingos apresenta o responsável por abrir caminhos para jovens da periferia chegarem a passarelas e editoriais de moda. Júlio César Lima, filho de mãe faxineira e pai pedreiro, sonhava em estudar moda quando conseguiu emprego como porteiro em um prédio da Zona Sul. Começou a entender de moda, devorando as revistas especializadas, que os moradores jogavam fora.

Em 2003, ele criou a Jacaré é Moda, para, ao mesmo tempo, descobrir e treinar modelos de favelas e periferias e também fortalecer sua comunidade. “Nós não somos uma ONG, não somos um projeto social; somos uma empresa, uma agência de modelos. Eu quero ser empresário de moda e vocês vão me ajudar”, afirma Júlio, na seleção que abre o documentário, filmada em 2015, quando a Jaracé é Moda, tocada com a sócia Clariza Rosa, já havia se tornado conhecida nas comunidades periféricas cariocas.

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Júlio César Lima (à direita) e modelos da Jacaré é Moda: documentário no Canal Curta! mostra potência da periferia abrindo espaço no mundo fashion (Foto: Divulgação)
A modelo Camila Reis: preconceito por ser negra e da Baixada até conseguir lugar no mundo da moda (Foto: Divulgação)

Em 2015, a agência de Julio e Clariza já tinha revelado Camila Reis, moradora de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, que, hoje, com 28 anos, divide seu tempo entre a carreira de moda, o emprego de vendedora de loja de roupas e a faculdade de marketing. “Quando eu tinha 13 anos, fui fazer um teste para um comercial e a moça da seleção sugeriu à minha mãe que desse outro endereço. Ela se recusou e mandou botar Duque de Caxias e eu fiquei chateada por perder a oportunidade. Mas minha mãe me ensinou: a gente precisa saber de onde vem para saber até onde a gente pode ir”, conta Camila diante das câmeras. “A moda me fortaleceu. Todo mundo sabe que sou negra e moro na Baixada – isso faz parte da minha identidade”, acrescenta a modelo, treinada, anos depois, pela Jacaré é Moda.

Raquel Félix, da favela na Zona Norte do Rio às capas de revista: documentário acompanha trajetória de jovens modelos da periferia (Foto: Daniel Bemassief/Divulgação)

O documentário acompanha por três anos o treinamento dos selecionados em 2015, que vai muito além de aprender a andar na passarela e ficar bem diante das lentes do fotógrafo. Tem aulas de estilo e de modelagem de roupas, de maquiagem e de hair style, de interpretação teatral com atividades para os jovens modelos se soltarem, falarem deles mesmos, interagirem e trabalharem em grupo. Os depoimentos estão encharcados de emoção. E lágrimas: Raquel Félix, moradora da comunidade do Jacaré, chora ao falar do diagnóstico de doença hereditária; Hanna Tomaz – que mora na base do Morro do Dendê, na Ilha do Governador – se emociona ao falar das dificuldades financeiras da família; Vitória Cribb – nascida na Zona Oeste, filha de pai haitiana e mãe brasileira – chora ao recitar texto de sua autoria sobre racismo e exclusão.

O grupo acompanhado pelas câmeras de Emílio Domingos reúne também aspirantes a modelo do Complexo do Alemão, da Favela da Maré, da Cidade de Deus, de bairros da periferia das zonas Norte e Oeste da capital, da Baixada Fluminense. Destaque no documentário, Caio Guimarães, 22 anos, mora em Cosmos, na Zona Oeste. Especialista em selfies, sucesso nas redes sociais, produz suas próprias sessões de fotos, no cenário periférico do conjunto habitacional onde cresceu. “A Jacaré me deu referências. Porque eu pensava em ser modelo mas não achava uma referência no Brasil: não tem modelo negro, alto, magro e gay”, afirma Caio no documentário.

Documentário mostra Caio Guimarães produzindo suas próprias sessões de foto: “Pensava em ser modelo mas não achava uma referência no Brasil: não tem modelo negro, alto, magro e gay” (Foto: Francisco Poerner/Divulgação)

Criador da agência, Julio Cesar diz às jovens e aos jovens modelos que a moda é resistência. “Quem resistiu nos quilombos, quem subiu os morros, quem quebrou pedra para fazer subir a favela, foram os escravos, foram nossos antepassados negros. Eles já abriram muitos caminhos: agora é a nossa hora. A hora de vocês. Tem pedra para ser quebrada no mundo da moda; e são vocês da periferia que vão quebrar e mostrar esse empoderamento, vão abrir espaço para moda da periferia”, discursa o no filme. E o Jacaré é Moda abriu caminhos e criou oportunidades para modelos negros e da periferia no momento em que muitas marcas estão apostando na diversidade.

Quando Favela é Moda estreou no Festival do Rio, em setembro de 2019, muitas coisas já haviam mudado na vida dos protagonistas do documentário. O Jacaré é Moda dividiu-se: Júlio César ficou a Jcre Faciltador, ainda com sede na Favela do Jacarezinho, com cursos profissionalizantes e escola de moda para aspirantes a modelo das comunidades. Sua sócia Clarize Rosa abriu, com outras integrantes da Jacaré, a Silva Produtora, que, além de agência de casting e produtora de moda, também trabalha com marketing e produção de conteúdo. Raquel Félix, hoje com 20 anos, faz parte do casting da Silva e abriu um brechó com a irmã. Hanna Tomaz, criou o ateliê Remendei, especializado em reformar, consertar e customizar roupas, em paralelo à carreira de modelo. Vitória Cribb, hoje com 23 anos, faz sucesso como designer e artista multimídia e já teve trabalhos expostos até no exterior. É a potência da periferia, como Júlio César Lima repete ao longo de Favela é Moda.

Oscar Valporto

Oscar Valporto é carioca e jornalista – carioca de mar e bar, de samba e futebol; jornalista, desde 1981, no Jornal do Brasil, O Globo, O Dia, no Governo do Rio, no Viva Rio, no Comitê Olímpico Brasileiro. Voltou ao Rio, em 2016, após oito anos no Correio* (Salvador, Bahia), onde foi editor executivo e editor-chefe. Contribui com o #Colabora desde sua fundação e, desde 2019, é um dos editores do site onde também pública as crônicas #RioéRua, sobre suas andanças pela cidade

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Um comentário em “A potência da periferia invade o mundo da moda

  1. Claudia Lessa disse:

    Excelente a sabedoria desses jovens, quebrando pedras e construindo uma bela carreira-resistência.
    Parabéns a matéria e a publicação do Oscar Valporto, demonstrando o que é jornalismo sério!

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