O pedestre está desaparecendo

As ruas estão tomadas por zumbis catatônicos, todos olhando para o chão, a cabeça curvada a um novo senhor mais poderoso. Foto Frédéric Cirou / AltoPress / PhotoAlto

Conectados com a irrelevância, passantes abrem mão do prazer de refletir enquanto os pés se movem

Por Joaquim Ferreira dos Santos | ODS 11 • Publicada em 30 de outubro de 2017 - 09:09 • Atualizada em 30 de outubro de 2017 - 12:21

As ruas estão tomadas por zumbis catatônicos, todos olhando para o chão, a cabeça curvada a um novo senhor mais poderoso. Foto Frédéric Cirou / AltoPress / PhotoAlto
David Le Breton, filósofo e antropólogo dos pedestres do mundo. Foto Gattoni/Leemage
David Le Breton, filósofo e antropólogo dos pedestres do mundo. Foto Gattoni/Leemage

Meu prezado David Le Breton, grande filósofo dos pedestres de todo o mundo, arqueiro zen da sabedoria de que andar é a maneira mais rápida de se chegar à meditação – meu ídolo, aceite meus cumprimentos.

Desculpe a súbita intimidade desta carta pública, mas eu precisava caminhar com alguém ao meu lado. Nossa causa é difícil. O Brasil é o eterno país do futuro, não gosta de se associar com esse passadismo de pé no chão. Os carros mandam. As calçadas são crateras, cercadas de obstáculos por todos os lados, um cenário que carimba de segunda classe o passaporte de qualquer pedestre. Dias atrás, para deixar isso ainda mais claro, resolveu-se multar os que sobreviverem ao percurso desses infernos. Num país onde as faixas de trânsito vivem apagadas, onde não há qualquer organização do chão público, criaram uma lei para arrancar R$ 44,19 dos nossos bolsos. Caminhar aqui não é uma atividade hedonista, como você prega. É declaração pública de falência, de desemprego – e agora quem andar onde não deve vai ser tributado.

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O silêncio, essa preciosidade que aproveitamos para falarmos com nós mesmos, também acabou. Ninguém se ouve. A multidão segue com os ouvidos ocupados de fones ou com os olhos fitos na telinha do smartphone, teclando mensagens que podem ser envidas meses mais tarde, talvez nunca, mas que assumiram uma premência artificial insuportável

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Socorro, grande antropólogo das causas que sugerem um ritmo mais lento e humano de se encarar as pseudo sofisticações da civilização pós-hodierna.

Eu tenho lido seus artigos na imprensa internacional sobre a relação dos novos seres humanos com seus corpos antigos e como todos utilizam o espaço público, principalmente em Paris, sua cidade natal. Quero cumprimentá-lo pelas sacadas e pedir ajuda. O pedestre brasileiro está desaparecendo. Falta-lhe espaço, sobra-lhe percalço e valorização. Andar é estar mais vulnerável às balas.

O silêncio e o caminhar sem propósito, sem utilitarismos cotidianos, são decisões revolucionárias. Estou de acordo com suas ideias. Refletem resistência e enfrentamento ao que os apressados supõe modernidades fundamentais. Quero caminhar com você nesses princípios e aproveito esta esquina de nosso passeio para me apresentar.

Eu sou apenas um rapaz latino americano, um jornalista enviado pelos editores deste site para observar aqui nos trópicos como as pessoas estão se mexendo nas ruas, nas praças, nas agendas. Tenho visto, com a simplicidade dos meus olhos reportariais, o que a acuidade do antropólogo perceberia com mais profundidade. Ninguém mais simplesmente caminha, um gesto cada vez mais raro na civilização dos automóveis. Dizia-se, numa antiga canção, “caminhando e cantando, e seguindo a canção, somos todos iguais….” Caminha-se agora com os olhos baixos, esbarrando-se em tudo, teclando alguma coisa numa caixinha de plástico de última geração.

O silêncio, essa preciosidade que aproveitamos para falarmos com nós mesmos, também acabou. Ninguém se ouve. A multidão segue com os ouvidos ocupados de fones ou com os olhos fitos na telinha do smartphone, teclando mensagens que podem ser envidas meses mais tarde, talvez nunca, mas que assumiram uma premência artificial insuportável.  Essas pessoas não veem mais para onde andam, tropeçam umas nas outras. As ocorrências ortopédicas têm sido tristes.

As ruas estão tomadas por zumbis catatônicos, todos olhando para o chão, a cabeça curvada a um novo senhor mais poderoso. Foto Frédéric Cirou / AltoPress / PhotoAlto

Esses dispositivos tecnológicos a que estamos plugados pelos olhos, ouvidos e mãos conectam-nos com a irrelevância, desplugam-nos da maravilha que é a reflexão enquanto os pés se movem. É um acúmulo de ruídos. Ensurdecem os olhos, emudecem os ouvidos e ajudam a desparagonar assim por diante todos os demais sentidos.

Eu já tinha percebido aqui, e agora vejo que você, meu douto David Le Breton, registrou o mesmo alhures. As ruas estão tomadas por zumbis catatônicos, todos olhando para o chão, a cabeça curvada a um novo senhor mais poderoso. Eles caminham impulsionados por um iPhone qualquer, rumo a um futuro do qual nós queremos ficar longe, não é mesmo? Parecem estar sendo levados aos seus líderes por um wi-fi extraterrestre.

Esses novos personagens urbanos em breve vão entrar nas suas próprias telas e em seguida sair nas telas que exibem o seriado “Black Mirror”, de sequelados digitais. É tudo muito estranho, ó grande filósofo das causas pedestres, das idiossincrasias da contemplação e outras ocorrências da slow life.

Em Ipanema, o bairro onde moro, no Rio de Janeiro, tem uma senhora considerada louca, “a mulher de branco”, porque simplesmente caminha sem propósito entre as ruas. Num de seus artigos li que esse caminhar ao léu é justamente uma forma de resistência e reencontro da dimensão humana.

As cidades são cada vez mais preconceituosas e menos solidárias com esses velhos costumes, em cartaz desde a inauguração da espécie. Elas sobrecarregam de obstáculos a vida dos que abrem mão dos carros e preferem, solidários com o meio ambiente e com os princípios da qualidade de vida, ir de um lado ao outro movidos por suas próprias energias. Agora, como se já não bastassem todas as intimidações da moda, que consideram o flanar uma coisa de outros séculos, inventam esta lei que multa quem não andar do jeito que as autoridades estipularem que deve ser o jeito certo de andar.

Não quero me alongar, meu caro David Le Breton, e por aqui começo a me despedir. O Brasil anda com os nervos a flor da pele. Vai ter gente mandando carta ao editor achando que o buraco é mais embaixo. Acho fundamental, no entanto, que se faça poesia justo numa hora dessas e aproveito o ensejo para declará-lo um dos grandes poetas do nosso tempo.

Dar condições de que se ocupe o espaço público com alegria, estou de acordo com a entrevista que você deu a um jornal francês em outubro, deve ser uma das formas de equilibrar a necessidade de recursos que garantam a sobrevivência das cidades e dê qualidade de vida a seus moradores.

Venha de novo ao Brasil, Le Breton, e divulgue sua contrariedade a essas leis para punir o pedestre. Ele deve ser o grande senhor a ser protegido, ter os pés onde pisar com dignidade, sem tropeções, e não viver sob o risco de, além do quebra-quebra ortopédico, ser penalizado com a quebra do bolso. Os bons valores foram para o buraco. E mais uma vez cito meu bairro. Reformaram aqui uma grande praça, com espaço para as famílias se esparramarem, mas quando chega o dia ideal para este êxtase eis que aos domingos a Nossa Senhora da Paz é sempre ocupada por algum evento que enche tudo de barracas e um barulho ensurdecedor.

Venha explicar a todos como seria radicalizar esse processo, parágrafo de brilho em seu discurso. Você não defende o simples caminhar municipal, administrativo, para cumprir as funções cotidianas. Não é só andar para percorrer os bancos e as farmácias – mas uma intenção decidida de botar o pé no mundo e voltar ao início da espécie. Valorizar a contemplação. Perceber “como é bonita a catedral, como é brincalhão o gato que se esconde por ali, as cores do pôr-do-sol”. Zero de finalidade utilitária.

Venha e fale sobre desligar o smartphone durante a caminhada e fazer com que as pessoas voltem a falar com elas próprias. Desfrutar, deleitar, emprazerar – e todos os demais verbos que se venha a inventar e curtir.

É tudo por hoje, meu caro filósofo das calçadas e dos caminhos a se seguir, sem bússola, sem lenço e sem documento. Dizem que somos loucos, mas loucos são esses que nos dizem tal e tal.

Joaquim Ferreira dos Santos

Jornalista e autor de vários livros, entre eles "Feliz 1958 - O ano que não devia acabar" e as biografias de Leila Diniz, Antonio Maria e Zózimo Barrozo do Amaral. Organizou a coletânea "As cem melhores crônicas brasileiras" e também publicou livros como cronista. Define-se principalmente como um repórter de Cidade. No #Colabora, Joaquim escreve sobre o que vai pelas calçadas e espaços públicos do Rio.

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Um comentário em “O pedestre está desaparecendo

  1. Luzia Vasques de Brito disse:

    Como tudo que interessa ao capital, o espaço público também parece ter se transformado num lugar de produção e consumos, ou seja, produção de capital, e logo, burocratizado, administrado e restrito (temos a impressão que o capital amplia possibilidades, quando suas exigências de sobrevivência provocam grandes restrições as atividades pró-humanas), como a simplicidade ímplicita ao ato do caminhar espontâneo. Tom ou Vinícius, chamaram atenção para o hábito feliz do carioca, que caminhava pelas ruas cantarolando e assobiando. Fico feliz com esta matéria, por dar passos a algo tão importante ao cotidiano humano, que estão nos roubado pela pressa de viver e morrer. Compartilho o texto, agradeço a boa reflexão, para que tenha voz e caminhos ( acesso), o que não for barulho.

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