Na maciça propaganda da Globo para divulgar a série Doutor Castor, o ex-atacante Dé, hoje comentarista, aparece dizendo que, para falar do personagem principal do documentário, é preciso tratar de jogo do bicho, Carnaval e futebol. Dé – ídolo do Bangu da minha infância, craque do meu time de futebol de botão – está certo, mas sua sentença é reducionista. Na verdade, não dá para falar da história do Rio de Janeiro sem tratar de jogo do bicho, de escola de samba, de futebol. Mas Castor de Andrade, tão fascinante que merece até série da Globoplay, não foi pioneiro nessa mistura; talvez seja apenas o mais carismático, mais midiático, mais afeito aos holofotes.
Criado em 1892 como uma iniciativa de João Batista Viana Drummond, o Barão de Drummond, para financiar seu zoológico em Vila Isabel, o jogo do bicho caiu no gosto popular nos dois lados do balcão: para os aficionados, era uma loteria fácil de jogar, com regras simples; para quem precisava trabalhar, ser anotador era um trabalho que exigia pouca instrução e, na maioria dos casos, pagava em dia. As bancas de bicho se multiplicaram pela cidade, já sem controle do Barão de Drummond, e empregavam muita gente com dificuldades de achar outro trabalho. Inclusive sambistas: de fundadores das primeiras escolas a Zeca Pagodinho.
Eram – bicheiros e sambistas – pobres e habitualmente perseguidos pela polícia que prendia por contravenção ou vadiagem. Popular, a bicho tinha entre seus muito assíduos frequentadores os craques de outro jogo: o de futebol. Foram os craques dos gramados, que batizaram de bicho, a gratificação dada por vitória pelos clubes e seus patronos (comerciantes, fazendeiros, industriais, banqueiros do ramo oficial) – termo criado muito antes dos primeiros contraventores entrarem no mundo da bola.
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Veja o que já enviamosFoi na década de 40, quando Castor de Andrade ainda nem entrara na Faculdade de Direito, que Natalino José de Souza, o já então conhecido bicheiro Natal, dono das bancas de Madureira, começou a participar da Portela, escola fundada por seu amigo Paulo Benjamim de Oliveira, o sambista Paulo da Portela. No quintal da casa de Natal, com autorização de seu pai, Napoleão, foram feitos os encontros regados à samba que culminaram na criação do Bloco Carnavalesco Conjunto de Osvaldo Cruz, fundado em 1926 e embrião da Portela. Nas décadas de 40 e 50, com o banqueiro de bicho como patrono, a escola de samba conquistou 13 títulos do Carnaval. O bicheiro já virara Natal da Portela e – como seus sucessores no negócio – ajudava, além de escola, também a comunidade de Osvaldo Cruz e Madureira.
Em 1963, quando os Andrade – Eusébio, seu Zizinho, o pai como presidente, e seu filho mais velho, Castor, como diretor de futebol – chegaram ao Bangu, o sempre pioneiro Natal era diretor de futebol do Madureira, uma experiência breve para atender a seu amigo e sócio, Carlos Teixeira Martins, o Carlinhos Maracanã, bicheiro em ascensão e presidente do clube. O Madureira foi o primeiro a ter banqueiro de bicho como patrono: seu estádio, na Rua Conselheiro Galvão, foi inaugurado em 1941 com o nome (mantido até hoje) de Aniceto Moscoso, que era o dono dos pontos da região, antes mesmo da chegada de Natal.
O patrono da Portela já havia sido preso mais de 80 vezes, com todo tipo de acusação, da óbvia contravenção a assassinatos. O Madureira, como a maioria das iniciativas de Carlinhos Maracanã, teve pouco sucesso, mas o Bangu, de seu Zizinho e Castor, foi campeão carioca em 1966 e vice-campeão três vezes na década de 1960. Essa alegria da Zona Oeste não durou muito. Castor e Natal foram os mais ilustres presos de uma ofensiva da ditadura contra o jogo do bicho no Rio de Janeiro, logo depois do AI-5. Foram enviados ao presídio da Ilha Grande, destino tradicional dos presos em ofensivas para reprimir.
Os meses de cadeia fizeram os contraventores sumirem do noticiário – os Andrade promoveram uma liquidação de craques no Bangu. Natal deixou o comando da Portela com Carlinho Maracanã. Os banguenses ficaram saudosos. Na primeira metade da década de 70, quando eu frequentava o estádio do Bangu, em Moça Bonita, e outros do subúrbios, levado por meu pai, torcedores costumavam complementar uma reclamação contra o time ou contra o juiz com “no tempo do seu Zizinho e do Castor não era assim”. Nas memórias desse tempo, guardo também as imagens das bancas do jogo por todo o subúrbio, a ilegalidade tolerada como sempre – exceto por surtos autoritários e/ou moralistas.
O velho Eusébio de Andrade ainda permanecia ligado ao Bangu, chegou a voltar como vice-presidente na década de 70, por curto período: já passara dos 70 e os negócios – jogo do bicho à frente – já estavam nas mãos de Castor, que seguia afastado de Moça Bonita – agora tinha uma nova paixão: a Mocidade Independente de Padre Miguel. Na verdade, o festeiro Castor sempre foi do samba. Em 1975, 10 anos antes de o Bangu ser vice-campeão brasileiro, o banqueiro do bicho já ajudava a escola; em 1977, foi ele mesmo buscar de volta o carnavalesco Arlindo Rodrigues – um dos responsáveis pelos dois históricos títulos do Salgueiro na virada da década, que trabalhara três na Mocidade. Novamente, não era exatamente pioneiro: Aniz Abrahão David e seu irmão Nelson, do ramo de família tradicional de Nilópolis que abraçou o bicho, mandavam na Beija-Flor desde 1974. Carlinhos Maracanã continuava na Portela. Ex-diretor dos blocos Cacique Ramos e Sufoco de Olaria, o também banqueiro de bicho foi eleito presidente da Imperatriz em 1975.
Jogo do bicho e samba se misturam desde sempre e a relação dos banqueiros com suas comunidades também – e a relação chegou naturalmente às escolas de samba. No futebol, nem tanto. Castor voltou ao Bangu – no clube, diziam que a pedido do pai. As péssimas línguas garantiam que ele era torcedor da Mocidade e do Fluminense. Mas voltou e botou o Bangu de volta no mapa do futebol durante quase uma década: o time foi campeão da Taça Rio, outras duas vezes finalista do Carioca, vice do Brasileiro.
No Bangu, agora já tratado como Doutor Castor, ele tinha os holofotes da mídia o ano inteiro – e adorava isso. Não deixou a Mocidade de lado, contratou o carnavalesco Fernando Pinto, campeão em 1985, mas gastava mais dinheiro no clube. E foi no Bangu que Castor colecionou suas melhores histórias, virou personagem da cidade, ganhou a fama que o levou a ser tema da série documental que, não por acaso, começa com o sucesso do time na década de 1980. De quebra, ao deixar mais uma vez o Bangu, em 1988, vendeu os principais jogadores – Marinho, Mauro Galvão e Paulinho Criciúma – para o Botafogo que, naquele momento, era dirigido pelo também banqueiro de bicho Emil Pinheiro, que liderou o time ao título estadual de 1989, depois de 21 anos.
É docemente irônico que Castor de Andrade seja personagem principal de um documentário de quatro horas onde alguns de seus adversários fazem pontas – inclusive aquela juíza, predecessora do ex-ministro de Bolsonaro como especialista em torcer a lei para fazer o que acha justiça, e aquele árbitro vergonhosamente tricolor. Antes da prisão por formação de quadrilha em 1993, os banqueiros do jogo do bicho já haviam transformado o Carnaval das escolas de samba em um negócio lucrativo que talvez pudesse funcionar sem eles (o que obviamente não queriam), a partir da fundação da Liga Independente das Escolas de Samba, que reuniu as principais agremiações do estado, quase todas patrocinados pelos contraventores.
Foi por suas reuniões na Liesa e por terem seguranças armados que os banqueiros foram condenados por formação de quadrilha armada. Foi uma sentença por convicção de que eles mantinham atividades ilegais já que faltavam provas. Essa sentença foi reformada e, em alguns casos, anulada: Paulo Andrade, filho de Castor, morreu assassinado e primário, sem qualquer condenação. Depois, Castor e outros voltaram à cadeia com base em acusações mais robustas como contrabando e lavagem de dinheiro. Ainda assim, as penas nunca foram muito grandes. Castor morreu em 1997, em liberdade condicional. Quase 25 anos depois, os banqueiros de bicho continuam influenciando suas escolas de samba: os próprios ou seus sucessores.
Mas só o velho Natal teve, até agora, fama suficiente para – como Castor – virar filme: não vi mas adoraria ver Natal da Portela, dirigido por Paulo Cesar Saraceni. O Doutor Castor, da Globoplay, atesta que não se pode falar do Rio sem falar de jogo do bico, Carnaval e futebol. Tem certeza quem estava no Maracanã lotado para ver o Bangu decidir o título brasileiro em 1985, cantando em coro o samba campeão na Marquês de Sapucaí: “Sou a Mocidade, sou Independente, vou a qualquer lugar”,
Uma visita a Bangu e Padre Miguel explicará porque Castor merece essa atenção toda. Há um castorzinho como mascote no uniforme do Bangu e na bandeira da Mocidade Independente. O bichinho simpático e mesmo desenhos com o rosto de Castor estão em faixas e bandeiras das torcidas do clube e da escola. A mais irreverente torcida do Bangu escolheu o nome de Castores da Guilherme (Guilherme da Silveira Filho, Silveirinha, dono da Fábrica Bangu, foi o primeiro patrono do clube); o time feminino de futebol americano (sim, temos isso lá na Zona Oeste) foi batizado de Bangu Castores. Apesar do espaço – não muito – dado algumas teorias cretinas e/ou moralistas, ver a série documental vai ajudar a entender tudo isso Ou não.
#RioéRua