São Paulo e o apagão: privatiza, que piora

A maior cidade das Américas fica de joelhos, sem energia elétrica diante da pororoca de incompetência do prefeito Ricardo Nunes e da Enel, concessionária incapaz de prestar o serviço essencial

Por Aydano André Motta | ODS 11ODS 7 • Publicada em 18 de outubro de 2024 - 13:08 • Atualizada em 18 de outubro de 2024 - 13:47

A Avenida Padre Arlindo Vieira, no Jabaquara, sem energia elétrica: São Paulo humilhada após 40 minutos de chuva. Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil

A maior cidade das Américas, a quinta metrópole mais populosa do mundo, ficou de joelhos quase uma semana, vítima da incompetência de uma multinacional concessionária de energia. Temporal de 40 minutos, com ventos de pouco mais de 100km/h, derrubou árvores por várias regiões da cidade, deixando 2,6 milhões de imóveis sem luz. Quase um ano depois do apagão de novembro de 2023, a Enel não fez de novo o serviço para o qual foi contratada.

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Multiplicaram-se, pela maior região metropolitana do país, os casos dramáticos e prejuízos humanos e financeiros pela escuridão. Nesta sexta-feira (18), uma semana após a ligeira tempestade, ainda tem paulistano vítima da empresa incapaz de resolver os problemas. Os executivos engomam o paletó, empinam o penteado oleoso e capricham na parolagem, mas a população paga pecados que não cometeu – sem esperança de qualquer reparação.

Sinais de trânsito (semáforos, no dialeto local) apagaram-se, agravando os sempre terríveis congestionamentos; por áreas ricas e remediadas, brotaram geradores de energia para comerciantes conseguirem abrir as portas. Dava para cortar com faca o constrangimento generalizado pela cidade historicamente orgulhosa de sua pujança e eficiência.

Nas periferias, brotaram os dramas mais agudos, como o da adolescente Heloisa Nietto, moradora em São Bernado do Campo, na região metropolitana. Portadora de AME (Atrofia Muscular Espinhal), depende de respirador artificial para sobreviver, mas sem energia, o nobreak que sustentava o aparelho começou a falhar. Luciana, a mãe dela, telefonou em desespero para a Enel e – você já sabe – ninguém atendeu. A solução foi ligar a máquina na bateria do carro, porque, se dependesse da concessionária de energia elétrica, Heloisa morreria sufocada.

Outro caso terrível foi o de Bartho, cachorro de 10 anos que passeava com seus donos em Santo Amaro, zona sul da capital. Ao pisar num fio energizado que ficou no chão devido à queda de uma árvore, o animal morreu instantaneamente, eletrocutado. O corpo permaneceu na calçada por surreais 30 horas, sem poder ser tocado, sob pena de causar mais mortes – a Enel não conseguiu o prodígio de cortar a corrente do fio.

Aqui, grita outro problema paulistano, turbinado pela fugaz tempestade: a barbeiragem da gestão municipal no serviço banal da poda de árvores. Uma fila de 13,9 mil pedidos pendentes foi um dos muitos constrangimentos do prefeito Ricardo Nunes (MDB), candidato à reeleição (ainda à frente nas pesquisas), no episódio. Jamais por acaso, a Zona Sul, região mais afetada pelo apagão, lidera os pedidos pela ação da prefeitura.

Em plena temporada eleitoral, virou, claro, jogo de empurra entre os governantes da cidade, a empresa e a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), sócios no fiasco da concessão. O calvário da população privada do direito pelo qual paga (caro) deixou de ser prioridade. Os defensores do modelo de concessão ao setor privado estão concentrados na causa que os enfeitiça.

E aí, perderam o rumo. Ricardo Nunes, o prefeito que se enrola para podar copas de árvores, tentou culpar o governo federal pela incompetência municipal – apenas para tentar arranhar seu adversário na corrida pelos votos, Guilherme Boulos (PSOL), apoiado por Lula. Estratégia ingrata.

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Árvores caídas no Bom Retiro: prefeito Ricardo Nunes não consegue dar conta de serviço básico de poda. Foto Paulo Pinto/Agência Brasil
Árvores caídas no Bom Retiro: prefeito Ricardo Nunes não consegue dar conta de serviço básico de poda. Foto Paulo Pinto/Agência Brasil

Mas o campeão da insensatez foi o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos), que apareceu na trama tardiamente, para tentar socorrer o alcaide, seu afilhado político. Garoto dourado do bolsonarismo (que tenta se travestir de “técnico moderado”, mas só bobo cai na conversa), ele acusou a Enel de “não investir se não houver potencial de remuneração”. Descobriu o capitalismo.

De seu lado, o ministro das Minas e Energia, Alexandre Silveira, tentou sair do caminho culpando a leniência da “Aneel bolsonarista”, que “não deu andamento” a processos encaminhados pelo ministério de punição à concessionária. “A omissão da agência deve ser investigada pelos órgãos de controle”, clamou.

Há em curso, ainda, uma tentativa de despolitizar a questão. Ah, não é hora de polemizar, tem que priorizar o socorro à população, a normalização do fornecimento de energia, pipipi popopó… Não poderia estar mais errado. Para além da certeza de que tudo é político, a tragédia da Enel em São Paulo serve como mais uma oportunidade para se questionar o sistema de entregar setores e serviços essenciais da sociedade aos interesses privados e sua obsessão pelo lucro.

Invenção do liberalismo que se alastrou pelo mundo a partir dos anos 1990, as privatizações despertam paixões religiosas no Brasil. Políticos e comentaristas se assemelham a fundamentalistas xiitas quando tratam do modelo. O problema está na volumosa coleção de equívocos, falhas, omissões e incompetências do negócio.

São privadas as duas maiores tragédias ambientais da história do Brasil, o rompimento das barragens em Mariana e Brumadinho, obra da Vale e de suas parceiras que matou 289 pessoas. É privado o transporte público carioca, ícone da péssima qualidade no trato com a população. Apenas para ficar nos exemplos mais gritantes.

Em teoria, barbeiragens dos concessionários deveriam ser analisadas e punidas pelas agências reguladoras. Mas submetidas à ideologia dos inquilinos dos cargos eletivos, simplesmente não funcionam a serviço da sociedade. A passagem de trem na região metropolitana do Rio, administrado pela surrealista Supervia, custa R$ 7,10 – e raro é o dia em que o sistema funciona sem interrupções. Os ônibus, principal modal para a mobilidade da população, funcionam totalmente baseados na tarifa – com a pandemia, ao menos 37 linhas simplesmente desapareceram. Se não viajar lotado, quebra.

Então, estatiza tudo de novo? Calma, leitor! Se a sanha capitalista das concessionárias tiver um freio, com punições eficientes e contratos ajustados à defesa da população, melhora. Se os responsáveis se desapaixonarem por lados da querela, também ajuda. Só não dá para fugir da metáfora: é um setor necessitado de luz.

Melhor não pedir para a Enel, porque pode faltar a qualquer momento.

Aydano André Motta

Niteroiense, Aydano é jornalista desde 1986. Especializou-se na cobertura de Cidade, em veículos como “Jornal do Brasil”, “O Dia”, “O Globo”, “Veja” e “Istoé”. Comentarista do canal SporTV. Conquistou o Prêmio Esso de Melhor Contribuição à Imprensa em 2012. Pesquisador de carnaval, é autor de “Maravilhosa e soberana – Histórias da Beija-Flor” e “Onze mulheres incríveis do carnaval carioca”, da coleção Cadernos de Samba (Verso Brasil). Escreveu o roteiro do documentário “Mulatas! Um tufão nos quadris”. E-mail: aydanoandre@gmail.com. Escrevam!

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