Vem a bateria, e Martin aguarda perfilado, tamborim na posição para começar a tocar. Os ritmistas se aproximam e ele rapidamente se encaixa na batucada, repetindo os movimentos com as mãozinhas, enquanto evolui em passos malemolentes, típicos dos bambas de todas as gerações. O mundo à sua volta se encanta pela cena linda – linda DEMAIS –, mas sorrisos, brincadeiras e interações estão suspensos. Ali, é assunto sério, merecedor de toda a concentração.
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Martin tem 3 anos, acabou de fazer. Mas, como todas as crianças do samba, nasceu sabendo os parangolés da ancestralidade.
Está em casa, no solo sagrado do 1025 da Rua Pracinha Paes Wallace, a quadra da Beija-Flor. Mistura-se à mítica comunidade nilopolitana como resolvido nativo, madrugada adentro, para garantir o mais precioso: a perpetuação do Carnaval.
Pelo segundo ano, Martin sabe os sambas-enredo de cor. “Aqui é Beija-Flor, doa a quem dor/ Do gênio sonhador, da gana de vencer/ Tá no meu peito, tá no meu guito/ Escola de respeito que coroa Benedito”, canta, incontáveis vezes, melhorando o verso com a releitura de “grito”. “Prepare o seu coração, que lá vem a escola da emoção. Lá vem a Mocidade Independente de Padre Miguel! Vai, Dudu!”, ele repete com exatidão a saudação de Zé Paulo Sierra, intérprete da verde e branco da Zona Oeste.
Invariavelmente, carrega instrumentos para prover o entretenimento – além do tamborim, o acervo oferece pandeiro, tantan, caixa, violão, chocalho, xequerê, cavaquinho, cuíca, tambores diversos e até um surdo que enlouquece os pais. (Ainda tem sanfona, trombone e um teclado não tarda.) Quando o avô desprovido de ritmo se arrisca na batucada, rapidamente se apossa do instrumento, professoral: “Deixa eu mostrar como é, vovô”.
O Carnaval funciona como locomotiva para a musicalidade. Entre os sambistas, Martin está em casa, na reverência solene a Selminha Sorriso, na harmonia com o cavaquinhista Betinho Santos, na parceria com a percussionista Laísa Lima. Aposta na brincadeira séria da relação com a música, a dança e o ritmo carnavalescos, até decifrar os territórios que pertencem – também – às crianças.
Pequenos e pequenas mantêm, há décadas, relações apaixonadas e apaixonantes com as escolas, herdeiros de dinastias valiosas. Na Mangueira – historicamente uma família em verde e rosa –, três irmãos expressam toda a força da ancestralidade. Rian, 15 anos, e Lorrana, 11, brilham como casal de mestre-sala e porta-bandeira da Mangueira do Amanhã; Ágatha Sofia, a Bombom, aos 3, virou hit da temporada carnavalesca com irresistível samba no pé, que viralizou, encantando até a atriz americana Viola Davis. Daqueles vídeos que aprisionam a audiência, pela beleza, leveza, poesia únicas, que só o Carnaval consegue produzir.
São, o mestre-sala, a porta-bandeira e a passistinha, bisnetos de Nelson Sargento (1924-2021), ícone da escola e da música popular. Moram todos no morro e a caçula passista tem perfil no Instagram seguido por 12,7 mil internautas, assessoria de imprensa, contatos para publicidade, o baile todo.
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Veja o que já enviamosO adolescente casal do pavilhão terá lugar de protagonista na comissão de frente da Estação Primeira, no desfile-celebração a Alcione, a cantora que fundou a Mangueira do Amanhã. Bombom virou mascote da escola mirim – e o difícil é segurá-la em casa, quando os irmãos vão ensaiar. “Quero ir para a Mangueira, mamãe”, reivindica, incansável. Vai, Bombom – o samba agradece.
Outra guardiã do pavilhão com o Carnaval no DNA vai passar na Em Cima da Hora, na Série Ouro, a segunda divisão do paticumbum. Clarice Nascimento, 16 anos, carrega no sobrenome o destino de sambista: é bisneta de Vilma, o Cisne da Passarela, ícone da Portela e mais aclamada porta-bandeira de todos os tempos. Desde muito pequena, ela frequenta a quadra da centenária escola da águia, pertinho de sua casa. Foi passista, mas encontrou-se na função que transformou a bisavó – ativa e saudável aos 86 anos, benza Deus – em lenda. (O pai, Cleiton, foi mestre-sala de outra escola da região, a Tradição.)
“Sonho ser porta-bandeira da Portela”, assume Clarice, com coragem de bamba. “Meu sobrenome sempre vai me acompanhar. Sou Nascimento, mas meu nome é Clarice. Quero fazer minha história”, resume, exibindo a paixão pelo Carnaval que carrega no DNA.
O caçula do atual capítulo da odisseia do samba vai de chupeta e chinelo tocar caixa com a bateria da Acadêmicos de Santa Cruz, nos rincões da Zona Oeste carioca. Luizinho, 2 anos, empunha suas baquetas amarelas e segue preciso o ritmo da bateria. O avô deu o primeiro instrumento – outro dia – e o pequeno não parou mais: também toca chocalho e surdo, além de sambar como passista.
A família do menino realiza, sob uma árvore frondosa no quintal de casa, rodas de samba frequentes, que atraem pequenas multidões. “Quando ele tinha um mês, levei num ensaio na quadra”, conta a mãe, Maíra. “A minha vida é ali, o contato foi inevitável”. Toda essa atmosfera fez nascer mais um sambista pequeno e apaixonante, fruto da riqueza mais carioca.
Martin, Bombom, Lorrana, Rian, Luizinho, Clarice e as outras crianças decretam: o Carnaval vai durar para sempre.