ODS 1
Cacique: “O Rio Tapajós não está à venda”


Indígenas da região do Baixo Tapajós se mobilizam contra decreto 12.600 que pretende incluir três rios da Amazônia em projeto de privatização


“É um projeto que vem de cima para baixo. E a gente sabe que o impacto aqui será muito grande”. A denúncia do cacique Gilson Tupinambá expõe a manutenção de um modo colonial de enxergar a natureza, como se fosse apenas uma fonte de recursos. Isso fica evidente no Decreto 12.600/2025 que inclui os Rios Tapajós, Madeira e Tocantins no Programa Nacional de Desestatização (PND).
Publicado em agosto, o decreto atende interesses econômicos de grandes produtores de soja e outras commodities, a exemplo da multinacional Cargill. O trecho citado para a hidrovia do Rio Tapajós inicia no município Itaituba e segue por 250 quilômetros até a sua foz, no Rio Amazonas. O foco é facilitar o transporte de produtos agrícolas do centro do Brasil para portos de exportação em Santarém, Itaituba e Barcarena.
Morador da Aldeia Parauá, Gilson teme pelo rio e pelos diversos seres que dele dependem, a começar pelos peixes, até as comunidades da Reserva Extrativista Tapajós-Arapiuns. “Se ele mexer no berçário, vai impactar nos filhotes – nos dourados e nos tracajás. Vai impactar a pesca e a alimentação”, afirma o cacique e coordenador do Conselho Indígena Tupinambá do Baixo-Tapajós (Citupi).
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Veja o que já enviamosAo todo, o território conta com 28 aldeias, onde vivem cerca de 4 mil indígenas. A reserva fica na margem esquerda do Rio Tapajós, sobreposta aos municípios de Aveiro e Santarém, na região do Baixo Tapajós, oeste do Pará. Além dos Tupinambá, a reserva abriga outras etnias, como Munduruku, Arapium, Apiaká, Borari, Maytapu, Cara Preta, Kumaruara, Jaraqui, Tapajó, Tupaiu e Arara Vermelha.
O processo de privatização desses rios vai impactar gravemente os povos amazônicos, sobretudo as comunidades tradicionais
Um dos principais pontos de crítica dos indígenas em relação ao decreto é sua imposição, sem a realização de uma consulta prévia. “O que me parece é que o Brasil continua sendo uma colônia dos outros países, um almoxarifado do mundo. Sabemos que aqui é favorável a saída para o Oceano Atlântico, por isso, vira um grande corredor de soja”, critica o cacique.
Por conta do limite de profundidade do Tapajós, o projeto da hidrovia teria de lidar com a chamada restrição de calado, para evitar que o navio toque no fundo do canal e outros acidentes. Perto da foz em Santarém, o rio possui uma profundidade média de cerca de 20 metros.
“Já tentaram cavar o rio, a gente entrou com o documento do MPF, pedindo para pararem”, conta o cacique. Em setembro de 2024, o Ministério Público Federal (MPF) recomendou a suspensão imediata do licenciamento ambiental da Hidrovia Tapajós, justamente devido aos impactos da dragagem e da falta de consulta às comunidades.


Reivindicações
“Nós somos os atores principais e que fazemos a vigilância do território, então não faz também sentido a gente ficar de fora. Nosso território não está à venda, nem nosso rio está à venda”, destaca Gilson Tupinambá. Para a comunidade, o Rio Tapajós não é um recurso, mas parte de sua própria identidade e ancestralidade.
Durante a COP30 (Conferência das Partes de Belém), Gilson e outras lideranças do Baixo Tapajós pressionaram o governo para que o seu direito à consulta fosse respeitado. Na ocasião, ficou a promessa de que o Citupi e o Conselho Indígena Tapajós e Arapiuns (CITA) seriam chamados para dialogar.
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O cacique também questiona a ideia de que o projeto da hidrovia traria desenvolvimento e ajudaria a combater a pobreza no território. “Dizem que a gente mora num lugar que é pobre, mas que pobreza é essa que a gente planta o maracujá e tira a comida para dez? Que lugar pobreza é essa que a gente vai pescar no Rio, tira a comida para cinquenta?”.
Em novembro deste ano, um grupo de entidades da sociedade civil entregou um documento ao Ministério dos Portos e Aeroportos (MPOR), pedindo a revogação do Decreto 12.600. O documento é assinado por Instituto Madeira Vivo (IMV), Movimento Tapajós Vivo (MTV), Instituto Zé Cláudio e Maria (IZM) e Grupo de Trabalho Infraestrutura e Justiça Socioambiental (GT Infra).
Rios Tocantins e Madeira
O projeto de privatização dos Rios Tapajós, Tocantins e Madeira faz parte do projeto “Arco Norte”, um conjunto de rodovias, ferrovias e hidrovias para conectar a Amazônia aos portos do Norte do Brasil. A iniciativa inclui outras grandes obras de infraestrutura com altos impactos socioambientais, como a Ferrovia Norte-Sul e a Ferrogrão.
“O processo de privatização desses rios vai impactar gravemente os povos amazônicos, sobretudo as comunidades tradicionais. Os ribeirinhos que lá vivem têm uma ligação especial com as águas. Novamente, veremos diversas violações de direitos humanos e a perda da soberania desses povos sobre seus territórios”, alerta Jaqueline Damasceno, da coordenação nacional do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB).
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Nota do MAB sobre o Decreto 12.600 aponta que, no caso do Rio Madeira, o projeto hidroviário impactaria 52 comunidades ribeirinhas, com mais de 15 mil pessoas que dependem do rio para beber, cozinhar, pescar, se locomover e manter suas culturas vivas. Quem ganha efetivamente são grandes corporações, como Cargill, Bunge, Vale, Hydro e Grupo André Maggi.
No caso da Hidrovia Tocantins-Araguaia, o projeto inclui explodir rochas nos 35 km do trecho do Rio Tocantins conhecido como Pedral do Lourenção, além da retirada de bancos de areia de outros 177 km do curso de água. Após diversas recomendações, o MPF entrou na Justiça Federal para solicitar a suspensão da obra. Movimentos sociais e comunidades tradicionais batizaram o projeto de “Hidrovia da Morte”.


O que diz o governo?
A reportagem do #Colabora entrou em contato com o MPOR para questionar sobre a atual situação das hidrovias citadas no Decreto 12.600. “O Governo Federal está estruturando uma política inédita de concessões hidroviárias, voltada à modernização da logística nacional, à redução de custos de transporte e ao aumento da eficiência energética da matriz de transportes”, diz a resposta do ministério.
A nota cita ainda a realização de estudos técnicos, socioambientais e econômico-financeiros para as concessões, além de listar uma série de intervenções, parte de uma “gestão contínua da hidrovia”, o que inclui: “dragagem de manutenção, balizamento, derrocamentos, sinalização, monitoramento hidrológico, gestão ambiental e controle do tráfego aquaviário”.
A privatização do Rio Madeira é a mais avançada, com Estudo de Viabilidade Técnica, Econômica e Ambiental (EVTEA) concluído pelo MPOR. Já para as hidrovias do Rio Tapajós e a do Tocantins e , a previsão é de que os editais para a realização dos estudos sejam publicados em 2026.
Em relação ao processo de consulta às comunidades, a resposta enfatiza que o governo pretende cumprir o que determina a Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), com a realização de “audiências regionais e nacionais, envolvendo comunidades, organizações sociais, pesquisadores, municípios, governos estaduais e o Parlamento”.
“Cada hidrovia passará por licenciamento ambiental próprio no momento oportuno para implementação das intervenções previstas, no qual serão analisados impactos sobre biodiversidade, pesca, abastecimento, modos de vida tradicionais, rotas de transporte regional e segurança da navegação”, diz outro trecho da nota. A íntegra da resposta do Ministério dos Portos e Aeroportos está disponível neste link.


E se o Tapajós falasse?
*Existo a partir da confluência entre os Rios Juruena e São Manuel, no Mato Grosso. Minhas águas correm por parte do Pará, até onde me encontro com meu irmão Rio Amazonas. Sou morada para diversos outros seres, como pirarucus, tucunarés, tambaquis, pacus, surubins, dourados, matrinxãs, ariranhas, lontras, botos, tucuxis e milhares de outros.
No caminho que percorre, também estabeleço relações com aves, répteis e mamíferos, moradores das irmãs Florestas que protegem as minhas margens. Também construí laços com diversas comunidades da terra – os humanos que não esqueceram de onde vieram e que também são natureza.
Dou vida e alimento para todos, ainda assim, alguns humanos insistem em escavar meu corpo, desmatar minhas margens e derramar mercúrio em minhas águas. Além disso, tenho sentido cada vez mais uma mudança nas estações, quando as secas começam e a tristeza toma conta de mim.
Agora querem fazer de mim um Rio privado, para construir uma hidrovia e transportar grãos pelo meu corpo. Não posso sair do meu lugar ou denunciar tudo que tenho visto, mas meus aliados fazem isso. Por me defender, muitos são ameaçados, o que aumenta minha agonia e indignação. Não estou à venda, nem poderia, porque não sou sozinho e estou com todos os seres ao meu redor.
*O trecho de fábula com falas do Rio Tapajós foi elaborado por este repórter a partir de provocação feita ao cacique Gilson Tupinambá sobre o que o rio diria sobre o projeto de privatização. Trata-se de um esforço de alteridade com esse ente vivo da natureza.
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Micael Olegário
Jornalista formado pela Universidade Federal do Pampa (Unipampa). Gaúcho de Caibaté, no interior do Rio Grande do Sul. Mestrando em Comunicação na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Escreve sobre temas ligados a questões socioambientais, educação e acessibilidade.











































