Um lago que pega fogo

Bellandur, na Índia, vira depósito de lixo incandescente e substâncias inflamáveis. São 450 milhões de litros de esgoto despejados diariamente

Por Florência Costa | ODS 11 • Publicada em 6 de agosto de 2017 - 09:30 • Atualizada em 6 de agosto de 2017 - 13:58

Lago de Bellandur poluido. Foto de Manjunath Kiran/ AFP
Lago de Bellandur poluido. Foto de Manjunath Kiran/ AFP
Lago de Bellandur poluido. Foto de Manjunath Kiran/ AFP

Bangalore ganhou fama no mundo como o Vale do Silício da Índia, a meca da Tecnologia da Informação do país. Mas, para os indianos, a cidade sempre foi mais do que isso: Bangalore (hoje, rebatizada Bengaluru) representava, até alguns anos atrás, o paraíso dos aposentados, a “cidade dos lagos e dos jardins”, com clima perfeito, nem extremamente quente, nem muito fria. Um pesadelo ambiental, no entanto, tem incinerado a imagem positiva da capital do estado de Karnataka (sul da Índia): seu principal lago pega fogo de tempos em tempos.

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O sistema de esgoto de Bangalore é um mito, por 30 anos não é tratado

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Na noite de 16 de fevereiro, moradores da região sudeste da cidade testemunharam o fenômeno do fogo na água. Grandes nuvens de fumaça subiam ao céu. Elas vinham do Bellandur, o maior lago de Bangalore, que, neste dia, pegou fogo por 12 horas. Um mês depois, no dia 31 de maio, foi a vez de uma lagoa próxima, Varthur, incendiar.

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O Bellandur, maior dos 194 lagos de Bangalore, transformou-se nos últimos anos em um esgoto incandescente, um depósito de lixo e de substâncias inflamáveis. É um verdadeiro coquetel tóxico de lixo humano, sintético e químico. Hoje, 450 milhões de litros de esgoto por dia fluem para o Bellandur. Disso, menos da metade é tratado. É lixo de hospital, de indústria, das casas. Caixas de leite, tênis, garrafas de plástico, papel e vidro flutuam no lago.

Gás metano e alergias

Em maio de 2015 e em agosto de 2016, a espuma sobre o Bellandur pegou fogo devido à formação de gás metano. Reprodução do Twitter

A poluição provoca também a formação de espuma tóxica que, de vez em quando, flutua pelo ar e atinge motociclistas e pedestres. A reação imediata na pele é de coceira. Em maio de 2015 e em agosto de 2016, essa espuma sobre o Bellandur pegou fogo devido à formação de gás metano.

Durante as monções, os meses chuvosos (de junho a setembro), a situação piora. O cheiro podre invade os apartamentos – antigamente, Bellandur tinha água limpa durante as monções e secava no verão. Hoje em dia, o lago está sempre cheio de água. Mas ela é contaminada, não importa a estação do ano. As pessoas reclamam cada vez mais de infecções pulmonares e alergias de pele.

Uma ordem emitida em 18 de abril pelo Tribunal Nacional de Justiça Verde diz que o estado deve limpar o lago e emitir um relatório sobre o progresso desta iniciativa. No mês passado, esse mesmo tribunal anunciou o fechamento de quase 500 indústrias por despejarem esgoto tóxico no lago – Bellandur recebe 40% do esgoto da cidade).

Tribunal Verde

O Tribunal Nacional Verde, criado em outubro de 2010, trata, como o nome sugere, de casos relacionados à proteção ambiental e determina compensações por prejuízos. Tem o mesmo poder dos tribunais de justiça civis. A Índia sentiu a necessidade de ter um órgão judicial verde após a terrível tragédia do vazamento de gás de um indústria americana (Union Carbide) na cidade indiana do Bhopal (1984), que matou quase quatro mil pessoas e contaminou 500 mil: foi o pior desastre industrial da história.

Bangalore ainda é mais verde do que a maioria das metrópoles indianas. Mas agora ela ficou famosa pelo péssimo gerenciamento de lixo sólido, pela falha gigantesca na prevenção da contaminação do lago com o esgoto não tratado, e pela ineficiência nos vários projetos de rejuvenescimento dos seus lagos propagandeados pelo governo local. Especialistas do Instituto de Ciências de Bangalore alertam para a possibilidade de a cidade, com seus 10 milhões de habitantes, ficar inabitável até 2025, devido à aguda crise de água.

Bangalore: uma cidade órfã

Muitos dos lagos mortos se transformaram em florestas de concreto, complexos residenciais e de shoppings centers. Bangalore tornou-se uma cidade órfã, explorada por todos. Até 1970 existiam 285 lagos. Hoje são 194, a maioria deles verdadeiros esgotos. A cidade literalmente engole seus lagos.

Leo Saldanha, coordenador do Grupo de Apoio ao Meio Ambiente, organização que está à frente dos esforços para salvar os lagos da cidade, aponta o dedo na direção de construtoras que violaram normas na construção de condomínios para a emergente classe média indiana, com vistas para lagos.

 

“O sistema de esgoto de Bangalore é um mito, por 30 anos não é tratado”, criticou o planejador urbano Naresh  Narasimthtam, durante debate em uma rede de TV local sobre a tragédia do Bellandur. Jornalistas que cobrem o caso dizem que o governo apenas adota medidas cosméticas. O desgoverno ocorre em parte porque há várias agências responsáveis pelo assunto e elas transferem o problema umas para as outras.

Muito antes de sua morte dolorosa, o Ballandur era parte de um rico sistema aquático que deu a Bangalore o apelido “cidade dos lagos”. As primeiras notícias sobre formação de espuma de e outros agentes químicos no principal lago de Bangalore começaram a surgir nos anos 80.

Conto de fadas

Fundada no século 16, Bangalore sempre foi a queridinha do conto de fadas do crescimento indiano dos últimos 20 anos e parecia cumprir o prognóstico de Jawaharlal Nehru (o 1º primeiro-ministro da Índia), que a chamava de “a cidade do futuro”.

O boom da Tecnologia da Informação – o setor da economia mais famoso no processo de ascensão global da Índia – teve como um dos símbolos esta cidade. Em meados dos anos 80 multinacionais de TI começaram a se estabelecer lá. Mesmo com os seus graves problemas ecológicos, muitos centros de inovação de grandes empresas, como Airbus, Visa e Apple, além de startups indianas, continuam se instalando em Bangalore.

Mas como tudo tem um preço, Bangalore sente agora os efeitos negativos do crescimento desordenado. A população explodiu neste processo: entre 2001 e 2011 aumentou quase 52% sem que a infraestrutura acompanhasse o ritmo de crescimento.

Bellandur era a fonte de sobrevivência de 18 vilarejos até algumas décadas atrás, quando se cultivava tomates e couve-flor na área. Mais de 400 famílias de pescadores viviam nas vizinhanças. Era um tempo em que se podia organizar o “Theppotsava” –  o festival dos barcos no lago. Agricultores e pescadores foram obrigados a abandonar a região para não morrerem de fome.

O maior vilão dessa tragédia ecológica é o desgoverno, apontam especialistas: as fontes de poluição continuam não investigadas. Enquanto isso, a população local se organiza e grita “Save Bellandur, Save Bengaluru”.

Florência Costa

Jornalista freelance especializada em cobertura internacional e política. Foi correspondente na Rússia do Jornal do Brasil e do serviço brasileiro da BBC. Em 2006 mudou-se para a Índia e foi correspondente do jornal O Globo. É autora do livro "Os indianos" (Editora Contexto) e colaboradora, no Brasil, do website The Wire, com sede na Índia (https://thewire.in/).

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