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Veja o que já enviamosRio 40 graus e a ocupação das praias cariocas desde os tupinambás
Onda de calor deixa areia e mar lotados de gente, num hábito indígena que atravessa os séculos
Foram sete dias consecutivos de sensação térmica acima de 40 graus – Rio 40 graus, como no filme e na música, com as temperaturas variando entre 37°C e 41º C e praias lotadas de cariocas e visitantes, banhistas na areia e no mar das 6h da manhã até quase meia-noite. Nesses dias abrasivos de verão, o calor vira o alvo principal das reclamações de quem não pode estar na praia. Sombras de árvores e marquises são disputadas; ambientes refrigerados passam a ser prioridade para qualquer reunião de trabalho ou de lazer; compras, consultas, programas: tudo o que pode ser adiado será nos dias de Rio 40 graus.
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Mas janeiro no Rio costuma ter dias assim. Possivelmente foi num dia assim – de calor mas nem tanto porque o asfalto e o concreto contribuem para essas temperaturas absurdas – que a frota comandada pelo italiano Américo Vespúcio, sob ordens da coroa portuguesa, chegou aqui no primeiro dia de janeiro de 1502: são do cosmógrafo e navegador nascido em Veneza, os primeiros relatos sobre esse lugar, batizado desde então de Rio de Janeiro – porque os navegantes acharam, inicialmente, que a Baía de Guanabara era a foz de um grande rio.
Os indígenas tupinambás, moradores dessas terras muito antes da chegada dos europeus, já ocupavam as margens da baía e dos rios que ali desaguavam. Já mergulhavam e nadavam – para se refrescar, para pescar. Suas canoas cruzavam as águas da baía. As maiores aldeias tupinambás estavam exatamente perto das praias, em locais próximos à foz de um rio, que garantisse água boa para beber – inclusive a Karioka, estrategicamente instalada, não muito longe da entrada da baía. Cariocas passaram a ser todos os nascidos na cidade do Rio de Janeiro desde o período colonial (e, oficialmente, com a criação do Estado da Guanabara): cariocas são bacanas, cariocas são sacanas, cariocas não gostam de sinal fechado e, menos ainda, de dias nublados.
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Veja o que já enviamosMas nossos antepassados tupinambás, verdadeiros cariocas, foram dizimados pelos colonizadores portugueses, que ocuparam as margens da Baía de Guanabara com seus fortes e seus portos para caravelas e outras embarcações. Os hábitos indígenas de nadar e mergulhar nas águas da Baía de Guanabara foram abandonados: até a pesca ficou mais rara. Banho de mar não fazia parte da cultura da Europa, com suas temperaturas de amenas a geladas, e os navegadores europeus – portugueses, espanhóis, holandeses, ingleses – sempre se espantavam com o hábito de parte dos nativos dos trópicos.
Como muita gente já sabe, foi Dom João VI, príncipe regente de Portugal que desembarcou aqui com a família e parte da corte, o primeiro europeu a fazer do banho de mar um hábito: por recomendação médica, o monarca ia à praia do Caju – perto do Palácio de São Cristóvão onde morava – para que o sal marinho ajudasse a curar feridas causadas por carrapatos. O tratamento foi em 1810, mas, desde o século anterior, médicos britânicos receitavam banho de água salgada – e gelada – para curar de muitos males.
Depois dos banhos de Dom João VI, moradores do Rio de Janeiro não apenas começaram a buscar a água do mar para cura como também frequentar as praias como lazer o que também já ocorrida na Inglaterra e na Europa continental. Ainda no século 19, a praia de Botafogo, onde muitos integrantes da corte (inclusive a princesa Carlota Joaquina) possuíam casas ou chácaras, tinha um cais de madeira para facilitar o mergulho de banhistas e cabines para a troca de roupas, repetindo hábito europeu. As mesmas facilidades para o banho de mar eram encontradas em praias do Centro, como Boqueirão do Passeio e Santa Luzia, ambas sepultadas pelos seguidos aterros após a virada para o século 20.
Foi a abertura do túnel ligando Botafogo a Copacabana (conhecido até hoje como Túnel Velho), na última década do século 19, que abriu o caminho para as praias de mar aberto. Ao contrário da Europa, onde o banho de mar permaneceu lazer apenas das elites, ir à praia, no Rio de Janeiro tropical de 100 anos atrás, caiu no gosto popular: Copacabana, já nos anos 1930, quando ônibus e lotações começaram a circular no bairro, atraía banhistas de outras partes da cidade e de todas as camadas sociais. Há fotos da areia de Copacabana tomada por cariocas na década de 1950, quando os postos de salva-vidas também já faziam parte do cenário.
A ocupação das praias seguiu a expansão da cidade pelo litoral: depois de Copacabana e da vizinha Leme, Ipanema, Leblon, São Conrado, Barra da Tijuca, Recreio dos Bandeirantes – lá no final do Recreio, está o Pontal, na subida para o Parque Municipal de Grumari. “Do Leme ao Pontal”, cantou Tim Maia – mas, na viagem pelo litoral carioca, depois do Pontal, o carioca ainda tem as praias mais selvagens da Prainha e Grumari, No fim de semana de Rio 40 graus, a prefeitura restringiu o acesso de carros a essas praias, que também lotaram.
No primeiro #RioéRua, aqui no Colabora, citei um comentário ouvido de um anônimo na orla: “Carioca é igual barata, basta esquentar e vai tudo para a rua”. Com o Rio 40 graus, os cariocas continuam mesmo lotando as praias, ainda o maior programa popular e, apesar dos muitos apartheids, ainda frequentadas por cariocas de todos os lugares e todas as classes: dos moradores de luxuosos apartamentos à beira-mar, que só atravessam a rua e podem evitar horários e dias mais tumultuados, à classe média que enfrenta o desafio de estacionar carros perto da orla, a banhistas que vêm dos subúrbios em ônibus e vagões do metrô lotados, e também a moradores das favelas da Zona Sul que, como aqueles da elite, vão à praia a pé.
Com a crise climática e o aumento do nível do mar, é possível (provável até) que as praias cariocas, como as conhecemos hoje, acabem desaparecendo. As águas vão avançar sobre aqueles “imensos blocos de concreto, ocupando todos os espaços”, como cantou Paulinho da Viola. Mas, neste Rio 40 graus, aquele “purgatório da beleza e do caos”, na definição de Fernanda Abreu e Fausto Fawcett, é para a praia que correm os cariocas, felizes porque as águas da Baía de Guanabara, por décadas entregue inteiramente à poluição, voltaram a permitir mergulhos na praia do Flamengo e até em partes da Ilha de Paquetá.
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