Vi o dia amanhecer no Mirante do Leblon pela primeira há quase 40 anos, tomando as penúltimas com o amigo que nunca me deixa beber sozinho. Era uma época, bem no começo dos anos 80, quando muitas noitadas terminavam ali – uma geração de boêmios vinha a pé dos bares do Baixo Leblon; apareciam carros de luxo com jovens – e alguns nem tanto – da Zona Sul; chegavam trabalhadores em fim de turno a caminho de casa no Vidigal. Era uma mistura movida a birita e outras drogas: tinha rock dos toca-fitas (estamos em 1980) e samba e MPB em rodinhas de violão. Nesta época, já não tinha muito sexo no mirante – a época de pegação dentro do carro naquele cenário havia ficado para trás.
Sim, o mirante foi muita coisa desde que apareceu, sem qualquer tratamento urbanístico, com a construção da Avenida Niemeyer, em 1916, quando o comendador Conrado Jacob Niemeyer Neto, proprietário de terras naquela área remota da cidade, bancou a construção de cerca cinco quilômetros, ligando o Leblon a São Conrado – naquele tempo, havia apenas um trecho de 400 metros, quase intransitável, aberto a partir de obras abandonadas de um projeto de ferrovia que iria até Angra dos Reis. O comendador cedeu a via para a prefeitura do Distrito Federal, em 20 de outubro de 1916. Quatro anos depois, a nova avenida passaria por uma reforma: em 1922, foi inaugurado o Viaduto Rei Alberto – soberano belga que foi o primeiro chefe de estado a visitar o país, em 1920.
Ainda nos anos 20 do século passado, seria erguido, no nº 2 da Niemeyer, o Leblon Hotel, pelo empresário espanhol João Otero Seoane, em terreno comprado ao comendador Niemeyer: o plano era montar no local um cassino de luxo nos moldes do Quitandinha. Inaugurado em 1926, o hotel chegou a ser palco de festas da alta sociedade carioca, atraída pelas bebidas e conservas importadas pelo espanhol. O plano do cassino, entretanto, não foi adiante; a distância do hotel para a parte mais movimentada da cidade, que ia do Centro ao começo de Copacabana, afastou turistas. O Hotel Leblon ficou como hotel mesmo, passando a atrair casais de amantes, interessados na discrição que o longo areal garantia. Um sucesso do Carnaval de 1935, de Braguinha e Alberto Ribeiro, tinha o refrão “o beijo começava em Realengo, esquentava no Flamengo e acabava no Leblon”. O mirante era usado pelos casais do hotel para passeios românticos com vista para o mar.
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Veja o que já enviamosA partir de 1933, o Mirante do Leblon ganharia mais uma função com a criação do Grande Prêmio da Cidade do Rio de Janeiro, de automobilismo. As baratinhas da época largavam na Marquês de São Vicente, cruzavam a Visconde de Albuquerque e subiam pela Niemeyer: o mirante era disputado pelos fotógrafos e espectadores da prova. Por duas décadas, o Circuito da Gávea foi palco de corridas de automóvel: neste período, o Mirante do Leblon foi ampliado e passou por reformas. A partir do fim dos anos 1950, namorados motorizados passaram a frequentar o lugar que competia com o Arpoador, o Castelinho, em Ipanema, como pontos para “corrida de submarino”; os carros, onde rolava a pegação, ficavam estacionados de frente para o mar, com casais que supostamente estariam ali para acompanhar a fictícia e invisível competição.
Foi na década de 1970 que os namorados começaram a ser substituídos pelos boêmios. Os motéis começaram a se espalhar pela cidade e atrair os casais. A menos de um quilômetro do mirante, foi construído o luxuoso hotel da Rede Sheraton, inaugurado em 1974. Na virada para os anos 1980, voltando ali para o começo do texto, o mirante tinha se tornado um ponto boêmio: os trailers ficavam abertos madrugada adentro para uma variada clientela: universitários, garçons, sambistas, vigilantes, turistas do Sheraton, motoristas de táxi, artistas da Globo. Impossível não ter saudade da juventude, das noites intermináveis, do amigo que nunca me deixa beber sozinho. Não foram tantas as madrugadas que testemunhei virar dia ali, quase 40 anos atrás, mas a memória guarda a vista da praia ao amanhecer e o ritmo frenético no mirante.
Na década seguinte, esse ritmo caiu como em toda a noite do Rio, abatido pelo aumento da criminalidade e a disseminação das armas de fogo. O Mirante do Leblon deixou de ter o mesmo movimento noturno. Mas nova reforma, já neste século, deixou o deck de madeira mais arrumado e a estrutura aparentemente mais segura.Na minha volta ao Rio, depois de oito anos na Bahia, fui lá algumas vezes – sempre à tarde, para ficar olhando o mar e tomar uma cerveja nos quiosques. O mirante estava quase sempre cheio de gente: casais de cariocas, famílias de turistas, pescadores. De um lado, a vista é da praia de Ipanema e Leblon; do outro, temos o retrato da desigualdade, as cinco estrelas do Sheraton e as casas empilhadas no Morro do Vidigal, que começou a ser ocupado por habitações populares na década de 1940.
Voltei lá na semana passada, numa tarde em que precisei mesmo sair de casa para consulta médica. Estava um dia azul de inverno, que parecia aqueles do outono carioca. Os quiosques estavam abertos, mas havia pouco movimento. Casais de máscara, sentados a alguma distância; um jovem com cara de turista tirando selfie com a praia ao fundo; dois pescadores tentando a sorte. Desta vez, não deu para ter nostalgia das madrugadas da juventude no Mirante do Leblon. Deu uma saudade do presente, de uma caminhada até ali no último verão, só quatro meses atrás, quando a rua era sua amiga, comprar cerveja um ato despreocupado e a gente não precisava ter medo de ficar perto dos outros.
#RioéRua