#RioéRua: uma resistência chamada Mangueira

A escola e o samba ajudam o morro a enfrentar a decadência causada pela falta de segurança 

Por Oscar Valporto | ODS 11ODS 9 • Publicada em 18 de março de 2019 - 08:35 • Atualizada em 17 de abril de 2023 - 17:14

Palácio do Samba, quadra da Mangueira: escola é a referência do morro (Foto: Oscar Valporto)

Sábado das campeãs de 2019, sol forte e ando pela Visconde de Niterói, no pé do Morro da Mangueira, em busca do movimento que está na minha memória de um Carnaval de 35 anos atrás. Não, não era sábado – e, naquela primeira folia comandada por Leonel Brizola e Darcy Ribeiro na recém-inaugurada Passarela do Samba, as escolas de samba estavam enlouquecidas com uma novidade criada pela organizada: o supercampeonato. Em 1984, pela primeira vez, o desfile foi dividido em dois dias – antes, era somente no domingo. E, no sábado seguinte, as seis melhores colocadas dos dois desfiles, mais as duas melhores do acesso, disputavam – valendo pontos – um supercampeonato. Portela, campeã de domingo, e Mangueira, campeã de segunda, eram as favoritas. Este jovem repórter do Jornal do Brasil foi lá quinta ou sexta-feira no Palácio do Samba da Mangueira  – e, depois no barracão, perto da Marquês de Sapucaí – fazer os preparativos.

Em 1984, tinha muita gente na quadra de escola, dirigentes combinando estratégias, integrantes arrumando fantasias. Em 2019, o Palácio do Samba, está praticamente fechado;  só por uma porta lateral, desembarcam as cervejas para a segunda festa do título – a Mangueira ganhou mais um Carnaval com sua homenagem a Marias, Mahins, Marielles, Malês. O sábado das campeãs, agora, é só de festa na Passarela do Samba, sem valer ponto nem nota: o tal supercampeonato competitivo só durou aquele ano de 1984 e a Mangueira é a única supercampeã.  Em 2019, o movimento está concentrado na Cidade do Samba, inaugurada em 2006, para concentrar os barracões das escolas de samba.

Entrada da antiga Estação Primeira - hoje a quarta do ramal Deodoro (Foto: Oscar Valporto)
Entrada da antiga Estação Primeira – hoje a quarta do ramal Deodoro (Foto: Oscar Valporto)

Morro da Mangueira também mudou muito em 35 anos. Pelos registros da história da cidade, foi um dos primeiros morros a serem ocupados pela população de baixa renda da cidade: os primeiros barracos surgiram na metade do século XIX. As terras eram conhecidas por sua produção de mangas e a fábrica de chapéus inaugurada ali em 1861 ganhou logo o nome de Fábrica de Chapéus Mangueira. E, assim, também foi batizada a estação de trem da Estrada de Ferro Dom Pedro II ao ser inaugurada em 1869: Estação Mangueira, a primeira estação, depois da estação central, o que explica o nome da escola de samba. Hoje, há três estações, Praça da Bandeira, São Cristóvão e Maracanã, entre Central do Brasil e Mangueira.

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Antiga fábrica de compotas e geleias hoje abandonada: violência afastou empresas (Foto: Oscar Valporto)

Em 1928, os futuramente famosos compositores Cartola e Carlos Cachaça e mais um punhado de bambas fundaram a escola de samba Estação Primeira de Mangueira para desfilar na Praça Onze, a partir da união de vários blocos que existiam no morro. A fábrica de chapéus não era mais a única na região.  A Visconde de Niterói chegou a abrigar oito industrias – fábricas de alumínio, de alimentos, de escovas, do Café Capital – que começaram a fechar ou se mudar dali a partir do fim da década de 1970, com a crise econômica e o crescimento da violência na cidade. Em 1984, ainda funcionavam na Mangueira as unidades de Pesquisa e Informática do IBGE em dois prédios com centenas de funcionários, que ajudavam a movimentar a economia local.  A insegurança levou o instituto a se mudar em 1997.

Terreno baldio onde ficava prédio do IBGE implodido: casas da prefeitura ainda na promessa (Foto: Oscar Valporto)

Sob o sol do verão de 2019, a Mangueira e o samba são as marcas que resistem no morro. No ano passado, os imóveis do IBGE, cedidos à prefeitura e invadidos desde 1999, foram implodidos: a promessa era construção de residências do Programa Minha Casa, Minha Vida. Por enquanto, é só mais um terreno baldio ao pé do morro. Fazia parte dos planos da prefeitura na Mangueira também implodir outros esqueletos de antigas fábricas, hoje abandonadas: da Red Indian, de geleias e compotas, e da Alcoa, de alumínio.  Mas os esqueletos continuam lá, servindo de depósito ou abrigando reuniões. Ao lado da área do antigo IBGE, está o Museu do Samba, criado a partir do Centro Cultural Cartola, com seus 45 mil itens – partituras, fotografias, livros, discos, estandartes. É bacana, mas só abre de segunda a sexta.

Estátua de Cartola em frente ao Museu do Samba: 45 mil itens para preservar da música (foto: Oscar Valporto)

No sábado dos campeãs, horas antes da escola voltar à passarela, a vida ao pé do morro quase passa ao largo do samba: tem gente lavando carro, tem crente seguindo para o culto, tem garotada a caminho da pelada, tem moça entrando no salão. Mas é claro que, em bares como o Atura ou Surta, e, principalmente, o Boteco do 14, este todo enfeitado de verde e rosa como muitos estabelecimentos e casas na Mangueira, o assunto em torno da cerveja já é o desfile da madrugada. E a trilha sonora é o samba que está em toda a parte, “Mangueira, tira a poeira do porões/ Ô, abre pros teus heróis dos barracões/ Dos Brasis, se faz um país de Lecis, de Jamelões/ São verde e rosa, as multidões”.

#RioéRua

Oscar Valporto

Oscar Valporto é carioca e jornalista – carioca de mar e bar, de samba e futebol; jornalista, desde 1981, no Jornal do Brasil, O Globo, O Dia, no Governo do Rio, no Viva Rio, no Comitê Olímpico Brasileiro. Voltou ao Rio, em 2016, após oito anos no Correio* (Salvador, Bahia), onde foi editor executivo e editor-chefe. Contribui com o #Colabora desde sua fundação e, desde 2019, é um dos editores do site onde também pública as crônicas #RioéRua, sobre suas andanças pela cidade

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