Nem melhor nem pior, apenas uma escola diferente. Fiel ao seu lema, o Salgueiro levou à Passarela do Samba, na madrugada de segunda-feira, um enredo totalmente desenvolvido sob a ótica dos Yanomamis, com trechos do samba-enredo com termos indígenas e com a participação de representantes de várias etnias que jamais tinham pisado na Marquês de Sapucaí. “Ya temi xoa, aê, êa! Ya temi xoa, aê, êa!” (“eu ainda estou vivo”, em Yanomae, uma das seis línguas da família Yanomami), refrão cantado com força pela escolos componentes foi repetido pelo público, que emendou o grito de “É campeão” no final do desfile. Foi a primeira escola – mas não a única em dois dias de desfile – a ser saudada assim. O Salgueiro fico com o quarto lugar na disputa das escolas de samba do Rio e o enredo sobre os Yanomamis volta à Passarela neste sábado (17/02) para o Desfile das Campeãs.*
Os Acadêmicos do Salgueiro apresentaram o enredo “Hutukara”, inspirado em A queda do Céu – Palavras de um Xamã Yanomami”, escrito por Davi Kopenawa, principal liderança indígena de seu povo, em parceria com o antropólogo Bruce Albert. O enredo segue a ótica do livro, verdadeira manifesto em defesa da terra e dos povos originários, seguindo a ótica cosmológica da etnia Yanomami. Para eles, Hutukara (o céu original a partir do qual se formou a terra) é que mantém todo ser humano vivo, juntamente com os rios e a floresta. “O homem branco escuta, mas não fica preocupado. Por isso que precisamos encontrar uma aliança dos yanomami, com os negros e outros povos, para pressionar quem está nos maltratando. Estão destruindo a natureza, sujando a água, matando o meu parente com arma de fogo. Isso é crime”, ressaltou Kopenawa, antes de subir no carro alegórico em que atravessou a Marquês de Sapucaí.
O xamã yanomami, líder espiritual de seu povo e também presidente da da Hutukara Associação Yanomami (HAY), acrescentou que o desfile era uma oportunidade de falar das lutas de seu povo, mas também da importância da união pela defesa dos indígenas e da floresta. da Hutukara Associação Yanomami (HAY). “O meu povo não conhece o carnaval. E o povo do Salgueiro não nos conhece, mas também sofreu muito. Vamos unir as lutas dos negros e do povo Yanomami para defender nossa gente e impedir que continuem nos atacando”, afirmou.
Antes de entrar na Passarela do Samba, Davi Kopenawa lembrou ainda que a situação dos Yanomamis ainda é grave, mesmo depois da operação do governo no começo de 2023. “O governo federal tem que dar dinheiro para tirar os garimpeiros, mandar o Exército, junto da Funai. O Ministério dos Povos Indígenas não pode ficar de braços cruzados não. O povo yanomami é reconhecido no Brasil e fora, cuidamos da alma da floresta para se viver bem. Eu queria que as autoridades tomassem as providências, tirassem invasores de nossas terras. Isso é urgente.”, afirmou o xamâ que, antes de seguir para a Marquês de Sapucaí, comandou um ritual religioso na casa onde ele e outros indígenas estavam hospedado. Pelo menos, 10 representantes da etnia desfilaram no Salgueiro.
Mas o último carro da escola e o último setor trouxeram indígenas de outras etnias. “É a primeira vez que um samba consegue tratar de uma narrativa integral sobre a criação do mundo e como a gente está lidando com esse planeta Terra em tempos de mudanças climática. Estou muito comovido, é a primeira vez que estou aqui”, afirmou Aílton Krenak, filósofo e escritor indígena, eleito recentemente para a Academia Brasileira de Letras, em entrevista ao G1, onde afirmou estar emocionado. “É uma cosmovisão de um povo da floresta traduzido em samba-enredo. Isso consegue afetar milhares de pessoas”, acrescentou.
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Veja o que já enviamosO escritor conhece a história do Carnaval mas nunca tinha desfilado numa escolas de samba. “É uma admiração muito grande vir a Sapucaí, que a maioria das pessoas não costuma viver. Muita gente trata isso só como um evento, mas é a vida das pessoas. É muita doação, as pessoas ficam o ano inteiro produzindo esse evento. É muito bom estar aqui”, disse o escritor.
Desfile com gritos de dor e de luta
O desfile do Salgueiro foi dividido em cinco setores. A abertura – “É Hutukara! O chão de Omama” – evoca os xapiris, sseres de luz e protetores da floresta. Eles foram criados juntos com Hutukara (a terra-céu) por Omama, o organizador do universo. Os espíritos xapiri fora m representados na comissão de frente da escola, ao lado Thuëyoma, a deusa-mãe dos Yanomami, representada pela bailarina Cleia Santos, do Corpo de Dança do Amazonas (CDA), que demonstrou a dor e a luta do povo. “Trazer pro Carnaval a reflexão, a denúncia, a resistência, a luta e a força dos povos originários, nossa ancestralidade, minhas raizes; é a certeza de que vozes ecoarão o que precisa ser ouvido. Resistir para existir”, escreveu Cléia, estreante na Sapucaí, em suas redes sociais.
Ainda no primeiro setor, uma alegoria representou Hutukaa, a nova terra-floresta, sustentada pelo espírito de um jabuti. O segundo setor – “Caço de tacape, danço o ritual” – mostrou as atividades do dia a dia dos Yanomamis, uma sociedade de pescadores, caçadores-coletores e agricultores. Neste setor, vieram as baianas do Salgueiro, que desfilaram com a fantasia “Em teu solo sagrado”, em homenagem a mãe-terra. “A Mãe Terra é a Mãe Natureza. É uma mãe que acorda os seus filhos, que cuida, que protege e guarda. As roupas carregam esse significado, tanto nos detalhes e nas flores”, explicou Tia Glorinha, organizadora da ala há 15 anos, que esteve com Davi Kopenawa quando ele visitou o barracão em outubro.
O terceiro setor lembrou a destruição da floresta, com a fantasia da bateria remetendo aos garimpeiros e alas mostrando que a tragédia yanomami começou durante a ditadura, quando estradas foram abertas em territórios indígenas na Amazônia. O tripé “Comedor de Terra” representava uma retroescavadeira estilizada como um animal e uma grande boca; a quarta alegoria da escola foi “A Tragédia Yanomami”. No quarto setor, , o Salgueiro trouxe acontecimentos históricos e culturais dos Yanomamis, com a alegoria “A Beleza Yanomami”, retratando a beleza e a força desse povo.
E o encerramento do desfile – com o setor Pelo Povo da Floresta – lembrou outros povos indígenas do país que estão passando por situações por situações trágicas e crise sanitárias semelhantes aos Yanomamis: Matis, do Vale do Javari, Guaranis Kaiowás, Kayapós Mebengokre, Awás-Guajá, Tupis Guaranis Mbyas e Xokleng – nesta parte, o Salgueiro foi pouco didático e o público não conseguiu entender a sequência de alas de indígenas. Neste setor, a última alegoria do Salgueiro (Por um Brasil Cocar) trouxe as lideranças yanomamis e de outros povos indígenas e lembrou o assassinato do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips
Mais do que qualquer alegoria ou fantasia, os indígenas ficaram encantados com a plateia cantando o samba que fala, na letra de Hutukara, de Omama, de xapiris, de Yakoana (pó mágico), de Yoasi (o irmão de Omama, responsável pela criação da morte e da escuridão). “Napê, nossa luta é sobreviver! / Napê, não vamos nos render!” – cantavam componentes e público – napê designa todos os forasteiros, o homem branco e os garimpeiros. Todo o samba é assim como se o narrador dos versos fosse o próprio Davi Kopenawa. “Ya temi xoa, aê, êa! Ya temi xoa, aê, êa!”. Os indígenas também cantaram o refrão e, alguns mesmo sem falar português tentaram acompanhar o samba.
Feliz e emocionado com desfile, o xamã yanomami disse, ao deixar a Passarela, que “o mais importante é que nossa voz foi ouvida por milhares”. Os salgueirenses, naturalmente, sonham com o título, mas seguem fiéis ao lema nem melhor nem pior, apenas diferentes. “Acho que os yanomamis e as lutas dos povos originários foram muito bem representadas no nosso desfile. Davi Kopenawa diz que o homem branco precisa aprender a sonhar: o desfile do Salgueiro fez isso, todos sonharem com a preservação da floresta e com a vida dos povos originários”, disse o carnavalesco Edson Pereira.
*Atualizado em 14/02 para adicionar a colocação do Salgueiro na disputa das escolas de samba do Carnaval 2024 no Rio de Janeiro